Marília não era um desafio ou uma vingança, era uma escolha. No outro dia, Marília foi surpreendida com um telefonema de Elis, seca e agressiva, fazendo perguntas e cobrando direitos sobre a minha modesta pessoa. Quando encontrei Marília à tarde, ela foi logo dizendo que estava tudo acabado, que não queria confusão com Elis, que me dispensava, abria mão, e me aconselhou a voltar para Elis imediatamente. Não voltei. Fiquei com Marília. No dia seguinte Elis ligou de novo, ainda mais agressiva, e as duas acabaram brigando. Elis virou um assunto tabu entre nós.
No Night and Day, todas as noites, Marília e sua irmã Sandra cantavam como Carmen e Aurora Miranda: “Cantoras do rádio”. “Canto para te ver mais contente pois a ventura dos outros é alegria da gente...” Entusiasmado com o sucesso de “Apesar de você”, Chico mergulhou no trabalho e produziu uma série de músicas extraordinárias, com melodias densas e elaboradas e versos virtuosísticos. A matemática “Construção”, a indignada “Deus lhe pague” e a sufocante “Cotidiano” deslumbraram a crítica e empolgaram o público. Eram canções políticas, líricas, épicas, tudo ao mesmo tempo, e mostravam que as dificuldades não o abatiam mas até o estimulavam. Chico vive seu melhor momento criativo e transforma-se, contra a vontade, num herói da resistência. Mas ainda é visto e ouvido e discutido como oposto a Caetano, a quem os admiradores de Chico acusam de individualismo internacionalizado, de fazer o jogo da direita. Já os fãs radicais de Caetano consideram Chico um tradicionalista e populista, um atraso para a revolução socialista libertária. Os dois se incomodam com as divisões, que consideram injustas e estúpidas. A melhor maneira de acabar com as polêmicas foi a mais bonita, a que eles encontraram, sob o sol de verão na Bahia: um show dos dois no Teatro Castro Alves, para ser gravado e transformado no disco Chico e Caetano —juntos e ao vivo. Um cantando músicas do outro, os dois cantando juntos.
Show e disco tiveram extraordinário impacto e sucesso, o encontro foi uma das melhores notícias que o Brasil recebeu num ano de poucas boas, de escalada da luta armada e da repressão, da tortura e da intolerância. Para mim a questão do “um ou outro”, por todos os motivos, artísticos, políticos e afetivos, nunca existiu. Sempre os considerei complementares e indispensáveis. O encontro histórico teve especial repercussão entre os fãs radicais de Chico e de Caetano nas esquerdas brasileiras, nos muitos grupos e tendências em que se dividiam. Juntos e ao vivo era, além de um extraordinário encontro de dois grandes artistas muito diferentes, uma metáfora de união e de tolerância, da harmonia por contraste.
Já com a TV Globo e especialmente com seu poderoso diretor de programação, a coisa estava feia: Chico e Boni freqüuentavam, em mesas separadas, o Antonio’s, onde se reuniam os artistas e intelectuais, a intelligentzia carioca (e também alguma burritzia rica). Numa mesa podiam-se encontrar Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Rubem Braga e Paulo Mendes Campos contando histórias. Em outra, Otto Lara Rezende, Walter Clark e Nelson Rodrigues às gargalhadas com Hélio Pellegrino. Na varanda, o Chacrinha com algumas chacretes comemorando alguma coisa. No bar, Glauber Rocha discursando para Arnaldo Jabor e Caca Diégues e belas atrizes do Cinema Novo. Numa mesa de fundo, Paulo Francis e Millor Fernandes debatendo acaloradamente, talvez em inglês. E Tonia Carrero, Fernanda Montenegro, Marina Colasanti, mulheres inteligentes e bonitas em toda a área.No Antonio’s misturavam-se esquerdistas de diversos matizes, governistas, liberais, até mesmo um ou outro militar reformado e certamente informantes do SNI. Freqüentemente os ânimos se exaltavam, mas raramente explodiam brigas, mesmo quando se bebia muito, o que acontecia quase sempre. As relações de Chico com a TV Globo tinham azedado de vez no festival do ano anterior, quando ele e um grupo de compositores famosos retiraram suas músicas em protesto contra a Censura e o festival foi um fracasso absoluto. Houve muito bate-boca, o pessoal da TV Globo ficou furioso e Chico passou a ser persona non grata, ou pior, não-existente: era proibido, em qualquer programa, sob qualquer pretexto, mencionar o seu nome, mesmo para falar mal. Cantar, nem pensar.
