De volta ao Rio começamos a trabalhar freneticamente no projeto. O espaço era excelente, destinado a um teatro de 400 lugares, e utilizando minhas observações da “viagem de estudos noturnos” e meus conhecimentos da escola de design, projetei-o com um palco, uma
imensa pista de dança branca e preta e, novidade absoluta, uma arquibancada de 20 degraus, forrada de tecido jeans. Não haveria “consumação mínima” nem “couvert artístico” como em todas as boates e casas noturnas, não haveria seleção na porta, as entradas seriam vendidas para qualquer um numa bilheteria, como em qualquer show. Preços populares. Faltava um nome. Havia na parede do escritório uma grande lista, onde cada um ia escrevendo suas sugestões. Uma tarde, um jovem ator amigo, que sempre dava uma passada quando estava por perto, juntou dois da lista e sugeriu “Frenetic (que eu gostava menos) Dancing Days” (meu favorito, tirado de uma música do Led Zeppelin). Todo mundo gostou da sugestão de Marco Nanini, bati o martelo e o designer Nilo de Paula criou — em letras de néon, naturalmente — o logo de The Frenetic Dancing Days Discotheque, com inauguração marcada para o dia 5 de agosto de 1976, aniversário de morte de Carmen Miranda e de Marilyn Monroe, no quarto andar do deserto Shopping Center da Gávea.
“Dancemos todos, dancemos, amadas, mortos, amigos, dancemos todos até não mais saber-se o motivo.” Os versos de Mário Quintana ilustravam os convites para a noite de estreia. Para servir as poucas mesas espalhadas em volta da pista de dança, eu não queria garçons, mas garçonetes, como as novaiorquinas, alegres e divertidas, atrizes representando garçonetes. Assim que falei da ideia, minha cunhada Sandra Pêra se interessou pelo papel e me disse que chamaria suas amigas Regina Chaves, Leiloca e Lidoka, que tinham participado da trupe feminina das Dzi Croquettes, dirigida por Lennie Dale, e uma ótima cantora, Dulcilene de Morais, a “Nega Dudu”. Indicada por Dom Pepe, a mulata Edir de Castro, bailarina da trupe Braziliana, completou o grupo. Mas elas não seriam só garçonetes, no meio da noite subiriam ao palco de surpresa, cantariam três ou quatro músicas e depois voltariam às bandejas. Ficaria muito simpático e original, elas se divertiriam mais e provavelmente melhorariam muito as gorjetas. Escolhemos cinco músicas, de Rita Lee (“Dançar para não dançar”), dos Rolling Stones (“Let’s Spend the Night Together”), de Raul Seixas (“Let Me Sing”) e dois clássicos da jovem guarda (“Exército do surf” e “O gênio”), e chamei Roberto de Carvalho, o novo pianista, guitarrista e namorado de Rita Lee, para ensaiá-las.
No seu apartamento em Copacabana, Roberto criou os arranjos, distribuiu as vozes, ensaiou-as exaustivamente e sobreviveu ao fogo cruzado de seis mulheres falando ao mesmo tempo, com opiniões diferentes. Nasciam as Frenéticas. Na noite de estreia, elas estavam com malhas colantes de lurex prateado, do pescoço aos pés, de saltos altíssimos, bocas vermelhas e bandeja na mão. Momentos antes de as portas de vidro se abrirem para centenas de pessoas, uma parede da sala de entrada ainda estava sendo pintada. Fora isso, estava tudo pronto para os convidados do meio musical e da TV Globo, para amigos cinema-novistas, jornalistas, surfistas, socialites, psicanalistas e comunistas: a praia inteira, na grande boca livre, na festa carioca da semana. Mais de 700 pessoas abarrotaram pista e arquibancadas, bar e sala de entrada, mesas e banheiros. Quase às duas da madrugada Rita Lee subiu ao palco com sua nova banda e novo show, “Entradas e bandeiras”, e levantou o público com uma performance sensacional. Abriu com seus hits “Ovelha negra” e “Esse tal de roque enrow” e fechou apoteoticamente com sua nova música em parceria com Paulo Coelho, “Arrombou a festa”, que gozava e sacaneava os grandes personagens da música popular brasileira. Era uma versão atualizada e debochada da “Festa de arromba” da jovem guarda. “Ai, ai meu Deus, o que foi que aconteceu com a música popular brasileira? Todos falam sério, todos eles levam a sério, mas esse sério me parece brincadeira...”
