Narrar é potencializar a memória, evocar o passado, ressignificar a experiência temporal. Toda narrativa coloca o ouvinte no campo das verdades ficcionais, criando entre o narrador e o ouvinte um pacto inaudito, mas subentendido, de cumplicidade para que os efeitos poéticos daquilo que é narrado possam ser recebidos noutra noção de verdade: revelação feita pelo artista - "o tempo não para, no entanto ele nunca envelhece".
É porque resiste às forças do esquecimento que Ulisses consegue compor a sua Odisseia. Para narrar suas astúcias, o herói homérico precisa vencer Lotófagos, Circe e Sereias - elementos do perecimento de muitos de seus companheiros de viagem justamente porque embriagados nas seduções da perda-de-si.
Conforme Luís Inácio Oliveira (Do canto e do silêncio das sereias) anota: "A atividade de narrar desenrola-se com base em uma dialética da memória e do esquecimento, na qual o lembrar conjuga-se ao esquecer, o re-presentar contém o deixar algo ausente, o registrar inclui o suprimir, a retomada pela recordação implica a seleção e o abandono de algo, a de-cisão e a perda" (pág. 49).
Diferente de Aquiles, que não narra as próprias experiências, pelo contrário, a personagem principal da Ilíada passa mais da metade do livro fora de cena, Ulisses é o cantor-de-si. Como sabemos, Aquiles cumpre o destino de morrer jovem, no ápice de seu vigor heróico e é imortalizado no canto glorioso dos aedos (cantores). Já Ulisses entra para a história por aquilo que "ele mesmo" narra quando se senta à mesa dos feácios, ao lado do aedo Demódoco.
Bem diferente do Ulisses que aparece no Canto XXVI, do Inferno de A divina comédia: apagado, silenciado pela morte no mar (do esquecimento), sem o louvor do aedo. Canta Dante: "(...) assim surdiu diante de meus olhos multidão de luzes congregadas. Cada uma, em seu interno, levava, oculta dos fulgores, a alma de um pecador". Unido a Diomedes no castigo, Ulisses purga "a traição do cavalo (de Troia)"; "o ardil que levou a morta Deidamia a chamar por Aquiles"; e "o roubo do sacro Paládio".
Mais adiante Ulisses conta a morte inglória: "Quando fugi dos feiticeiros encantos de Circe (...) nem a forte saudade do filho, nem a lembrança da provecta idade do pai, nem o puro amor de Penélope, a esposa fiel, venceram em mim o desejo de conhecer o vasto mundo, o aspecto dos demais mortais e a sua valia respectiva. (...) Cinco vezes o Sol que ilumina deixou acender a Lua (...) quando, para nosso espanto, se mostrou envolta em brumas, montanha tão grandiosa. (...) eis que dessa terra nova contra nós investia um furacão. (...) E sobre nós fechou-se o mar".
Ora, sepultado no mar, uma das maiores desgraças para um herói épico, Ulisses não teve tempo de (se) cantar. Perdeu-se sem qualquer lembrança alheia. Além da criação do poeta. E, de viés, Dante aponta a verdade ficcional e as palavras poéticas do texto de Homero, em que Ulisses vence todas as intempéries, tem o que cantar e se converte em narrador.
Salvador Dalí, nas ilustrações que criou para A divina comédia, retrata a falta de alteridade e de diferenciação vivida pelas almas do Inferno na aquarela do Canto XXVI, em que fragmentos de corpos se esboroam em massa compacta e pesada:
Ou seja, se na Odisseia Ulisses é o herói cujo passado humano é glorioso, em A divina comédia Ulisses é mais um a vagar pelo Inferno, sem distinção, oculto. Para Oliveira: "Se, na Ilíada, o mundo humano é descrito com base na guerra de entre troianos e aqueus, na Odisseia, trata-se de narrar as aventuras de Ulisses pelas fronteiras desse mundo, o demorado retorno a essa pátria, a sua difícil reconquista pelo herói errante" (pág. 54). E calcada na tradição oral, a palavra do poeta está associada à memória. Daí as formas fixas dos cantos que tanto ajudam na memorização.
Memória e esquecimento se complementam na fala do poeta. Basta lembrar que Mnemosyne, a deusa que faz recordar, também faz as dores e males do presente serem esquecidos. "A palavra do poeta é como o canto das sereias", anota Marcel Detienne (pág. 40), em Os mestres da verdade na Grécia arcaica.
Ao re-criar ao ações do "passado" interferindo no presente, o narrador engenha astuciosamente um mais-que-presente, uma verdade ficcional, concilia narrativa e ouvinte. "A vida é amiga da arte / É a parte que o sol me ensinou / O sol que atravessa essa estrada que nunca passou", canta o sujeito de "Força estranha".