As hostilidades entre Chico e Boni explodiram quando o espanhol Manolo, dono da casa, encheu as paredes do Antonio’s com grandes retratos de frequentadores ilustres, entre eles os próprios Boni e Chico. Os pôsteres faziam parte da nova decoração, projetada por Mário Monteiro, cenógrafo da TV Globo, e paga por Walter Clark, Boni e outros diretores globais. Chico entrou no Antonio’s e levou um susto: detestou a nova decoração e ficou furioso com o pôster sorridente de Boni ao lado do seu. Indignado, arrancou o retrato da parede, entre gritos e aplausos. Atrás do balcão, Manolo, uma doce criatura, entrava em pânico. Afinal, ele adorava o “Seu Francisco”, um de seus clientes mais ilustres e festejados (o menu tinha até um “frango à Chico Buarque”), mas também amava o “Seu Boni”, que era tão generoso e entendia tanto de vinhos e de cozinha, e ainda por cima tinha dado de presente a nova decoração — que Manolo achava linda. No dia seguinte, quando Boni apareceu, o próprio Manolo, constrangidíssimo, lhe deu a infausta notícia. Que ele já sabia. Ao contrário das expectativas, Boni, conhecido por suas explosões de temperamento e memorandos devastadores, ficou cool. Mas tirou o pôster de Chico da parede. Alguns dias depois, após inúmeras interferências de amigos comuns, Boni encerrou o assunto e mandou recolocar o pôster de Chico. Mas, mesmo se quisesse, Chico não poderia retribuir: em sua fúria, tinha arrancado o retrato de Boni da parede, levado para a calçada, pisoteado e depois, a caminho de casa, jogado na Lagoa. No fim do verão de 1972, Elis se separou mesmo de Ronaldo, num
divórcio tão previsível quanto tempestuoso. Desde que rompeu comigo, o dramático telefonema ao lado de Ronaldo na clínica, eu tinha automaticamente deixado de ser seu produtor. E por sorte, ou pela amizade de André Midani, escapei de ser despedido da Philips por mau comportamento, como gostariam Elis e Ronaldo.
Como não produzia mais as trilhas de novelas, sem Elis, minha carreira de produtor sofria rude golpe. Roberto Menescal voltou a produzir seus discos, agora com a direção musical e o piano de César Camargo Mariano e uma banda totalmente diferente, talvez melhor, com um grande repertório, que lançava “Águas de março”, de Tom Jobim, o sucesso “Casa no campo”, um “rock rural” de Tavito e Zé Rodrix, e “Nada será como antes”, de Milton e Ronaldo Bastos, a única música do “nosso” tempo que sobreviveu à sua nova fase: “Eu já estou com o pé nessa estrada qualquer dia a gente se vê sei que nada será como antes, amanhã...”
Um grande disco, mais equilibrado e sem aventuras, com um repertório de alto nível e uma Elis mais discreta e precisa. No disco inteiro ela se apresenta mais técnica e contida, mas em uma música explode de emoção como nunca e se derrama, chora e soluça as palavras de “Atrás da porta”, uma de suas maiores performances em disco. Quando Elis conheceu a música, levada por Menescal, a melodia de Francis Hime tinha só a primeira parte da letra de Chico Buarque. Elis e César ficaram apaixonados pela música e a gravação foi marcada para dentro de três dias. Nesse meio tempo, Menescal e Francis tentariam dar uma pressão em Chico para terminar a letra. À noite, separada de Ronaldo, sozinha na casa branca da Niemeyer, Elis resolveu fazer uma sessão de cinema, convidando alguns amigos, entre eles César, para ver Morangos silvestres, de Bergman, um clássico-cabeça da época. Mal o filme começou, César recebeu um bilhete de Elis, foi ao banheiro ler e se espantou: era um “torpedo” amoroso. Atônito, César leu e releu, acreditou e sumiu: completamente fascinado por Elis, era tudo o que secretamente desejava. E temia. Então sumiu. Não foi encontrado nos dois dias seguintes em lugar nenhum, os amigos se preocuparam. Mas no dia e hora da gravação, duas da tarde, César estava no estúdio, Menescal se sentiu aliviado e Elis sorriu sedutora. César dispensou os músicos, pediu para todo mundo sair, para colocarem o piano no meio do estúdio, baixarem as luzes e deixarem só ele e Elis, para a gravação do piano e da voz-guia de “Atrás da porta”. Extravasando seus sentimentos, misturando as dores da separação com as esperanças de um novo amor, Elis cantou, mesmo sem a segunda parte da letra, com extraordinária emoção, com a voz tremendo e intensa musicalidade. Na técnica, quando ela terminou, estavam todos mudos. Elis chorava abraçada por César. Juntos, César e Menescal foram levar a fita para Chico, que ouviu, chorou, e terminou a letra ali mesmo, no ato.
“Dei pra maldizer o nosso lar, pra sujar teu nome, te humilhar e me vingar a qualquer preço te adorando pelo avesso pra mostrar que ainda sou tua...” Assim, Elis Regina cantou a versão definitiva de uma das mais poderosas e dilacerantes letras de amor e ódio da música brasileira, produziu uma gravação antológica e emocionou o Brasil com sua arte. E ganhou um novo namorado, com quem esperava crescer na música e na vida. Na TV Globo, além de ser um dos repórteres do telejornal “Hoje”, cobrindo a área de arte e cultura, passei a ser o primeiro VJ da televisão brasileira, apresentando o “Sábado som”, onde foram vistos pela primeira vez grupos como o Pink Floyd e o Black Sabbath. Não eram videoclips, mas filmagens de concertos americanos e ingleses que eu implorava que Boni comprasse, selecionava os números e comentava os grupos. Antes, na televisão, não havia nada de rock internacional e o “Sábado som” se tornou um must entre adolescentes como Renato Russo, Cazuza e Lulu Santos, que não perdiam um. No fim do ano, quando saí de férias, pedi a um querido amigo e colega na TV Globo (e que conhecia muito mais rock do que eu) para me substituir no “Sábado som”: Big Boy, o maior disc-jockey da história do rádio brasileiro, que já apresentava música internacional no telejornal “Hoje”.
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