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terça-feira, 5 de julho de 2016

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




"E há sempre uma canção / Para contar / Aquela velha história / De um desejo / Que todas as canções / Têm pra contar". Recupero este verso da canção "Fotografia" de Tom Jobim para guiar minha audição/leitura de "Peso e medida", de Alceu Maia e Zé Katimba.

As duas canções se aproximam tanto no registro pela simplicidade da naturalidade com que o amor se manifesta na vida de quem ama e é amado, quanto pela potência metacancional, ou seja, pela discussão - interna à canção - da canção ser a melhor tradução do sentimento.

Mas as duas canções se distanciam no tratamento do tema: enquanto aquela foca na visão (fotografia), "Peso e medida" se abastece da sinestesia, da possessão de todos os sentidos do sujeito que canta. E isso intensifica o contraponto entre a batida Bossa Nova (plástica, solar) e a pegada do Samba (sinestésica, trágica).

Os versos "O nosso amor é coisa tão bonita / Canto de sereia em alto mar / Uma canção que faz a gente se entregar" servem de argumento à simplicidade (no dizer) e ao caráter metacancional. Sendo uma canção da canção que o amor é, "Peso e medida" se autocanta figurativizando na letra e na melodia as filigranas que lhe constitui.

Aliada a isso há a voz de Ana Costa (Hoje é o melhor lugar, 2012) conferindo à canção nuances vocais que sublinham a intenção do sujeito. Sutil, equilibrando tons baixos e flashes de serenidade (não socrática, mas física, de êxtase) por aquilo que canta, Ana Costa imprime um sujeito tomado pelo amor: bonito de ver, de se entregar, brisa, calor, fome, comida. Ilustrando a frase de Guimarães Rosa: "O amor é sede depois de se ter bem bebido" (Noites do sertão: Corpo de Baile).

É dessa sede depois de saciada que o sujeito de "Peso e medida" fala. E Ana Costa consegue captar tamanho estado-de-espírito - nem alegre nem triste - na performance vocal. Há uma sensação de desimpedimento ("Jeito de perdão") no gesto da voz da cantora. A canção torna-se ornamento.

Sem saber, compromissado apenas com o canto do amor, com suas vivências íntimas, o sujeito universaliza ("que faz a gente se entregar") as experiências possíveis a todo amante. Porque canção, o amor é abrigo depois de muita procura. É deste lugar que o sujeito de "Peso e medida" canta. E Ana Costa performatiza isso ao dizer na voz que a canção (o amor) se presta à vida.

"Canto de sereia" e "beco sem saída", o amor cantado por Ana Costa é o rendado desejado e por fim alcançado. O sujeito de "Peso e medida" se coincide com o ouvinte (humano), ao cantar suas fragilidades e fazer delas sua fortaleza, sem receio: prazer total. Ele quer viver seu necessário destino de amador e faz isso com afirmação.

O sujeito parecer saber para onde o (nosso) amor - "canto de sereia" - pode leva-lo e mesmo assim, e talvez por ser assim, pela imprevisibilidade, sem egoísmo, ele se entrega cúmplice das sereias, já que também é um cantor: do amor. De um amor físico, alimento do corpo, que se sente no estômago e na boca - fome e comida - e na pele - brisa e calor. A pretensa unidade interna (do sujeito) se dissolve na inconsistência do mundo externo.

"Felicidade em forma de canção", o (nosso) amor cantado pelo sujeito de "Peso e medida" é o mais real dos sonhos, como Ana Costa canta em outra faixa do disco. Há fidelidade entre os olhos dos amantes sensíveis. Canção (ficção) e verdade aqui são a mesma coisa. Não a verdade, mas uma verdade, dos amantes.

Parafraseando a tão incompreendida observação de Schiller, podemos intuir que "séria é a vida, alegre e serena é a arte (e o amor)". A canção (a arte) dá forma - é o peso e a medida - ao absurdo amoroso vivido pelo amador e, deste modo, torna-se a verdade - peso e medida - pronunciada.

Importa não confundir isso com mascaramentos frívolos, muito embora o indivíduo precise deles (de um chão) para suportar a crise de viver. Palavra, melodia e voz, a canção (o amor) é sempre um convite ao canto da sereia (verdades): à uma jovialidade permanente do eterno (estar) presente - ser todo em cada coisa, hoje é o melhor lugar. Do modo como Ana Costa demonstra ser quando canta.


***

Peso e medida
(Alceu Maia / Zé Katimba)

O nosso amor é coisa tão bonita
Canto de sereia em alto mar
Uma canção que faz a gente se entregar
Luzes que se espalham pelo ar
É brisa leve, é calor que espanta o frio
É sonhar

É peso e medida
Beco sem saída
É fome é comida
Jeito de perdão
É cumplicidade
A nossa verdade
É felicidade em forma de canção


* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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