Chão de Estrelas, obra-prima de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa
Semana passada, trouxe Maracatu Atômico, canção que considero a versão original, de Mautner e Jacobina, mais atrevida que as sucessivas releituras que vieram, à frente a excelente e definitiva com a marca de Gilberto Gil.
No “Dose Dupla” de hoje, trataremos de um dos maiores clássicos da MPB em todos os tempos e uma versão, no mínimo, muito polêmica.
Chão de Estrelas, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa, que considero um dos três pilares de nosso cancioneiro, ladeado por “Rosa”, de Pixinguinha e Otávio de Souza, e “Carinhoso”, de Pixinguinha e letra temporã de João de Barro.
Maysa interpreta “Chão de Estrelas”, em 1969, no Canecão, Rio
Embora seja arroz de festa em toda roda de seresta, de samba e de cantoria pelo Brasil afora, é importante oferecer algumas informações factuais que muitos desconhecem. Para confirmar esses dados, auxiliei-me do site musical “Chão de Estrelas”.
Chão de Estrelas chamava-se incialmente “Sonoridade Que Acabou”. Foi escrita por Orestes Barbosa (1893 – 1966) e musicada por Silvio Caldas (1908-1998) em 1935. Seu lançamento em disco aconteceu em 1937.
Ainda ancorando-me no site especializado, “a música despertou fascínio de diversos poetas, dos quais o destaque para Guilherme de Almeida, a quem Silvio Caldas mostrou a canção. O poeta deu o nome definitivo de “Chão de Estrelas”.
Guilherme escreveu, em 1965, uma crônica em que revela: “Nem de nome eu conhecia o autor. Mas o que então dele pensei e disse, hoje o repito: uma só dessas duas imagens – o varal das roupas coloridas e as estrelas no chão (…) – é quanto basta para que ainda haja um poeta sobre a terra”.
Na mesma época, Manuel Bandeira disse:
Se se fizesse aqui um concurso, como fizeram na França, para apurar qual o verso mais bonito da nossa língua, talvez eu votasse naquele de Orestes em que ele diz: “Tu pisavas nos astros distraída…”. (Manuel Bandeira, Jornal do Brasil, 18 de janeiro de 1956).
A letra
Minha vida era um palco iluminado
Eu vivia vestido de dourado
Palhaço das perdidas ilusões
Cheio dos guizos falsos da alegria
Andei cantando a minha fantasia
Entre as palmas febris dos corações
Meu barracão no morro do Salgueiro
Tinha o cantar alegre de um viveiro
Foste a sonoridade que acabou
E hoje, quando do sol, a claridade
Forra o meu barracão, sinto saudade
Da mulher pomba-rola que voo
Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda, qual bandeiras agitadas
Pareciam um estranho festival
Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional
A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros, distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão
Chão de Estrelas, pelos Mutantes – 1970
Porém, além de procurar o tanto quanto possível conhecer, ao menos, os grandes clássicos da MPB, já me ligava no cotidiano do tropicalismo, muito da bossa nova, sambas-canção e o que aparecesse de novo, além das múltiplas referências internacionais que aqui consumíamos.
Até que, em 1970, 20 anos depois de sua última gravação, “Chão de Estrelas” voltou numa versão acentuadamente psicodélica e chegando as raias da paródia, com alteração de letra e tudo o mais. Foi no álbum “Divina Comédia” (Ando Meio Desligado).
Confesso que fiquei incomodado com aquela versão. À época, foi muito criticada pelos ‘puristas’ da música convencional.
Pois eu me incluo no grupo destes puristas, nunca a versão dos Mutantes me convenceu como releitura da obra de Silvio e Orestes. Purismo sim, preconceito não. A primeira parte é apenas uma versão, com voz de cantor de rádio, satirizando o modelo, mas respeitando a melodia e a letra. Na segunda parte, é uma esculhambação, barulhos, sons distorcidos e uma parodia de mau gosto.
Bom destacar que tenho todos os discos dos Mutantes, com e sem Rita Lee, seus belíssimos acompanhamentos em festivais, a sua qualidade melódica e o talento de seus músicos – com destaque para Sérgio e Arnaldo. É para mim, até o hoje, a melhor banda musical brasileira de todos os tempos. Mas “Chão de Estrelas” foi um “assassinato”….
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