Páginas

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



O grupo ficou besta, diante de uma farsa tão divertida e competente, de uma dupla de tanto talento, tão rock’n’roll. “Eu sou astrólogo, eu sou astrólogo, vocês precisam acreditar em mim, eu sou astrólogo, e conheço história do princípio ao fim.” Era como eles cantavam com sinceridade em “Al Capone”. Raul e Paulo, estourando um sucesso atrás do outro, atingindo o Brasil de A a Z, ídolos de pirados, friques e doidões do Oiapoque ao Chuí, estavam mergulhados em seu maior projeto: a “Sociedade Alternativa”. Fizeram até um hino, um hino-rock, um grito de guerra, que o público cantava com entusiasmo nos shows. Era um manifesto anárquico e libertário, alegre e divertido, absolutamente subversivo por qualquer
critério. Nos shows, o público gritava de punhos cerrados: “Viva! Viva! Viva a Sociedade Alternativa!”  E Raul respondia: “Faze o que tu queres, pois é tudo da lei.” O problema era que Raul e Paulo queriam materializar a “Sociedade Alternativa”, comprar um grande terreno no interior, construir a “Cidade das Estrelas”, organizar uma comunidade com regras e estatutos baseados na doutrina satânica de Aliester Crowley, fazer um jornalzinho, promover shows e reuniões: a sociedade, de alternativa, virava civil, com CGC e tudo. E colocava a dupla no radar da paranóia militar.

As tardes na Philips continuavam animadas. No estúdio, recebemos uma visita especial: diversos executivos da matriz holandesa que faziam uma visita à filial brasileira, para ver de perto o que eles estavam considerando um fenômeno de sucesso e lucratividade. Tim Maia, que estava gravando, saiu discretamente para fumar um baseado no seu “garrastazu”, que era como ele chamava um esconderijo, um mocó, um lugar secreto, dizendo com grande lógica que  era a palavra mais “limpeza” que existia, a que menos despertava suspeitas. Claro: era o nome do ditador-presidente, general Emílio  Garrastazu Médici. O “garrastazu” de Tim era uma salinha escura, úmida e de difícil acesso, cheia de canos e bombas, onde ele fumou tranquilamente seu baseado, sem nem desconfiar que estava na central do ar condicionado: não só o estúdio como o andar inteiro foram invadidos por um cheiro de maconha como nem nas ruas de Amsterdam se sentia. Meio constrangidos, os diretores brasileiros explicaram aos holandeses que Tim, além de muito peculiar, era o maior vendedor de discos da companhia — e eles acharam tudo muito divertido. Mas Tim estava preocupado: tinha comprado um terreno no alto do Sacopã, com uma bela vista para a Lagoa, e construído uma casa destinada a ser a sede de sua gravadora Seroma (Sebastião Rodrigues Maia). Deu tudo certo. O único problema é que Tim tinha construído a casa não no seu terreno, mas no do vizinho, que entrou imediatamente com uma inédita ação de despejo. Acabou comprando o terreno do vizinho por um preço absurdo e vendendo o seu baratíssimo. Em Ipanema, no final do ano, o poeta Torquato Neto, uma das forças criativas do tropicalismo, autor de algumas de suas melhores letras e companheiro de Gil e Caetano no exílio em Londres, fechou as portas e janelas de seu apartamento e abriu o gás. Não foram só musicais as grandes transformações de Elis depois da separação de Ronaldo e do início do namoro com César Mariano. Pessoalmente, ela começou a sofrer as conseqüências da radicalização política quando foi convidada — junto com outros artistas — para cantar nas Olimpíadas do Exército.