Tal e qual o Ulisses-aedo, o sujeito da canção "Força estranha", de Caetano Veloso (MTV Ao Vivo Caetano Zii & Zie, 2011), canta suas experiências. "Sem levar em conta a noção moderna de experimentação e de experimento das ciências empíricas nascidas no século XVII, esse termo - "experiência" - designa, não apenas, de modo geral, uma forma de conhecimento sensível adquirido ao longo do tempo, mas abarca sentidos tão diversos como sapiência e sabedoria, prática e perícia exame e prova, ensaio e tentativa" (OLIVEIRA, pág. 47).
"Força estranha" mescla certezas e metáforas de certezas. As estrofes da letra começam com o "Eu vi" abrindo espaço para o canto de experiências plenamente compartilhadas pela mídia e pela fala do cancionista ao logo de seus 70 anos, completos em 2012. O sujeito evoca o passado para argumentar e glorificar seu presente estado de cantor: "Por isso uma força me leva a cantar, / por isso essa força estranha no ar / Por isso é que eu canto, não posso parar / Por isso essa voz tamanha".
O que é história e o que é ficção não importa, enquanto categorias estanques, ao canto do sujeito de "Força estranha", mas sim o engenho de ressignificar o passado glorificando o presente. Narrar-se e não poder parar de narrar, para lembrar e para esquecer, para permanecer vivo ao cantar aquilo que viu. "Eu pus os meus pés no riacho / E acho que nunca os tirei", diz.
O sujeito de "Força estranha", diferente do Ulisses homérico e do narrador do Proust deEm busca do tempo perdido, que aparecem mergulhados na vivência das sensações daquilo que contam, foca o canto naquilo que viu, como alguém que experimentou a tudo pela visão, com poucas referências aos signos dos outros sentidos (como no já citado por "os meus pés no riacho"), e que agora precisa cantar, imortalizar o visto, o vivido. "Ainda canto o ido o tido o dito / O dado o consumido / O consumado / Ato / Do amor morto motor da saudade", canta Caetano noutra canção de sua autoria: "Acrilírico".
Presente "no fundo de cada vontade encoberta", o sujeito de "Força estranha" mimetiza o tempo que a tudo acompanha e comunga. Ele narra a passagem do tempo sobre cada entidade cantada: o menino, a mulher, o artista, os muitos homens. E, aedo ("Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são"), a tudo se conecta para poder cantar as experiências. Cantor-de-si e do coletivo épicos.
Metacanção dobrando-se para dentro de si mesma, "Força estranha" expõe os motores de sua potência: o lembrar e o esquecer - os arranjos narrativos daquilo que o sujeito viu e viveu. "Eu pus os meus pés no riacho / E acho que nunca os tirei", canta. Convertido em narrador, Caetano Veloso baixa os tons vocais, contempla em retrospectiva, cumpre a promessa interna de não-esquecer o que viu, dá continuidade à tradição da passagem do tempo, pela memória narrativa que transmite os acontecimentos de geração a geração, sobre o coro do público que acompanha a canção ao vivo.
A memória do sujeito narrador de "Força estranha", sem a ordem cronológica, consagra eventos múltiplos e diversos, que, "como transcorre nas sagas épicas, são recompostos, reunidos e reconfigurados numa vasta unidade narrativa" (OLIVEIRA, pág. 103). A "organização" dessa unidade está mais próxima dos afetos - do tempo que "parou pra eu olhar para aquela barriga" - do que da sucessão dos fatos, mais perto da invenção poética - e por isso "real" ("O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei") - do que da historiografia dos relógios. Afinal, "a coisa mais certa de todas as coisas / não vale um caminho sob o sol".
Os versos de "Mansidão", de Caetano Veloso - "Esta voz que o cantar me deu é uma festa paz em mim / Violão deita em minha mão, acordar algumas notas / Colocar com exatidão na sombra o clarão sem fim" -, dizem muito da unidade ("colocar com exatidão") cantada pelo sujeito de "Força estranha". Um sujeito-narrador afetado pelo passado que engendra o canto, a canção: "Por isso essa voz tamanha".
***
Força estranha
(Caetano Veloso)
Eu vi um menino correndo
Eu vi o tempo brincando ao redor
Do caminho daquele menino,
Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei
O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei
Eu vi a mulher preparando outra pessoa
O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga
A vida é amiga da arte
É a parte que o sol me ensinou
O sol que atravessa essa estrada que nunca passou
Por isso uma força me leva a cantar,
Por isso essa força estranha no ar
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha
Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista
O tempo não pára, no entanto ele nunca envelhece
Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são
É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão
Eu vi muitos homens brigando. Ouvi seus gritos
Estive no fundo de cada vontade encoberta,
E a coisa mais certa de todas as coisas
Não vale um caminho sob o sol
É o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol
Por isso uma força me leva a cantar,
Por isso essa força estranha no ar
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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