Com Terra em transe, o filme de Glauber Rocha, o impacto foi semelhante, em novidade e intensidade. Só que em preto-e-branco e em tela plana. Era uma outra forma de fazer política e cinema, com uma outra estética, mais brasileira, mais suja, mais contundente: um novo Cinema Novo. Ao contrário de Deus e o diabo na terra do sol e de O dragão da maldade contra o santo guerreiro, que foram vistos como alegorias sertanejas e distantes, Terra em transe era um drama político urbano e atual, poético e delirante, histórico e existencial, ambientado num imaginário Eldorado que revelava como nunca o Brasil real, do populismo e dos ditadores, das elites corruptas e vorazes e do povo ignorante e passivo, narrados em flash-back pelo poeta agonizante, traído e decepcionado pelo seu líder político. E pelo povo.
Tanto quanto os Beatles, Janis Joplin e Jimi Hendrix, O rei da vela e Terra em transe representaram para Gil e Caetano uma poderosa inspiração e base estética para a sua revolução musical. A montagem de Zé Celso se opunha radicalmente ao formalismo político do Teatro de Arena, o filme de Glauber explodia os folclorismos e paternalismos, a música de Gil e Caetano rompia com a estética populista da esquerda musical. Eram oposição à oposição. E contra a situação, mais do que nunca.Depois do festival da Record, com o lançamento dos Lps de Gil e de Caetano, com suas entrevistas desafiadoras, suas apresentações anárquicas na TV, não havia mais nenhuma dúvida que alguma coisa forte estava acontecendo, em sintonia com Glauber e Zé Celso e em rota de colisão com a música de Edu, Chico, Dory, Francis, Vandré e Milton.
João Gilberto, não. Desde o primeiro momento, mesmo no entusiasmo iconoclasta da rebelião, Caetano sempre renovou a sua devoção a João e, com argumentos que misturavam razão e afeto, tentava sempre nas entrevistas explicar a sua música como algo a partir de João, não contra ele. Mas era difícil entender: aparentemente não havia nada mais anti-João do que a música barulhenta e eletrificada que eles estavam propondo.
A polêmica pegou fogo. Não eram só as guitarras, mas os arranjos de orquestra de Rogério Duprat e Júlio Medaglia, as participações de Os Mutantes, as letras cinematográficas, fragmentadas, irreverentes, cheias de referências provocadoras ao universo pop brasileiro; as melodias que rompiam com os estilos estabelecidos e, embora trabalhadas dentro dos novos padrões do pop internacional, traziam mais para perto a tradição da música nordestina, revista e aumentada. Era de certa forma também uma restauração de valores musicais nacionais negados pela bossa nova e o sambajazz, pela MPB de Copacabana, reciclados e reinventados em um novo momento social e político: Luiz Gonzaga e Jimi Hendrix, os Beatles e Jackson do Pandeiro, chiclete e banana. Na emblemática “Tropicália”, Caetano sintetiza intuitivamente o movimento, orienta o carnaval, encontra “A banda” com Carmen Miranda no Planalto Central, enquanto os urubus passeiam entre os girassóis. A música foi batizada como “Tropicália” por sugestão de Luiz Carlos Barreto e pela amizade e admiração que uniam Caetano e Hélio Oiticica, criador da instalação “Tropicália”, que provocou furor no Museu de Arte Moderna: um barraco-labirinto a ser percorrido pelo espectador descalço pisando em terra, areia, água, pedras e plástico, enquanto passava por diversos ambientes estéticos, miseráveis e exuberantes, primitivos e modernos, carnavalescos e rigorosos, até a visão final de uma televisão acesa. Tudo tão brasileiro, tão próximo da música de Caetano, de O rei da vela e de Terra em transe.Uma noite de verão, pouco antes do carnaval de 1968, passei horas tomando chope e conversando com Glauber Rocha, Cacá Diégues, Gustavo Dahl e Luiz Carlos Barreto no bar Alpino, em Ipanema. Entusiasmados com o Cinema Novo, o Teatro Oficina, os discos de Gil e Caetano, excitados com o momento político e com aquele movimento artístico que não tinha sido articulado nem tinha nome mas estava em pleno andamento, com tantas novidades e tanta potência, começamos a imaginar uma festança para celebrar o novo movimento. Uma espécie de batizado modernista, uma festa tropical, uma gozação com o nosso mau gosto, cafajestice e sensualidade, com nossa exuberância kitsch. Vários chopes depois, cansado de tanto rir, cheguei em casa e esqueci do assunto.