Um convite como esse era virtualmente indeclinável. O coronel encarregado do evento ligava para o empresário do artista e convocava, amavelmente. No caso do artista “já ter compromisso”, se dispunha a “interceder” com o clube que já tinha contratado um show no mesmo dia, convencê-lo a mudar a data, num tempo em que qualquer patente militar ao telefone já fazia tremer o interlocutor. Pagava o cachê normal do artista. Mandava buscar e levar em casa. Para recusar, só mesmo dizendo que não cantava para o inimigo. E Elis cantou. Foi chamada de traidora, amaldiçoada no meio musical, colocada no temido “cemitério dos mortosvivos” que o cartunista Henfil mantinha no Pasquim. Ficou furiosa, mudou drasticamente de atitude e passou a acrescentar uma nova prioridade a seu repertório: músicas com letras políticas, mesmo que metafóricas. Mudou-se para São Paulo
e saiu da TV Globo. Caiu na estrada, de ônibus, com músicos, técnicos, produtores e assistentes, se apresentando em 36 cidades do interior de São Paulo, no que imaginava ser um circuito alternativo, de estudantes. Como Bob Dylan e Joan Baez, ela queria cruzar o país com seu pessoal, como uma família, cantando para os jovens e rebeldes, conversando com eles, cantando pela liberdade e pela resistência democrática. Mas não foi nada disto: a turnê, organizada a seu pedido pelo empresário Marcos Lázaro, não tinha shows em clubes — que Elis detestava, achava caretas e comerciais —, só em ginásios e grandes auditórios. 

Mas o público não era de estudantes, como ela esperava: os ingressos eram caros e era o mesmo pessoal que a assistiria nos clubes que ela desprezava, que gritava para que ela cantasse “Upa neguinho”, “Madalena” e “Quaquaraquaquá”, tudo o que ela não queria. No final da turnê, rompeu seu contrato de dez anos com Marcos Lázaro, não queria mais ser uma cantora “comercial”, queria prestígio e independência — e redenção política. No novo disco gravou quatro músicas da nova sensação de compositor, o mineiro João Bosco, sofisticadíssimas, com letras de alto nível artístico e político de Aldyr Blanc, mais quatro de
Gilberto Gil, reflexões existenciais como “Oriente” (“Se oriente, rapaz...”), que abria o disco.
Para completar, dois velhos sambas, talvez as melhores faixas do Lp. “Folhas secas”, uma obraprima, das últimas, do veterano Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, e um samba de velhos carnavais, um clássico popular de Pedro Caetano: “É com esse que eu vou”. Com essas duas gravações perfeitas, Elis cristalizava um estilo de cantar samba, oposto à estridência jazzística de Samba eu canto — assim e à exuberância rítmica dos sambões de Baden Powell e Paulo César Pinheiro. Mínima, discreta, sintética, Elis escondia as sílabas com dicção perfeita, dava menos volume à voz, sofisticava as divisões rítmicas, valorizava os silêncios, não desperdiçava nada. Epa! Parece que ela — finalmente — também se rendeu à magia de João Gilberto. Uma parte do seu público sentiu como “frieza” e “distanciamento” esse novo jeito de Elis cantar samba; outra encantou-se com seu refinamento e sutileza, combinados com uma soberba base musical, liderada pelo piano de César, valorizando as harmonias elegantes num ritmo irresistível.

Mas, cinco anos antes, por causa de um samba, Elis provocou a ira — certamente silenciosa — de João Gilberto. João tinha criado um arranjo — vocal e instrumental — absolutamente inovador e magistral para o velho e esquecido samba “Nega do cabelo duro”, de Rubens Soares e David Nasser. Suas divisões rítmicas, suas sequências de acordes surpreendentes transformavam a música completamente. João tinha criado uma pequena obra-prima, mais uma. Empolgado, cantava-a para amigos, em casa, pelo telefone. Até que um deles, provavelmente uma, com bom ouvido e memória musical, de tanto ver João tocar e cantar, aprendeu tudo tintim por tintim. E, empolgada, mostrou ao amigo Roberto Menescal, que, mais empolgado ainda, mostrou para César e Elis, que, empolgadíssima, aprendeu e gravou, tal e qual o original. João se sentiu roubado, passou a ter um cuidado quase paranóico com o que mostrar e a quem, se aperfeiçoando na arte de jamais tocar duas vezes a mesma música com os mesmos acordes. Mas era tarde demais: o bem já estava feito. Em maio de 1973, Elis era uma das estrelas do grande evento da Philips — o festival “Phono 73” —, três noites em São Paulo com todo o seu elenco milionário reunido em duplas, algumas delas surpreendentes e provocativas, como Caetano Veloso e o rei do “brega jovem”, Odair José, grande sucesso popular com suas músicas de amor para prostitutas (“Eu vou tirar você desse lugar”) e empregadas domésticas, na crista da onda com o hit “Pare de tomar a pílula”. Mesmo sendo um festival sem prêmios, promovido por uma gravadora, na plateia do Phono 73 os ânimos estavam exaltados. O público e a imprensa ansiavam por novidades, surpresas, intervenções políticas, rebeldia e resistência. A Philips esperava gravar tudo ao vivo e lançar em três discos, valorizando e movimentando seus talentos em duetos, somando públicos, lançando novas músicas e novas versões de antigos sucessos, misturando suas estrelas estabelecidas com as jovens revelações musicais.

