Apesar do talento de Marília cantando, dançando e representando, o programa teve modesto sucesso e breve trajetória. Continuei fazendo reportagens no “Hoje” e apresentando o “Sábado som”, e cada vez me desinteressava mais da produção de discos. O último que fiz reuniu diversos artistas de vários gêneros e gerações, todos cantando músicas de carnaval, como nos velhos tempos das chanchadas da Atlântida. Em irônica homenagem ao filme de Cacá Diégues com Chico, Nara e Bethânia, Quando o carnaval chegar, o disco se chamava O carnaval chegou e reuniu Nara Leão (cantando uma marchinha do trio Sá-Rodrix e Guarabyra, “O cordão do Zepelim”), Raul Seixas, que compôs e cantou um samba animado, o MPB 4 com a marchinha “Boi voador”, do musical Calabar de Chico e Ruy Guerra, o novo Sérgio Sampaio com o seu ótimo samba “Quero botar meu bloco na rua” , Caetano com seu animadíssimo “Frevo novo” (“A praça Castro Alves é do povo/ como o céu é do avião...”), Jorge Ben, Jair Rodrigues, Tim Maia, Fagner e outros. O disco foi igualmente ignorado na imprensa, nas rádios, nas ruas e nos bailes e resultou em completo fracasso. Comecei a pensar em voltar ao jornalismo. Por intermédio de Armando Nogueira, diretor de Jornalismo da Globo, cheguei a Evandro Carlos de Andrade, diretor de redação de O Globo, que me encomendou uma crônica musical para o jornal de domingo. Usando muitos dos conceitos que aprendi no “Grupo de Trabalho” da Philips, fiz uma longa e profunda análise musical, poética, política, sexual, comportamental e mercadológica do Secos e Molhados, o novo fenômeno musical brasileiro, que tinha vendido mais de 700 mil discos. Era o primeiro grupo nacional com uma atitude rock a conquistar o sucesso de massa no Brasil.
Rostos pintados, roupas extravagantes, músicas animadas e principalmente o sensacional solista Ney Matogrosso, com sua voz de soprano e sua sexualidade exuberante, ambivalente e provocativa. Ney não era só a voz, era o corpo e o coração do grupo, mas a cabeça era João Ricardo, um jovem intelectual português de São Paulo, esnobe e bonitíssimo, autor da maioria das músicas, dos conceitos de repertório e performance do Secos e Molhados. Evandro, um homem charmosíssimo mas conhecido por uma certa rispidez nas críticas e pela extrema parcimônia nos elogios, não disse nada (“quando eu não digo nada é porque gostei, só falo quando não gosto, para reclamar”). Pediu outra para o domingo seguinte. Foi sobre Raul Seixas e seu estrondoso sucesso. Na segunda-feira ele me convidou para escrever uma coluna diária em O Globo, com notícias e comentários sobre música popular. Pedi demissão da Philips e comecei imediatamente. Cada vez mais gente gostava mais de Chico, que respondia com mais e melhores músicas e letras. Amadurecido no sofrimento, ele reagia ao sufoco e à repressão explodindo de criatividade, usando a linguagem como arma e arte, como truque e verdade ao mesmo tempo. Com Ruy Guerra, escreveu o melhor score musical que o teatro brasileiro mereceu em muitos anos: Calabar. Suas músicas iam e voltavam da Censura, cortadas, vetadas, proibidas: ou por subversão ou por corrupção. Palavras eram negociadas, intenções eram investigadas, letras eram alteradas para que as músicas sobrevivessem. Fernanda Montenegro e Fernando Torres, com prestígio e experiência teatral, com fichas de subversão relativamente limpas, eram os produtores junto com Ruy e Chico, dividindo os riscos de uma montagem caríssima, que envolvia muitos atores, músicos, figurinos de época e cenografia.
