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segunda-feira, 18 de julho de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



Boni me deu a notícia e determinou que eu continuaria produzindo as trilhas das novelas, só que agora para a Som Livre. Criei coragem, agradeci e expliquei que tinha um contrato com a Philips, que devia lealdade a André e que não poderia aceitar. Claro que ele não gostou. Como eu também era contratado da TV Globo e também lhe devia lealdade, esperei que ele berrasse uma de suas frases favoritas: “Tá na rua, seu merda!” Mas ele respeitou minha decisão. E procurou outro produtor. O problema da Som Livre era que ela não tinha artistas: todos eram contratados das outras gravadoras, a maioria absoluta da Philips, e ninguém emprestava ninguém. Teria que inventar intérpretes para as músicas que os mesmos compositores que vinham fazendo as trilhas comporiam. Mas além das músicas e do marketing, uma das forças das trilhas era a qualidade e popularidade dos intérpretes, o primeiríssimo time da MPB. E isto só a Philips tinha. Mas talvez a minha principal razão para não sair da Philips e ir para a Som Livre fosse Elis Regina. Depois do sucesso dos discos de novela, André sugeriu, Elis gostou e Ronaldo aprovou: eu seria o seu novo produtor.

O que mais poderia sonhar um produtor com menos de um ano de estrada? Ia trabalhar com a melhor, a maior, a minha mais querida voz. A era dos festivais começou a acabar melancolicamente em 1969, com a vitória da valsinha “Cantiga por Luciana”, de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, no Rio de Janeiro, e da sufocante “Sinal fechado”, de Paulinho da Viola, em São Paulo, onde as guitarras elétricas foram proibidas. Não havia mais vontade de competir, havia muito medo e uma censura implacável. Depois de tudo que tinha acontecido, tão intensamente, o público também tinha se cansado e a fórmula estava se esgotando. Caetano e Gil estavam em Londres, Chico em Roma, Vandré no Chile, Edu e Francis em Los Angeles, Tom e João em Nova York. Uma das poucas músicas interessantes dos últimos festivais foi “Charles anjo 45”, de Jorge Ben, onde ele desenvolvia um estilo de canto falado, ou de fala cantada, ainda mais radical e balançado, com uma letra sonora e polêmica sobre um “Robin Hood dos morros”, que antecipava o reinado dos traficantes nas favelas cariocas. A música foi inscrita no festival pela Philips, sua gravadora, sem que Jorge soubesse. Gravada por Caetano numa fita, foi enviada à comissão de seleção e surpreendentemente liberada pela Censura. Cantada no festival por Jorge e vaiada pelo público, depois foi lançada na versão original de Caetano, com um arranjo de cordas de Rogério Duprat, e tornou-se um sucesso, mantendo seu nome vivo e forte no Brasil. “Oba oba oba Charles, como é que é my friend Charles, Charles, anjo 45, protetor dos fracos e dos oprimidos, Robin Hood do morro, rei da malandragem...”

Elis participou — pelo segundo ano seguido — do festival do MIDEM, em Cannes, a grande vitrine européia do disco, onde eram fechados os contratos de distribuição internacional e as turnês europeias. Cantou três músicas de Edu Lobo — “Corrida de jangada”, “Memórias de Marta Sare” e “Casa Forte” — e pôs o auditório abaixo. Foi recebida como uma grande estrela: no ano anterior ela tinha realizado a façanha de duas temporadas de sucesso no Olympia de Paris, um templo do show business internacional. Pouco depois voltou a Londres, onde gravou em dois dias, direto com a orquestra, cantando ao vivo, um Lp com arranjos do maestro inglês Peter Knight. Seis músicas em português e seis em inglês, entre elas versões de músicas de Tom Jobim, Edu Lobo e Roberto Menescal. Sem falar inglês, Elis tinha um ouvido tão apurado que lhe permitiu cantar “Watch What Happens”, de Michel Legrand, e “A Time for Love”, de Johnny Mandei, com um levíssimo sotaque que acrescenta charme à sua dicção perfeita e sua intensa musicalidade. Antes já tinha gravado em francês impecável, que também não falava, outra música de Legrand, “Récit de Cassard”, de “Les Parapluies de Cherbourg”, e uma versão francesa de “Noite dos mascarados”, em dueto com Pierre Barouh. Um mês depois do disco inglês, gravou um Lp na Suécia com o gaitista — e jazzista respeitado internacionalmente — Toots Thielemans. Mas nenhum dos discos foi lançado no Brasil.