Assim que voltou a São Paulo, Rita Lee foi presa: uma blitz policial em sua casa encontrou uma bagana de maconha e ela foi levada algemada para a delegacia. Deu no “Jornal nacional” e saiu na primeira página de todos os jornais. Mas eu soube antes, à tarde, em um
telefonema aflito de sua empresária Mônica Lisboa. Liguei para o advogado Técio Lins e Silva, que me indicou em São Paulo o Dr. José Carlos Dias. Numa ação espontânea e surpreendente, Elis Regina foi com os dois filhos, João, de seis anos, e Pedro, de um, para a porta da delegacia e fez um escândalo, falou para todas as rádios e televisões em apoio a Rita — que não conhecia, com quem nunca tinha falado, nem mesmo em bastidores de televisão e de festivais. Rita era o rock, Elis a MPB. Elis mandou-lhe um bilhete amoroso e convidou-a para participar de seu especial de fim de ano na Bandeirantes. Por ser primária, Rita, grávida de seu primeiro filho, foi solta para responder ao processo em liberdade.
O compacto de “Arrombou a festa” estourou nas rádios e nas lojas, com Rita vestida de presidiária na capa. A boca-livre inaugural do Dancing Days foi um sucesso, mas no dia seguinte, aberto ao público pagante, só apareceu meia dúzia de gatos pingados. Comecei a ficar preocupado. No outro dia, com anúncios nos jornais, telefonemas desesperados a colunistas, convites distribuídos e esperanças renovadas, recebemos pouquíssimas visitas. Fiquei preocupadíssimo. No terceiro dia, uma sexta-feira, ressurgimos dos mortos e a casa encheu, com um público jovem e animado que tinha lido nos jornais e ouvido na praia o boca a boca sobre a sensacional festa de abertura da nova discoteca na Gávea, com muitos amigos voltando. No sábado, mais de 700 pessoas, casa lotada, público animadíssimo, adorando tudo, enchendo a pista, namorando nas arquibancadas, dançando e se divertindo com o showzinho das Frenéticas, que foi aplaudido freneticamente, muito além das nossas expectativas mais otimistas. Acrescentamos mais duas músicas ao repertório delas.
Em sua cabine de som, atrás de seus pick-ups, Dom Pepe gritava “Vou fazer vocês pular feito pipoca!”. E a pista explodia com hits de James Brown e dos Rolling Stones, de Rita Lee e de Raul Seixas, misturados com os sucessos da disco music trazidos de Nova York. Com um projetor de 16mm emprestado, Dom Pepe exibia numa tela sobre o palco números musicais filmados cedidos pelas gravadoras, com Bob Dylan (“Hurricane”), David Bowie (“Soul Train”), Eric Clapton (“Cocaine”) e se transformava no primeiro “film-jockey” do Brasil. O público nunca tinha visto aquilo e adorava. O volume era ensurdecedor. Em duas semanas o Dancing Days se tornou a febre da cidade. Misturados ao jovem público da Zona Sul que enchia a casa, estrelas e personagens das noites cariocas, músicos, intelectuais, esportistas e até artistas que não frequentavam a noite, como Milton Nascimento e Maria Bethânia, dançavam no frenético Dancing Days. A casa era tão democrática que uma noite o pintor Jorge Guinle Filho, surpreso, encontrou na pista a sua empregada doméstica: os dois tinham
comprado entrada na mesma bilheteria e dançavam na mesma pista. O ambiente era tão sexy e tão liberal que as escadas escuras do shopping deserto se enchiam de gemidos e de casais de todos os sexos, enquanto outros, mais ousados, preferiam os cantos escuros debaixo das arquibancadas, protegidos por cortinas. Por pressão popular, as Frenéticas passaram a cantar mais músicas e a servir menos drinques e se tornaram a grande atração da casa.
Muita gente ia lá só para ver as Frenéticas, de espartilhos negros, cinta-liga, meias de náilon e saltos altíssimos, num show de mais de uma hora, obrigadas a incontáveis “bis”. Bandejas, nunca mais. Mas a essas alturas não havia mais mesas no Dancing Days, era tudo pista de dança.No Dancing Days lancei meu primeiro livro, uma coletânea de contos temerariamente publicada por um vizinho de porta do escritório de Ipanema, o jovem Paulo Rocco, que iniciava sua editora numa salinha apertada como a minha. Paulo teve muito boa vontade: com exceção de três ou quatro boas histórias (Antônio Calmon queria filmar uma delas, de sexo e terror), o resto do livro, escrito às pressas, sem edição, sem revisão, era uma mistura caótica — que não deu certo de algumas boas idéias com um monte de bobagens. O piromaníaco foi um fracasso de vendas e passou despercebido pela crítica. Mas a noite de autógrafos foi divertidíssima, misturando meu avô e seus amigos velhinhos da Academia Brasileira de Letras com gatas e surfistas de Ipanema, artistas e doidões, jornalistas e cinemanovistas, colegas da TV Globo e amigos de Marília do teatro, todos dançando contentes em efervescente boca-livre lítero-discoteca.
