Chico se manteve desde o início o mais longe possível das polêmicas sobre o tropicalismo e, fora uma ou outra ironia aqui e ali entre amigos, como era de seu estilo, continuou mantendo relações cordiais com Gil e principalmente com Caetano, evitando ao máximo o papel que os estudantes queriam lhe impor como o paladino da música brasileira, o antibaianos, o grande opositor. Participou brilhantemente da Bienal do Samba, criada pela Record como um festival sem guitarras, exclusivo da “música brasileira”, com a ensolarada “Bom tempo”, chegando em segundo lugar. Ao contrário da maioria de suas músicas, principalmente as melhores, que quase sempre expressam uma difusa melancolia, este era um samba alegre e esperançoso: “Um marinheiro me contou que a boa brisa lhe soprou que vem aí bom tempo o pescador me confirmou que o passarinho lhe cantou que vem aí bom tempo...” No refrão — em ritmo de maxixe — Chico levantava o auditório e celebrava sua paixão pelo Fluminense. A “Jovem Flu” enlouquecia quando ele cantava: “Satisfeito, alegria batendo no peito, o radinho contando direito a
vitória do meu tricolor...”
A esquerda musical detestou, a música foi considerada alienada e irresponsável. Ganhou “Lapinha”, um samba baiano de Baden Powell com letra de Paulo César Pinheiro, contando a história de um lendário capoeirista, cantado arrebatadoramente por Elis Regina. Tricolor doente, Ronaldo torceu para “Bom tempo”, contra Elis. Na passeata dos cem mil Chico e eu éramos do mesmo grupo, com Jards Macalé, Edu Lobo, Zé Rodrix, Maurício Maestro e outros, e nosso ponto de encontro era na escadaria da Biblioteca Nacional, na Cinelândia. Chegamos quase juntos, olhando para os lados, disfarçando, dando bandeira. Como ainda faltava bastante tempo para a hora marcada para a passeata, decidiu-se por unanimidade ir ao Bar Luiz, na Rua da Carioca, tomar um chope para aliviar a tensão. Voltamos a tempo ao ponto, porém mais tensos ainda: eu tinha medo de apanhar da polícia, de levar um tiro, de ser preso, e não ousava imaginar que íamos viver um dia de glória. Quando a passeata explodiu e tomou as ruas, fiquei com o coração na garganta, como num jogo do Brasil em final de Copa, onde éramos a torcida e os jogadores ao mesmo tempo. Percorremos a Avenida Rio Branco de braços dados, todos juntos, tropicalistas e emepebistas, cantando e gritando slogans, das janelas jogavam papel picado e aplaudiam, a cidade era nossa. Na Candelária, sentamos no asfalto com Vinícius de Moraes, Tonia Carrero e várias jovens socialites cariocas, para ouvir Vladimir Palmeira, o líder dos estudantes. Deslizando etérea entre a multidão, com sua pele alvíssima e sua beleza aristocrática, sentou-se ao nosso lado Clarice Lispector, que dedicou a Chico longos e lânguidos olhares amorosos e doces palavras, enquanto Vladimir gritava palavras-de-ordem pendurado num poste.
Da passeata fui direto para o jornal para escrever a coluna, que foi toda dedicada ao evento, como quase o jornal inteiro. Na redação, Samuel, eufórico, vivia seus grandes dias, nos estimulando para a criação de uma edição histórica. Montamos duas páginas só com fotos dos grandes personagens da passeata e textos-legenda com trechos de letras de música de oposição. Mais duas só com frases das personalidades que participaram. Mais charges, desenhos, comentários. Da redação fomos para a casa de Samuel comemorar e naturalmente
voltamos com ele à Praça da Bandeira para ver o jornal rodar. Com Roda-viva, a peça dirigida por Zé Celso, Chico explodiu sua imagem de unanimidade nacional.
Com “Bom tempo”, irritou a militância esquerdista. Preocupado com sua evolução musical, estudou piano com Wilma Graça. Cresceu muito como músico e fez duas de suas melhores canções, a modinha “Até pensei” e o grande samba “Ela desatinou”. E mais importante: com Tom Jobim iniciou uma amizade e uma parceria destinada à história da música brasileira. Juntos, fizeram a obra-prima “Retrato em branco e preto”, que provocou uma comoção nas rodas musicais, a bela e melancólica “Pois é” e a lindíssima “Sabiá”, uma canção camerística
de Tom com uma dolorida letra de Chico sobre as amarguras do exílio e os sonhos da volta, uma refinada canção política. Com “Sabiá”, cantada pela dupla de baianinhas Cynara e Cybele, Chico e Tom concorreram na final do Festival da Canção no Maracanãzinho. Contrariando o público e recebendo pressões civis, militares e eclesiásticas, o júri da TV Globo deu-lhes o primeiro lugar e derrotou a canção guerreira de Vandré — e a vontade popular. Com “Sabiá”, Tom recebeu a maior, mais injusta e insensata vaia da história da música brasileira. Chico estava em Veneza e escapou. Naquele palco diante de nós, o nosso mestre e compositor maior e mais querido era enterrado vivo por uma vaia selvagem, furiosa e absurda. Fiquei indignado. Chorei de raiva. E de vergonha.
Depois quase chorei de novo quando Tom contou no Antonio’s como saiu tonto do Maracanãzinho e voltou sozinho para casa dirigindo seu carro debaixo de chuva, atravessando um interminável Túnel Rebouças deserto, cortando o silêncio cercado de vaias por todos os lados. O maior compositor do Brasil, o mais conhecido, amado e respeitado no mundo. Aquela coisa de festivais tinha ido longe demais. O circo acabou, pensei. Mas o pior ainda estava para acontecer. Durante o festival, como um contraponto, Gil e Caetano e Os Mutantes fizeram uma temporada na Sucata, de Ricardo Amaral. Polêmica, escândalo, vaias e aplausos entusiasmados, bate-bocas acalorados na imprensa, casas abarrotadas: todo mundo queria ver o que eles estavam fazendo. Até Elis, que assistiu discretamente e, discretamente, detestou.
Assisti várias vezes, em cadeira, de pé ou sentado no chão: era uma explosão de novidade e agressividade, com bandeiras de Hélio Oiticica retratando o bandido “Cara de cavalo”, morto pela polícia, com o letreiro “Seja marginal, seja herói”, e outras dizendo “Yes, nós temos bananas”. No início do show, Caetano explicava, cantando, o que João Gilberto tinha a ver com tudo aquilo, numa neobossa nova inspirada em “Fotografia”, de Tom Jobim: “Eu, você, nós dois, já temos um passado, meu amor, um violão guardado, aquela flor, e outras mumunhas mais... Eu, você, depois, Quarta-feira de Cinzas no país e as notas dissonantes se integraram ao som dos imbecis...” E concluía magistralmente: “Eu, você João, girando na vitrola sem parar, e eu fico comovido de lembrar o tempo e o som ah, como era bom, mas chega de saudade, a realidade é que aprendemos com João pra sempre ser desafinados.” O show terminava com “É proibido proibir”. Com o hippie americano urrando no microfone. Mas acabou proibido: um promotor apareceu acompanhado de um delegado, exigindo a retirada das bandeiras do “Cara de cavalo” e, pior, exigindo que Caetano assinasse um documento se comprometendo a não falar mais durante o show. Indignado, Caetano se recusou e o show acabou ali.
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