Quando entrou no palco, tensa e de cara fechada, Elis foi recebida com frieza pelo público passional e politizado. Entre os aplausos pouco entusiasmados, alguns assobios e uma voz raivosa que grita “Vai cantar na Olimpíada do Exército!”, provocando uma pororoca de vaias e aplausos e a réplica “Respeitem a maior cantora do Brasil”, atribuída a Caetano. Pior — ou melhor — se saíram Chico Buarque e Gilberto Gil, que tinham feito uma música perfeita para expressar o momento e o estado de espírito que vivíamos, de repressão e sofrimento, de medo e desconfiança, apropriadamente chamada, em tempos de boca calada obrigatória, “Cálice”: “Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue.” A música era um protesto tão sentido, tão doloroso e apropriado, tão óbvio, que a Censura Federal naturalmente a proibiu. Mesmo não constando da lista aprovada pela Censura, Chico e Gil decidiram cantá-la, sem a letra, só dizendo a palavra “cálice”. E assim tentaram fazer, no meio da gritaria do público, e nem isto conseguiram. O som do microfone foi cortado. Na versão oficial, por agentes da repressão, porém o mais provável é que tenha sido um funcionário mais apavorado da Philips, para evitar represálias. Ou talvez o censor, abominável presença obrigatória que acompanhava todos os shows, tenha mandado o técnico cortar o som. O fato é que Gil e Chico não conseguiram cantar — embora com isso tenham provocado ainda mais barulho.

A grande vitoriosa do Phono 73 foi Gal Costa, sem fazer política, estritamente musical e até religiosa, dividindo o microfone com Maria Bethânia na lindíssima e inédita “Oração a Mãe Menininha”, de Dorival Caymmi. As duas, filhas do terreiro do Gantois, Iansã e Oxum, respectivamente, levantaram o público e no final da música, de mãos dadas, se beijaram na boca. De Gal também foi a música que se tornou o maior sucesso popular do Phono 73, uma esperta reinterpretação do velho sucesso local “Trem das onze”, um clássico “samba italiano” de Adoniram Barbosa delirantemente recebido pela platéia paulistana. O público envaidecido cantou entusiasmado com Gal o refrão edipiano. “... minha mãe não dorme enquanto eu não chegar, sou filho único, tenho minha casa pra olhar não posso ficar (breque), não posso ficar.” 

Depois de uma viagem a Paris, Londres e Nova York, que Marília não conhecia, passamos a morar juntos numa cobertura em Copacabana. Convidada pela TV Globo para estrelar um especial mensal — “Viva Marília!” — que entraria no lugar do “Elis especial”, Marília me chamou para ser o produtor musical e um dos roteiristas do programa, junto com Domingos Oliveira e Oduvaldo Vianna Filho. A direção musical seria de Guto Graça Mello e eu faria também as letras das músicas que seriam compostas especialmente para o programa, onde Marília receberia convidados para quadros de comédia, drama e musicais. A surpresa era a indicação da TV Globo para a direção: a dupla Miele e Bôscoli. Na primeira reunião de produção, pela primeira vez depois de tudo que tinha acontecido, fiquei cara a cara com Ronaldo. Nos cumprimentamos com naturalidade e até com certa efusão tensa e exagerada. Eu estava aliviado por encerrar aquela briga, aquela culpa, aquela história pesada de amor e traição. Acho que ele também, embora com Ronaldo fosse impossível ter certeza do que ele realmente sentia. Como dois Escorpiões, ele era de 28 e eu de 29 de outubro, guardamos os ferrões e nos entendemos. Ele estava casado de novo, com uma advogada, eu com Marília. Elis era uma palavra proibida.



* A presente obra é disponibilizada por nossa equipe , com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário