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segunda-feira, 1 de agosto de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*




Imediatamente brigou com todos os sócios, despediu todo o escritório, cancelou todos os shows e demitiu a banda inteira. Ficou louco. Em vez de falar com um advogado, fazer uma auditoria e abrir um processo, confiando em sua popularidade e sua malandragem, chamou um amigo policial para dar um aperto no contador e saber onde tinha ido parar o dinheiro. Depois o levaram como testemunha para a delegacia, onde Simonal foi registrar queixa contra os seus sócios e administradores.

Mas a manobra bombou: ajudado pelos sócios que Simonal acusava, quem deu queixa foi o contador e foi aberto um processo contra Simonal, por sequestro, agressão e coação. O caso foi para os jornais, as notícias eram estarrecedoras. Diziam que Simonal tinha amigos policiais, e pior, no DOPS, o órgão central de repressão política; que Simonal tinha seqüestrado o contador e tinha uma carteira da polícia, que Simonal era dedo-duro. O escândalo explodiu, cresceu, ganhou versões e interpretações, pegou fogo. No clima de paranóia geral, numa hora em que, mesmo sob tortura, muitos não entregavam seus companheiros, a delação era o pior crime. E estavam dizendo que Simonal era dedo-duro. Era o que de pior poderia lhe acontecer. Simonal tinha adversários poderosos nos negócios, a antipatia de boa parte da imprensa e da esquerda, que o consideravam um instrumento da ditadura, um símbolo do Brasil do ufanismo militar. Na melhor das hipóteses, era considerado um alienado, um “inocente útil”. Nesse tempo de guerra, só ser acusado de dedo-duro, mesmo sem provas, já era o suficiente para destruir qualquer reputação. A acusação em si era tão grave que já era uma condenação: todos os desmentidos eram insuficientes e inúteis. Se era ou não, nunca se soube ao certo. Mas, por todos os motivos, não fazia o menor sentido ser.

Simonal era uma estrela, uma figura pública, não tinha exatamente o perfil de alguém que fosse espionar — para depois entregar — seus colegas. Simonal não tinha nenhum acesso nem merecia qualquer confiança — muito pelo contrário — dos grupos musicais mais sérios e politizados. Simonal não entendia nada de política e nem de conspiração, entendia de pilantragem, louras e carrões. E tinha péssimas amizades, à sua volta circulavam aproveitadores e malandros, perfeitos exemplares do recém-cunhado termo “aspone”, assessor de porra nenhuma. E pior, quanto mais sucesso fazia, mais arrogante se tornava, mais vaidoso, mais auto-suficiente, e mais gente tinha à sua volta. No palco, era divertidíssimo, o público o adorava, mas na vida real cada vez mais gente o detestava pelas costas. E certamente cada vez mais o invejavam, sua voz, seu sucesso, seu dinheiro, suas louras e seus carrões. E pior ainda: Simonal era negro, o primeiro negro brasileiro a chegar lá, no ponto mais alto do show business, a vender milhões de discos, a cantar para milhões de pessoas. E isto também alimentava um intenso e corrosivo ressentimento nos terrenos pantanosos do racismo à brasileira.

Simonal estava sozinho e sem dinheiro. Sem trabalho, condenado como dedo-duro sem processo, processado por sequestro. Estava liquidado. Por mais duro, distante e dolorido que fosse, o exílio de Gil e Caetano os aproximou do grande público brasileiro — do qual a radicalização do tropicalismo os tinha afastado. Todo mundo passou a gravar músicas de Gil e Caetano no Brasil, até Roberto Carlos, o rei indiscutível, que não gravava ninguém de fora de sua área, gravou “Como dois e dois”, estupenda canção que Caetano fez especialmente para ele. E mais: retribuiu com a comovente “Debaixo dos caracóis”, estrondoso sucesso nacional, contribuindo muito para abrir o caminho de volta para Caetano. Em Londres, Caetano vivia o exílio de maneira melancólica, incomodado com o frio e a saudade, produzindo músicas mais densas e introspectivas, ansioso por voltar. Gil parecia muito mais adaptado e animado, mergulhado naquela vida pop com que sonhávamos, indo a concertos de Jimi Hendrix e ao Festival Ilha de White, totalmente integrado e produtivo. Gil convivia com músicos ingleses, tocava guitarra, fumava maconha e cantava: “O sonho acabou, quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou...”