Uma a uma, obras-primas como “Tatuagem”, futuros hits como “Não existe pecado ao sul do Equador” e grandes músicas como “Fado tropical”, “Cobra de vidro”, “Você vai me seguir” e “Tira as mãos de mim”, o amor de duas mulheres em “Bárbara” (cantada em dueto por Chico e Caetano na Bahia) foram sendo liberados e começaram a ser ensaiados pelo elenco, com Betty Faria no papel de “Bárbara”, a mulher de Calabar, o traidor dos portugueses na luta contra os holandeses em Pernambuco. O tema era explosivo, discutia a lealdade e a traição, o amor e a guerra, o homem e a mulher. “Quero ficar no teu corpo feito tatuagem que é pra te dar coragem pra seguir viagem quando a noite vem...” A Censura finalmente liberou o texto da peça, que foi ensaiada, vestida, coreografada e apresentada, às vésperas da estréia, para os censores examinarem a montagem e a interpretação dos atores, para a liberação final. Mas o espetáculo foi proibido em todo o território nacional, em decisão inapelável. Fernanda e Fernando, Ruy e Chico, além da frustração artística e da humilhação civil, quase quebraram com a perda total do que investiram na montagem. Chico ainda teve o consolo de poder reunir num belo Lp as canções da peça proibida. Apenas com o título Chico canta, a palavra “Calabar” não poderia sequer ser mencionada. Mesmo assim foi incluída, sutilmente, como uma das pichações do muro que fazia fundo para a foto de Chico na capa. Nem isso foi permitido e a Philips teve que fazer novas capas.
O ambiente na música brasileira estava sufocante no início de 1974 e eu me esforçava para fazer da coluna um respiradouro liberal, uma janela para os novos talentos e os velhos perseguidos. Mas a Censura estava cada vez mais intolerante, a repressão política ainda mais truculenta, as notícias de desaparecimentos e o horror da tortura criavam um quadro de medo, paranóia e sufoco. Nem mesmo as metáforas políticas, cada vez mais sutis, que os
letristas aprenderam a desenvolver sob pressão funcionavam: a censura estava aprendendo a ler nas entrelinhas. E por excesso de zelo, comicamente, muitas músicas que não tinham nada de metafóricas acabaram sendo proibidas. Por outro lado, desenvolveu-se o patético hábito de “ler” nas entrelinhas de tudo, mesmo do que não tinha nada, em busca de alguma coisa, algum protesto, alguma esperança. Depois de Calabar, tudo que fosse de Chico Buarque, qualquer coisa assinada por ele, a Censura proibia. Sem dar justificativas, em atos que não permitiam recursos ou contestação judicial. Chico se fingiu de morto. Mas maquinava uma vingança terrível, que humilharia pelo humor, que driblaria o autoritarismo e a repressão com talento e malandragem. Começava a nascer Julinho da Adelaide — o novo grande nome da música brasileira, um dos poucos raios de sol nas noites silenciosas de 1974.
Como Chico não poderia gravar nenhuma música nova de sua autoria e precisava viver, cantar, fazer um disco, a sua saída foi a que lhe sugeriu a direção da Philips: fazer um disco cantando músicas de outros compositores. Os colegas estavam ansiosos para colaborar com
inéditas. Rigoroso e autocrítico, Chico resistiu no início, porque nunca se considerou um cantor e tinha grandes inseguranças vocais. E ainda mais tendo João Gilberto como modelo e agora cunhado: João estava casado com sua irmã Miúcha. Era a melhor — talvez a única — alternativa ao silêncio que o regime queria lhe impor. E Chico mergulhou com entusiasmo — e raiva — no trabalho. Pesquisou músicas antigas, com letras fortes, recebeu músicas inéditas de Gil, Caetano e Tom Jobim e elegeu a emblemática “Sinal fechado”, de Paulinho da Viola, a canção-título do disco. Fez uma reinterpretação pop da estupenda “Me deixe mudo”, de Walter Franco, recente revelação da vanguarda paulistana, recriou clássicos de Caymmi, Noel Rosa e Geraldo Pereira, revelou a obra-prima secreta de Nelson Cavaquinho e Augusto Tomaz Júnior, “Cuidado com a outra”. Cantou melhor do que nunca e produziu um dos melhores discos de sua carreira, um disco histórico que marca a estréia — e a breve carreira — de Julinho da Adelaide.
O desconhecido Julinho assinava duas pérolas no disco de Chico, “Acorda Amor” e “Jorge maravilha”. Na primeira, um samba sincopado, Julinho apresentava uma visão dramática e hilariante da paranóia repressiva: “... são os homens, e eu aqui parado de pijama eu não gosto de passar vexame chame, chame, chame, Chame o ladrão!” Na segunda, um samba-rock de linguagem jorge-beniana, celebrava a liberdade e proclamava: “Mais vale uma filha na mão do que dois pais sobrevoando. Você não gosta de mim mas sua filha gosta...” Todo mundo acostumado a ler nas entrelinhas entendeu que a coisa era com o general Geisel, novo presidente da República, e sua filha Amália Lucy, que tinha dito em entrevista que admirava as músicas de Chico. Chico desmentia vigorosamente, ninguém acreditava. Com a invenção de Julinho da Adelaide, como um Garrincha enfurecido, Chico marcou um golaço por debaixo das pernas da ditadura. Combateu se divertindo, criando não só um personagem, mas sua mãe cruzadista Adelaide e seu meio-irmão e parceiro que o explora, Leonel Paiva. Quando as músicas começaram a fazer sucesso, deu uma longa e hilariante entrevista a Mário Prata, na Última Hora de São Paulo, em que Julinho contava cínica e deslavadamente toda a história de sua vida, da mãe favelada e do pai alemão, da invenção do “sambaduplex”, que pode ser lido de duas maneiras, de sua felicidade em ser gravado por Chico Buarque.
Em pouco tempo, a identidade secreta de Julinho da Adelaide se espalhou pelos bares de Ipanema, Chico cresceu ainda mais como herói da resistência, foi chamado de “o nosso Errol Flynn” por Glauber Rocha e Julinho começou a correr perigo de vida. Com a repressão política onipresente e cada vez mais truculenta e paranóica, a música popular contestava a rigidez do regime na liberação da sexualidade e da linguagem, no desbunde das drogas e no individualismo exacerbado. No fim, tudo acabava sendo político, até quando não queria ser.
Ney Matogrosso exibia nos palcos — além da bela e subversiva voz de soprano — uma sexualidade agressiva e ambivalente, que provocava igualmente mulheres e homens, mas surpreendentemente encantava também as crianças. Foram elas que consagraram o grupo com o sucesso nacional da dúbia “O vira”, uma mistura dançante de rock como “vira” folclórico português, feita pela violonista carioca Luli e o luso João Ricardo, idealizador e compositor do Secos e Molhados. “Vira, vira, vira, Vira, vira, vira homem, Vira, vira, Vira, vira lobisomem.”
A música tinha uma ambientação mágica, entre sacis e fadas, e o refrão era irresistível, divertia adultos e crianças, por motivos diferentes. A sexualidade revolucionária do Secos e Molhados balançava o sufoco político e trazia esperanças. Afinal, era o primeiro grupo pop de verdade a fazer sucesso de massa no Brasil, o que nem Os Mutantes tinham conseguido. Depois de vender 800 mil discos, lançados pela pequena Continental como uma banda de rock internacional, com suas caras pintadas e Ney seminu e cheio de plumas rebolando pelo palco, o Secos e Molhados fez um triunfal — seria o último — espetáculo no Maracanãzinho, gravado ao vivo para um especial de fim de ano da TV Globo. O segundo disco foi decepcionante e em seguida — como conseqüência do choque de egos entre Ney e João Ricardo, entre o sertanejo e o português, o instintivo e o intelectual, o sexual e o político — o grupo acabou. E Ney iniciou sua carreira solo, com um Lp extraordinário, que o colocava entre os grandes intérpretes brasileiros. Raul Seixas se afirmava como um rebelde independente e libertário, se tornando ao mesmo tempo um ídolo popular nas favelas e um admirado ponta-de-lança da contracultura. Com ironia debochada e grande sentido crítico, num canto quase falado, à maneira de Bob Dylan, ele transformou “Ouro de tolo” num dos maiores sucessos do ano, fustigando os sonhos da classe média e o “milagre brasileiro”: “Eu é que não me sento No trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais no cume calmo de meu olho que vê assenta a sombra sonora dum disco voador.”
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