Por Luiza Franco
Da porta de entrada do apartamento de Hermeto Pascoal já se ouvia o ronco que vinha da sala.
Depois de atravessar o corredor, com partituras penduradas na parede como num varal, avistou-se a figura.
Sentado no sofá, um senhor pequeno, com a barriga protuberante aparecendo entre os botões da camisa florida, um chapéu de couro escondendo o rosto. Só se via a barba branca até o peito.
O ronco tinha ritmo. O Bruxo multi-instrumentista, o "albino maluco", como Miles Davis o apelidou, é conhecido por tirar som de qualquer coisa –animais, natureza, objetos do cotidiano.
Além de ser capaz de tocar piano, flauta transversal, sanfona, bateria, violão, já fez de instrumento xícaras, porcos, uma piscina vazia, abelhas. E, claro, o próprio corpo, cujos sons lhe renderam um DVD inteiro, "Hermeto Brincando de Corpo e Alma" (2012).
Hermeto não dormia de verdade quando a Folha chegou ao apartamento –estava pregando uma peça. Costuma aprontar alguma com todos que conhece.
O músico completa 80 anos nesta quarta (22), mas diz que se sente uma criança.
"Me preocupo um pouco porque não consigo ter 80 anos. Não consigo ver que tenho 80 anos. Não consigo sentir que tenho 80 anos. Não é medo, não é o abismo. Fiquei diabético com 71. Quando soube, veio na hora uma alegria. Meu pai teve com 65. Aguentei até os 71 comendo tudo o que queria."
Mora com o filho, Fábio, num apartamento em Bangu, zona oeste do Rio. A família está há quatro gerações no bairro, onde foi inaugurada neste ano a Areninha Carioca Hermeto Pascoal, centro cultural da Prefeitura do Rio, que abrigará shows e uma exposição para marcar os 80 anos.
No início do mês, o Centro Cultural Sesc Paraty realizou uma programação em sua homenagem, que incluiu show e oficina para músicos.
DE CURITIBA A BANGU
Hermeto vive em Bangu há um ano, desde que se separou da namorada, a cantora Aline Morena, 43 anos mais jovem do que ele, com quem morava em Curitiba.
Decoram as paredes telas, chaleiras, bolsas, chapéus, toda sorte de objetos, e todos cobertos por desenhos de notas musicais. São composições de Hermeto.
"De uns anos para cá, ele abandonou as partituras e começou a escrever em qualquer lugar", diz Fábio.
O Bruxo estima ter cerca de 8.000 composições. "Só ontem fiz sete."
Hermeto nasceu sem sobrenome (o Pascoal era o primeiro nome do pai) numa família de agricultores no interior de Alagoas. Para proteger sua pele albina do sol, foi poupado da colheita.
Em geral, músicos citam o trabalho de outros músicos como fonte de inspiração. Hermeto cita os bichos.
No disco "Slaves Mass" (1977), levou porcos para gravar no estúdio e para participar de seus shows. "Isso foi sensacional. E foi influência desse meu tempo de mato. Eu conheço tudo dos bichos."
FERROS
O que sobrava de material do seu avô, que era ferreiro, ele pendurava num varal e tirava sons."Minha mãe um dia me viu batendo ferros e foi desesperada falar com o meu avô porque achou que eu estava ficando maluco", conta.
"As pessoas me perguntam há quanto tempo eu sou músico. Eu respondo: 80 anos. Nasci músico. Música não se aprende, você nasce com ela."
Chegou até os 80 sem conseguir, e sem que conseguissem, enquadrar num gênero o som que faz. Chama de "música universal".
"Não é a música do Hermeto, é a música nossa. Falo na música universal por sentir que o Brasil é o mundo. Você olha para a cara das pessoas e já vê logo que aqui tem de tudo. A música que eu chamo de universal é aquela que não tem preconceito nenhum."
No meio da frase, Hermeto foi interrompido pelo barulho de uma buzina lá fora. "Olha esse aí, tá bom! Uiiii", e começa a dialogar em sons com a buzina.
Depois de ter tocado com Tom Jobim, Miles Davis (que gravou duas músicas dele sem dar crédito, algo que Hermeto minimizou) e Elis Regina e de ter sido tema de mestrado, doutorado e pós-doutorado sem ter terminado a escola, diz que não gosta de pensar sobre o passado nem de fazer planos para o futuro.
"Não olho para trás nem me preparo para o futuro porque o atrás já me vê mais do que eu poderia ver. Não quero olhar para frente. Meu negócio é o hoje", diz.
SEIS TEMPOS Momentos-chave da vida e da carreira do artista
PRIMEIRAS NOTAS
Em 1950, aos 14 anos, Hermeto deixa Alagoas rumo ao Recife, onde inicia a carreira tocando pandeiro e sanfona em grupos de rádios locais
SOM CARIOCA
Em 1958, no Rio de Janeiro, toca sanfona com o grupo Regional de Pernambuco do Pandeiro, com quem lança o disco "Batucando no Morro"
PLURAL
Atua como flautista, pianista, arranjador e compositor com o Conjunto Som Quatro (1964) e o Quarteto Novo (1967) em álbuns homônimos
VOO SOLO
Em 1973, lança o disco "A Música Livre de Hermeto Paschoal", seu primeiro gravado no Brasil, com "Asa Branca" e "Carinhoso"
TIPO EXPORTAÇÃO
Após ser chamado por Miles Davis de "o maior do mundo", grava "Slaves Mass" (1977) nos EUA. Em 1979, toca no festival de Montreux
ROMÂNTICO
Muda-se para Curitiba com a cantora Aline Morena. Ao lado dela, lança "Chimarrão com Rapadura" (2006) e "Bodas de Latão" (2010)
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