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segunda-feira, 13 de junho de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



Contrariando o espírito jornalístico, nunca cogitei em perder um amigo por causa de uma notícia, e talvez por isso mesmo tive acesso direto e permanente a todos eles e fiz de minha coluna porta-voz de suas ideias e ações. E dei sempre primeiro as melhores — e piores — notícias de todos os lados do front cultural naquele fatídico 1968. Os programas de televisão de Flávio Cavalcanti faziam cada vez mais sucesso e passaram a ter também versões semanais de “A grande chance” e de “Um instante maestro” gravadas em São Paulo, na TV Tupi. O cachê dobrou de novo, começaram a aparecer convites para fazer apresentações em clubes fora do Rio, Flávio estava cada vez mais rico e mais feliz e eu cada vez mais incomodado. Não com o sucesso e o dinheiro, que me deleitavam, nem em ser paparicado, reconhecido na rua, dar autógrafos, receber cartas de fãs. O que me incomodava era a distância cada vez maior entre a popularidade do programa e a sofisticação cultural que explodia no tropicalismo, no Teatro Oficina e no Cinema Novo. Havia um abismo entre os auditórios de Flávio e as rodas de conversa no Antonio’s, no Leblon, onde se reunia em caráter permanente a fina flor artística e intelectual do Rio, onde se debochava da cafonice de Flávio e de seu júri, de suas apelações, ; seu populismo.

Me inquietava cada vez mais o contraste entre o estilo libertário da coluna na UH, seu esquerdismo modernista, e o conservadorismo político, o lacerdismo de Flávio, revolucionário de primeira hora em 64, embora eu desfrutasse total liberdade no programa para dizer o que quisesse. Ou pudesse. Mais que tudo me angustiava, começava a dar até uma certa vergonha, o clima de “telecatch” que, estimulado por Flávio em nome do espetáculo, progressivamente tomava conta do júri: Flávio queria barulho e polêmica, que cada um fizesse o seu papel, o durão, o ultraconservador, o simpático, o paternal, cabendo a mim o de jovem rebelde, função que desempenhava com naturalidade, mas cada vez menos entusiasmo. Os programas começaram a ficar chatos e previsíveis, com a mesma graça das lutas de vale-tudo combinadas. Alguns amigos me diziam para sair daquela cafonice, que não tinha nada a ver comigo, e outros para ficar, porque quanto mais careta, retrógrado e conservador fosse o júri, mais liberal, simpático e popular eu apareceria. Seria uma voz libertária falando para milhões de pessoas e contestando as velhas gerações conservadoras e repressivas. Mas talvez o que mais pesasse em minha vontade de sair era ter que ouvir duas horas de calouros, duas vezes por semana. E cheia de surpresas. Logo no início, uma música apresentada só com um violão e feita inteira em dois acordes faz o auditório explodir.

Geraldo Vandré ainda se lembrava das vaias que tinha levado com a sua superprodução de “Ventania” quando, momentos antes de entrar no palco, decidiu dispensar o elaborado arranjo de orquestra e os grupos de apoio e cantar só com o violão a sua “Pra não dizer que não falei de flores”, valorizando sua letra política e provocativa, e — em jogada de mestre — se tornando diferente de todos os outros com suas massas sonoras super produzidas. O menos foi mais, o público delirou e cantou junto: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer.” Era uma chamada à insurreição, uma palavra de ordem, uma senha de combate. Pelo menos era assim que se sentiam todos aqueles jovens que cantavam com tanto vigor e tanta fé. Os tropicalistas minoritários vaiavam. O confronto estava claro: era entre Vandré e Caetano. E Vandré estava ganhando disparado. Quando Caetano e Os Mutantes entraram, senti cheiro de pólvora. As vaias e os aplausos se dividiam, mas eram muito mais intensos do que na primeira eliminatória. No meio da música, na entrada em cena do hippie urrador, a vaia se tornou tão maciça e estrepitosa que Caetano e Os Mutantes tentavam cantar, mas não se ouviam, choviam tomates e ovos no palco, Caetano parou de cantar e gritou furioso para a plateia: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir este ano uma música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! Vocês são a mesma
juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, absolutamente nada...”

No meio das vaias ensurdecedoras, ouve-se uma ou outra frase de Caetano: “Eu quero dizer ao júri: me desclassifique... eu não tenho nada a ver com isso... Gilberto Gil está comigo (Gil entra no palco, a vaia cresce)... nós estamos aqui para acabar com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil... nós só entramos no festival pra isso... nós tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas... se vocês forem em política como são em estética, então estamos feitos! Me desclassifiquem junto com Gil... o júri é muito simpático, mas é incompetente. Deus está solto!” No Rio, Augusto Marzagão, diretor do festival, pediu a Caetano que mantivesse a música, mas anunciou que não permitiria a presença do hippie urrador. Caetano respondeu que não haveria hippie nem urros nem nada: não haveria música, ele mantinha sua decisão de retirar “É proibido proibir” das finais no Maracanãzinho. Os Mutantes adoraram: com a saída de Caetano abria-se mais uma vaga entre as finalistas para a sétima classificada em São Paulo, “Caminhante noturno”, que eles tinham defendido brilhantemente, apoiados por um espetacular arranjo de Rogério Duprat, com Sérgio vestido de urso, Arnaldo de gorila e Rita — deslumbrante — de noiva. A música era tão boa, Sérgio, Arnaldo e Rita tão alegres e competentes, que as vaias que se misturaram a seus fartos aplausos não eram raivosas, como as contra Caetano, mas pareciam de brincadeira, coisa de estudante. O pior ainda estava para acontecer.



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