A violência e brutalidade da prisão e exílio de Gil e Caetano tinham virado completamente o jogo dentro da música brasileira. Mesmo os que combatiam mais radicalmente o tropicalismo se solidarizaram com eles, muitos até se sentiram culpados, todos se sentiram ameaçados, as polêmicas musicais tiveram uma trégua, mais que nunca a ditadura era o inimigo comum. Elis não pensava nem sentia diferente. Ex-grande opositora do tropicalismo, ela reatou relações musicais com Gil e Caetano no show que fez ao lado de Miele no Teatro da Praia, cantando “Irene” e “Aquele abraço”. Com 24 anos, grávida de seu primeiro filho, Elis queria mudar, precisava mudar, mas não sabia ainda como e nem o quê. Começamos a conversar sobre o novo disco. A primeira providência, de comum acordo, foi ligar para Londres e pedir a Gil e a Caetano que fizessem  músicas especiais para ela. Alguns dias depois, nervosos e excitados,recebíamos as fitas com um grande samba de Gil, “Fechado pra balanço”, e uma espécie de marcha, uma música de ritmo estranho de Caetano, mas com uma letra absolutamente perturbadora em sua ambiguidade: “Não tenha medo, não tenha medo não, nada é pior do  que tudo. Nada é pior do que tudo que você já tem no seu coração mudo.”

Elis entendeu o recado. Os recados, porque Gil também dava o seu: “Viver não me custa nada, viver só me custa a vida, a minha vida contada. Tou fechado pra balanço, meu saldo deve ser bom.” Outro assunto dominante em nossas conversas era uma reavaliação de Roberto Carlos e Erasmo como compositores. De arquiinimiga da jovem guarda Elis passou a ser uma grande intérprete da dupla, fazendo de sua explosiva versão de “Se você pensa” um dos grandes sucessos de seu show no Teatro da Praia. Era a primeira vez que ela cantava Roberto e Erasmo.

“Se você pensa que vai fazer de mim, o que faz com todo mundo que te ama \ acho bom saber que pra ficar comigo \ vai ter que mudar. Daqui pra frente tudo vai ser diferente...” Mas Gal também tinha gravado “Se você pensa”, maravilhosamente bem, com guitarras e metais, superagressiva, e Elis preferiu gravar “As curvas da estrada de Santos” em seu novo disco. Encomendamos a Erlon Chaves um arranjo de big band, com metais suingados e estridentes, base pesada de blues, e Elis produziu uma das maiores interpretações de sua carreira, acrescentando força e dramaticidade à música, levando sua voz ao limite, quebrando o limite, terminando com a voz quebrada, rasgada, como uma blueswoman  desesperada, como uma negra americana. Como sempre, ela passava uma ou duas vezes e gravava direto, dava tudo, como se fosse ao vivo, como se fosse a sua última chance. E se alguma coisa não ia bem,  preferia gravar tudo de novo a tentar fazer remendos e consertos. No estúdio, mesmo os músicos, mesmo os técnicos experimentados, até a moça do café, todo mundo ficou mudo durante muito tempo depois que Elis acabou de cantar, enquanto ainda ecoavam os metais. Naquele mesmo estúdio, todo mundo explodiria de alegria poucos dias depois, com o dueto de Elis e um novo parceiro.

Uma tarde na Philips, alguns produtores mostravam suas novidades, procuravam músicas, trocavam idéias. Parecia uma tarde como as outras, meio trabalho e meio festa, mas depois que Jairo Pires tocou a fita de seu novo artista a sala explodiu como num gol do Brasil. Eram duas músicas, um soul romântico, com vocais elaboradíssimos, e um divertido funk-de-macumba, com letra toda em inglês, riffs de metais à Motown, frases curtas e muitos gritos celebrando uma popular entidade da umbanda carioca, a “Cabocla Jurema”. “Joo-rey — mah! Joo-rey-mah!”, cantava Tim Maia em inglês. E a sala delirava, se enchia de gente vinda de outros departamentos, da promoção, da imprensa, do comercial e até da contabilidade.

A outra música, “Primavera”, era lindíssima, um soul romântico de um doidaço chamado Genival Cassiano, com suas harmonias elaboradíssimas, que faziam dele um João Gilberto do soul. Os vocais harmônicos e dissonantes dos Diagonais formavam uma nuvem sonora de onde emergia, como um sol, a voz grave e vibrante, puro veludo, de Tim Maia. Assim que chegou às rádios e ganhou as ruas, antes mesmo de sair daquela sala, “Primavera” era um hit instantâneo. Todo mundo perguntava a Jairo Pires: quem era, o que fazia, onde vivia aquele  monstro?  Aquilo era novidade absoluta. Até então, a música brasileira se dividia entre a MPB nacionalista, o tropicalismo e o rock internacional. Tudo muito branco e muito inglês. Tim Maia virava o jogo, introduzia a moderna música negra americana no pop nacional, aproximava o funk do baião, trazia o soul para perto da bossa nova, abria várias portas e janelas para novas formas musicais, que não eram tropicalistas, nem emepebistas, nem rock’n’roll: eram brasileiríssimas. Eram Tim Maia.



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