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terça-feira, 14 de junho de 2016

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




O sujeito de "Foguete", de Roque Ferreira e Jota Veloso, canta a excitação de viver o amor. O grande amor. Entre o que pode e o que não pode ser, ele enfeita a vida e a canção que entoa com elementos típicos de seu universo brejeiro, sertanejo, interiorano.

Ele canta delicadezas pouco comuns ao urbano, mas naturais ao estado-de-espírito festivo e trágico do indivíduo que aguarda o ano inteiro pela festa da colheita, da fartura. E na busca de enfeites para as sensações que lhe toma por dentro, o sujeito usa o nome João Cabral de Melo Neto - poeta que não gostava de música - dentro da canção e, como se não bastasse, rima o nome do poeta com "afeto".

Obviamente, creio que o sujeito faz isso a fim de tematizar a incompatibilidade de gênios - ficar no canto calado versus a barulheira da saudade - entre ele e o outro, que chega inesperadamente: "Tantas vezes eu soltei foguete / Imaginando que você já vinha (...) "Você chegou no amiudar do dia / Eu nunca mais senti tanta alegria / Se eu soubesse...".

Ora, educado pela pedra-dureza do dia-a-dia de estio, o sujeito prepara a casa tal e qual a alma para receber o estrangeiro: o amor. "Tirei a renda da naftalina / Forrei cama, cobri mesa / E fiz uma cortina / Varri a casa com vassoura fina / Armei a rede na varanda / Enfeitada com bonina", maravilhas, boas-noites. Gestos e costumes típicos que o interiorano faz com capricho para homenagear alguém importante que está para chegar. Ou quando é festa, no caso, São João, e a casa precisa estar pronta para as confraternizações.

Mas a beleza da letra da canção é recolhida nos derradeiros versos: "Nosso amor é tão bonito e tão sincero / Feito festa de São João". Só quem já viveu a festa do milho verde - São João Cabral de Melo Neto? Trágico e sublime, triste e alegre, pele enrugada do sol claudicante e o sorriso largo carregado de fé - no interior nordestino pode alcançar o que o sujeito quer dizer quando fala de sinceridade e beleza no mesmo verso que adjetiva a grande festa.

E como não reconhecer tais lindezas no gesto vocal de Mariene de Castro, que registrou a canção no disco Tabaroinha (2012)? Mariene transmite a impressão não apenas da interpretação, mas da vivência, daquilo que ela canta. Entre as tantas potentes canções do disco, "Foguete", com sua melodia arrasta pé e chamego, imprime a simplicidade complexa do movimento existencial de um povo.

Mariene de Castro condensa na voz e no jeito de corpo voz a brisa que veio feito cana mole, doce, roubando um beijo, flor de querer bem. As inflexões vocais alegres de Mariene figurativizam o sujeito do interior que sabe que um beijo vale pelo que contem, afeito às belezas simples, sem ambição alguma, além da mesa farta e da rede no alpendre.

O amor do sujeito de "Foguete" é gestado na barulheira da saudade, no silêncio, nas lembranças do que não se viveu e nas recordações dos momentos (possivelmente) passados juntos. Há sim uma saudade do amor que não se teve, de um outro que se sente. E é essa convivência de opostos que marca o homem do interior que tem na festa da chuva um momento de puro amor.

Mas precisamos comentar ainda alguns versos. Em "Se eu soubesse soltava foguete / Acendia uma fogueira / E enchia o céu de balão" flagramos a melancolia do brincante das festas de outrora e que ecoa o sujeito de "Estrela azul do céu", de Gilberto Gil: "Aquela estrela azul do céu / Do céu do meu balão / De antigamente / Sumiu de repente / Da noite de São João / (...) / Balão era isso / Magia, feitiço / Milagre que não tem mais", com a criminalização da prática.

Vale lembrar também "Noites brasileiras", de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, eternizada na voz de Gonzagão: "Ai que saudades que eu sinto / Das noites de São João / Das noites tão brasileiras na fogueira / Sob o luar do sertão // Meninos brincando de roda / Velhos soltando balão / Moços em volta à fogueira / Brincando com o coração / Eita, São João dos meus sonhos / Eita, saudoso sertão".

Ou seja, o cenário externo de "Foguete" é construído com o objetivo de espelhar, ecoar o cenário interno, íntimo do sujeito que canta. Mas como sabemos, assim como os foguetes - ainda presentes em algumas cidades do interior, com as guerras de rojão - as fogueiras e os balões são cada vez mais raros como signos concretos de embelezamento da festa.

Outro momento que merece destaque é a presença de acauã: "Senti na pele a mão do seu afeto / Quando escutei o canto de acauã". Como sabemos, a ave costuma cantar ao entardecer e/ou ao amanhecer, entoando um grito longo e alto que cobre os demais sons locais. Portadora de bons (chegada) e/ou maus (morte) agouros, na canção, acauã anuncia a felicidade e sustenta, no canto, a fé do sujeito que canta.

Coube a Zé Dantas estetizar acauã: "Acauã, acauã vive cantando / Durante o tempo do verão / No silêncio das tardes agourando / Chamando a seca pro sertão / Acauã, acauã / Teu canto é penoso e faz medo / Te cala, acauã / Que é pra chuva voltar cedo (...) Na alegria do inverno / Canta sapo, jia e rã / Mas na tristeza da seca / Só se ouve acauã". Cabe lembrar a gravação singularíssima que Gal Costa deu à canção no disco Legal(1970).

O canto de acauã é destituído de signos verbais, mas contém significados intrínsecos à cultura popular, ao folclore. Na canção, ele se liga ao galo para tecer a manhã de um novo amor, de um amor que sempre esteve, mas que só agora - chegado no amiudar do dia - se realiza para além da subjetividade do sujeito da canção, se concretiza promotor de mudanças. 

Mauriene de Castro mimetiza a acauã portadora de bons agouros, ressoa o convite matinal do galo, abre, com sua voz terna, portas para o apelo espiritual do sujeito e do indivíduo que vivem a festa de puro amor: o São João.


***

Foguete
(Roque Ferreira / Jota Veloso)


Tantas vezes eu soltei foguete
Imaginando que você já vinha
Ficava cá no meu canto calada
Ouvindo a barulheira
Que a saudade tinha

É como disse João Cabral de Mello Neto
Um galo sozinho não tece uma manhã
Senti na pele a mão do seu afeto
Quando escutei o canto de acauã

A brisa veio feito cana mole
Doce, me roubou um beijo
Flor de querer bem
Tanta lembrança este carinho trouxe
Um beijo vale pelo que contém

Tantas vezes eu soltei foguete
Imaginando que você já vinha
Ficava cá no meu canto calada
Ouvindo a barulheira
Que a saudade tinha

Tirei a renda da naftalina
Forrei cama, cobri mesa
E fiz uma cortina
Varri a casa com vassoura fina
Armei a rede na varanda
Enfeitada com bonina

Você chegou no amiudar do dia
Eu nunca mais senti tanta alegria
Se eu soubesse soltava foguete
Acendia uma fogueira
E enchia o céu de balão
Nosso amor é tão bonito e tão sincero
Feito festa de São João




* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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