Na Itália, Chico comeu a pizza que o diabo amassou. Seus discos não aconteceram e os shows eram poucos e mal pagos. Pelo menos teve a companhia e o violão do velho amigo Toquinho, que foi para lá assim que Chico chamou, acenando com uma temporada de shows — que não aconteceram. Até em festa de casamento eles cantaram. Chegaram ao ponto máximo — ou mínimo — de uma turnê de 45 dias pela Itália do tipo uma cidade por dia, fazendo a abertura do show da já veteraníssima Josephine Baker. Eles, uma cantora canadense e um grupo de rock, que viajavam de ônibus: a diva ia de Mercedes. Depois que nasceu sua primeira filha, a vida ficou ainda mais difícil para Chico e Marieta, que se mudaram para um apartamento menor no Piazzale Flaminio. A salvação eram os parcos direitos autorais de suas músicas, o que sobrava da ladroeira de editores, e os magros royalties da venda de seus discos no Brasil. As prestações da cobertura que tinha comprado na Lagoa estavam atrasadas, as perspectivas na Itália eram sombrias e o frio intenso. A coisa estava feia quando Chico recebeu — através do produtor Manoel Barembein — uma proposta de André Midani para sair da RGE, que estava desinteressada dele depois do fracasso italiano, e ir integrar a “seleção brasileira” da Philips.

E o melhor de tudo: com um adiantamento de US$ 21 mil. Manoel Barembein voou para Roma com o contrato e só voltou para o Brasil com uma fita com Chico cantando as músicas do disco. Algumas ele tinha prontas, mas ainda teve que fazer várias a toque de caixa, com Manoel bufando no seu cangote dia e noite. Algumas eram extraordinárias, como os sambas-blues “Samba e amor” e “Pois é”, com Tom Jobim, e outras nem tanto, como “Essa moça tá diferente”, que soava queixosa e meio passadista. Com as músicas gravadas por Chico se acompanhando ao violão, Manoel encomendou os arranjos, gravou os play-backs com a orquestra no Rio e voltou para Roma, onde Chico gravou a voz no estúdio. Mas Chico só pensava em voltar. André Midani, que ainda não conhecia Chico pessoalmente, lhe disse pelo telefone que as coisas no Brasil estavam melhorando e Chico, que estava louco para acreditar, acreditou. Para André o que interessava era ter o seu artista no Brasil, trabalhando o seu disco. E, apesar de tudo, não acreditava que Chico pudesse ser preso: seria um escândalo internacional. Por via das dúvidas, aconselhado por Vinícius, Chico decidiu voltar, em março de 1970, “fazendo barulho”: lançando um disco, fazendo uma temporada na Sucata e gravando um especial para a TV Globo.

E assim foi: com a TV Globo e a imprensa o esperando no aeroporto, com as notícias do disco, do show e do especial, Chico, Marieta e Silvinha chegaram em paz. Neste tempo, entrar ou sair do Brasil era sempre um suspense, quando se entregava o passaporte à Polícia Federal, que vasculhava livros e fichas durante intermináveis minutos, invisível atrás de cabines fechadas. Podia-se sair dali direto para a cadeia sem maiores explicações. Trabalhei como produtor musical do especial de Chico na Globo, dirigido por João Lorêdo, que não era especializado em musicais mas em humorísticos, e produzido por um assistente de Boni, um querido amigo, um adorável doidão chamado Clemente Neto, que chamávamos de “Demente Neto” e ele fingia que se zangava e corrigia: “Doutor Demente Neto, doutor!”

Não poderia mesmo ter dado muito certo. As novas músicas de Chico não eram muito populares e, compreensivelmente, eram bem tristonhas; e as antigas já eram muito conhecidas. Teve até um incrível número em que a grande Claudete Soares saía de dentro de uma rosa cantando “Olê olá”, mas apesar de tudo o programa agradou às legiões de fãs saudosos de Chico. Para ele serviu para marcar sua presença e para lançar seu disco, para de alguma forma protegê-lo de alguma truculência maior. De certa maneira a segurança de Chico dependia bastante de sua popularidade e seu prestígio. Quanto maiores fossem, mais difícil silenciá-lo ou prendê-lo — como tinham feito com muitos de seus amigos.



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