No meu aniversário o pessoal preparou uma festança-surpresa, com convidados e equipe, inclusive os seguranças, fantasiados de criança, as Frenéticas de uniforme de grupo escolar. Era uma festa infantil para adultos, com engolidor de fogo, pipoqueiro e carrocinha de algodão-doce na pista, mamadeiras de champanhe de boca em boca. A praia tremeu quando se espalhou o boato que o Dancing, como era chamado na intimidade, estava com as noites contadas: fecharia no dia 5 de novembro para começarem as obras do Teatro dos Quatro. A
confirmação da notícia levou a legião de habitues ao desespero e provocou uma corrida dos que queriam conhecer o Dancing Days antes que acabasse. Foram milhares de pessoas, noites e mais noites de festa e dança, onde gente de várias classes e gerações se misturava, uma usina de alegria nas noites cariocas.
Mas, antes de fechar definitivamente, o Dancing foi fechado três vezes pela Administração Regional da Gávea, por não ter alvará nem qualquer licença de funcionamento: a casa era totalmente ilegal, pirata, fantasma. Com as portas do Dancing lacradas, fui conversar com o administrador regional, que era um senhor muito simpático e compreensivo, mas dizia que não podia nos dar um alvará porque naquela zona não eram permitidas casas noturnas. Mesmo no quarto andar de um shopping center deserto?, eu argumentava. Não incomodávamos ninguém, estávamos pagando impostos sobre a bilheteria e o movimento do bar, nossa firma estava em ordem com suas obrigações fiscais, era só mais um mês (embora fossem dois) e a casa fecharia. Ele refrescou e a casa reabriu. A mesma seqüência se
repetiu mais duas vezes, completa: com a boa vontade do administrador e a promessa de que iria fechar, a casa reabria. Até o último dia, o Dancing Days jamais teve um alvará ou qualquer licença de funcionamento, começou e terminou absolutamente fora da lei.
Já nos últimos dias, fomos fechados pela Delegacia de Polícia da Gávea, atendendo à reclamação de uma vizinha de fundos, que não conseguia dormir, enlouquecida com o barulho. Fui ao apartamento da reclamante, uma senhora educada, escritora de livros infantis, para tentar uma solução. Ela pediu que eu telefonasse para o Dancing Days e mandasse ligar o som, para ouvir o que ela ouvia todas as noites. Telefonei, cético, porque o apartamento era muito distante, mas quando ligaram o som, tremi: do imenso exaustor do Dancing Days vinham não só ar e fumaça de dentro, mas um rio de som que desaguava direto na janela do quarto da pobre senhora.
Constrangido, pedi desculpas e ofereci-lhe imediatamente um ar-condicionado.Me comprometi a colocar isolante acústico na parede que dava para a sua janela. No dia seguinte, forramos toda a parede interna do Dancing com embalagens de ovos de papelão, recomendadas por nosso técnico de som, Ray, um garotão australiano. Adiantou, mas não muito: quando a noite pegava fogo, Dom Pepe e Ray se entusiasmavam no volume e a professora não conseguia dormir. E entrou com um processo para fechar a casa. Mas como faltavam poucos dias para o fim da temporada, antes de qualquer medida judicial, tivemos morte natural e anunciada, no auge do sucesso, sem conhecer a decadência de todas as casas noturnas de sucesso. Muita gente, como o jovem Cazuza, de 17 anos, filho dos amigos João e Lucinha Araújo, um dos frequentadores mais assíduos e animados, chorava na última noite. O Dancing Days começava a virar uma lenda nas noites cariocas.
Entre os vários personagens que marcaram o Dancing, uma das mais bonitas e festejadas era uma jovem atriz paranaense que tinha estourado na novela “Gabriela” e era nossa amiga da praia, uma morena que enlouquecia a pista com sua alegria e seu sex-appeal. Sônia Braga
tinha 24 anos e foi a musa que inspirou Caetano Veloso a compor o sucesso “Tigresa”: “Ela me conta sem certeza Tudo que viveu Que gostava De política em 1966 E hoje dança No Frenetic Dancing Days Ela me conta que era atriz E trabalhou no Hair, Com alguns homens foi feliz, Com outros foi mulher” Dez anos tinham se passado, desde o idealismo hippie, da generosidade revolucionária e do romantismo transformador que marcaram nossa geração. Nos Estados Unidos e na Europa, eles celebravam com sexo, drogas e disco music suas lutas e conquistas e queriam mais. No Brasil, depois de 12 anos de ditadura militar, a escalada repressiva que tinha chegado a seu ponto mais agudo com o assassinato de Vladimir Herzog experimentava uma pequena mas significativa distensão. O general Geisel demitiu o comandante do II Exército em São Paulo como responsável pela área em que ocorreu o crime, enquadrou o aparelho repressivo e sinalizou que mesmo a “guerra contra-revolucionária” tinha limites. E que havia uma possibilidade de abertura, lenta e mínima que fosse.
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