No dia seguinte, com a dramática falta de notícias que aflige os colunistas no verão carioca, usei todo o espaço da coluna para contar, em forma de manifesto debochado, todas as besteiras que tínhamos imaginado no Alpino. Sob o título de “Cruzada tropicalista”, irresponsavelmente enchi meia página de jornal celebrando o momento artístico com uma futura festa imaginária, onde os homens estariam de ternos brancos, chapéus panamá e sapatos bicolores e as mulheres de vestidos rodados verde-amarelos e turquesa, dançando entre pencas de abacaxis e bananas. O suposto “tropicalismo”, linguagem comum das novas artes e movimentos, motivo da festa e do falso manifesto, era um bestialógico que misturava passadismo e cafonice para gozar os nacionalistas e tradicionalistas: era absolutamente caótico, embora tivesse até seus momentos divertidos, ironizando o mau gosto nacional e gozando o bom gosto intelectual. A festa nunca aconteceu, mas a coluna teve grande repercussão e surpreendentemente foi levada a sério, comentada acaloradamente contra e a favor em outros jornais, no rádio e na televisão, que passaram a se referir ao movimento de Gil e Caetano como tropicalismo.
Assim como tinha sido com a bossa nova, no início ninguém sabia bem o que era o tropicalismo. Nem Caetano e Gil e muito menos eu, que no entanto falava disso todo dia na coluna de jornal e defendia ardorosamente o movimento nos programas de televisão. Eles representavam o moderno, o revolucionário, o internacional: o jovem. O “Véio” e Elis concordavam sobre o tropicalismo: os dois o detestavam. E detonaram Gil e Caetano nos jornais, abriram guerra. Edu, Dory e Francis estavam chocados, não acreditavam no que ouviam. Para eles, que eram amigos e admiravam os baianos antes do tropicalismo por suas melodias e harmonias sofisticadas, sua poesia lírica e social elaborada, que se identificavam com eles na comum origem jobino-gilbertiana, era uma traição aos ideais comuns, era andar
para trás. Músicos rigorosos, Edu, Dory e Francis não compreendiam a adesão tropicalista à jovem guarda e ao rock internacional, que consideravam sub-música. A eles não interessava a atitude política rebelde, o desejo de experimentar, a vontade de integrar o Brasil com os jovens do mundo e vice-versa, a irreverência a serviço da crítica. Para eles e muitos outros músicos maiores e menores, a música que Gil e Caetano estavam produzindo era pior — porque mais distante de Tom e João —, e nada justificava isso. Não era um avanço, mas um atraso. E mais: alguns se sentiam pessoalmente atingidos. Tempo quente no eixo Rio—São Paulo—Salvador.
Chico foi mais cool. Evitou o confronto pelos jornais e ao mesmo tempo foi poupado das críticas mais fortes do tropicalismo, que pegava mais pesado com Vandré e a “esquerda universitária” da MPB. Caetano tinha um irresistível fascínio por Chico e, como todo mundo, respeito por sua produção de grande poeta musical. Mas o confronto era inevitável. Nas esquinas e nos botecos, o oposto de Gil e Caetano, por menos que eles quisessem, era Chico. Os estudantes, unidos contra a ditadura, se dividiam apaixonadamente entre Chico e Caetano, entre Vandré e Gil, entre o tropicalismo e a MPB. Além do afeto pessoal e do prazer da companhia, a necessidade profissional de manter boas fontes com todos os protagonistas daquele momento me obrigou a malabarismos dialéticos para manter uma convivência harmônica com Chico, Edu, Gil, Caetano, Dory, Francis, Ronaldo e Elis ao mesmo tempo, evitando brigas e discussões acaloradas, conciliando, tentando harmonizar, procurando pontos em comum. Não gosto de ver amigos meus brigando entre si, procuro defendê-los uns dos outros, aproximá-los. Ao mesmo tempo me fascinam a diferença, a diversidade, as possibilidades da liberdade criativa. E principalmente eu gostava de todos eles e não queria perder a amizade de ninguém, fazia tudo para não ter que escolher entre uns e outros, achava todos talentosíssimos e procurava me manter fiel a todos. Menos ao leitor.
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