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quinta-feira, 30 de junho de 2016

GRAMOPHONE DO HORTÊNCIO

Por Luciano Hortêncio*



"Marchinha da folia de 1965, faixa do álbum coletivo "O carnaval é nosso", selo Entré/CBS."(Samuel Machado Filho)



Canção: Maria manda brasa

Composição: Zé Trindade, Waldir Ferreira e O. Trindade

Intérprete - Zé Trindade

Ano - 1964


* Luciano Hortêncio é titular de um canal homônimo ao seu nome no Youtube onde estão mais de 10.000 pessoas inscritas. O mesmo é alimentado constantemente por vídeos musicais de excelente qualidade sem fins lucrativos).

quarta-feira, 29 de junho de 2016

VÔTE... ESCUTA SÓ: JOÃO FURIBA

Por Paulo Carvalho


Foto: Paulo Carvalho 


Poeta popular, violeiro repentista, João Batista Bernardo, o João Furiba nasceu em 04/07/1931, em Taquaritinga do Norte–PE. 

É considerado um dos grandes repentistas nordestinos, tendo iniciado a carreira ainda na adolescência. Já arrebatou inúmeros troféus, em competições entre violeiros, tendo ficado em primeiro lugar em diversas ocasiões. O apelido “Furiba” segundo ele, quer dizer coisa sem importância, e foi dado por Pinto do Monteiro inspirado na figura magra e de baixa estatura de João. Foi um dos maiores e mais constantes parceiros de Pinto do Monteiro, enquanto este era vivo, e tornaram -se também grandes amigos apesar das farpas trocadas durante os desafios. O primeiro encontro dos dois grandes poetas é descrito da seguinte maneira: 

“Lino Pedra Azul (também cantador de renome) teria agendado uma cantoria com Pinto, em Belo Jardim, mas em função de outros compromissos surgidos, pediu ao então rapazote João Batista que o substituísse. Ansioso e receoso, João que só veio a ser conhecido como Furiba anos depois, aceitou. Chegou no local e perguntou: 

JF – É o senhor que é seu Pinto? 

PM – Sou. 

JF – É que Lino me pediu pra vir lhe substituir na Cantoria… 

PM – Não sei se vai ter cantoria, não… (disse Pinto sem acreditar que estava diante de alguém que pudesse enfrentá-lo) 


Os promotores da cantoria chegaram perto de Pinto imploraram que o Gênio cantasse com o desconhecido João Batista… 

Iniciaram o baião de viola. Cada um esperando que o outro iniciasse a sextilha. 

Começaram… Lá pras tantas, Pinto termina a sextilha dizendo: 

“Não sei que tem vaca magra 
come muito e não engorda” 

Era uma referencia ao aspecto franzino e raquítico do Furiba, que respondeu: 

“É porque feijão de corda 
já ta passando de cem, 
o milho tá muito caro 
farinha cara também, 
se Jesus não pisar no frei. 
Não vai escapar ninguém” 

Ao terminar a sextilha, Pinto disse: 

– Depois “nós conversa”, viu?. 

A partir daquele momento, iniciaram uma das duplas mais fecundas da poética voleira… 

João Furiba também fez dupla com outros cantadores sempre demonstrando sua agilidade e competência na feitura dos improvisos. Cantando com João Cardoso este fez com os seguintes versos: 

Furiba fui informado 
Que você lá em Tabira 
Pega frete, dá recado 
Varre a rua mas se vira 
Agora eu quero saber 
Se isso é verdade ou mentira? 

Furiba respondeu: 

Colega eu fiz em Tabira 
O meu recenseamento 
Seis mil e quinhentas casas 
Um colégio e um convento 
Comprei agora o BANDEPE 
A CISAGRO e o FOMENTO. 

O conhecido cantador Ivanildo Vila Nova, cujo pai também era repentista, cantando com João Furiba terminou uma estrofe, dizendo: 

Não conheço cantador 
Pra ser igual a mim. 

Furiba respondeu dizendo: 

Seu pai também foi assim 
Se dizia professor 
Falava com tantos “s “ 
Que parecia um doutor 
Cantou quarenta e seis anos 
Morreu sem ser cantador. 

E assim é João Furiba, alegre, irreverente, criativo, poeta popular simplesmente. É um daqueles que faz a mais autêntica cultura nordestina. Alberto Oliveira (poeta e cordelista) afirma que João Furiba é um dos maiores poetas da história do repente brasileiro. Zelito Nunes, foi quem me apresentou a este extraordinário artista a quem eu muito admiro e prezo.

GEOGRAFIA DAS EXPRESSÕES

Um ensaio fotográfico sobre o homem e seus territórios, focando as expressões diversas dos indivíduos no cotidiano e em suas respectivas paisagens. 

Por Fábio Nunes





DUDUCA DO SALGUEIRO E GERALDO BABÃO, 90 ANOS

2016 é marcado pelas nove décadas desses dois saudosos sambistas salgueirense.

Por Sueli Gushi e Sindicato do SAamba



Eduardo de Oliveira, que ficou conhecido como Duduca do Salgueiro, nasceu em 8 de junho de 1926, na cidade do Rio de Janeiro, RJ, na Chácara do Vintém, e aos sete anos, depois que a família foi despejada junto com outros moradores do local pelo calabrês Emílio Turano, foi morar no Morro do Salgueiro.

Desde menino desfilava na Escola de Samba Depois Eu Digo, uma das três existentes no morro, juntamente com a Unidos do Salgueiro e a Azul e Branca. Tocava tamborim e outros instrumentos de percussão. 

Seu pai, Paulino de Oliveira, foi presidente da Depois Eu Digo, que depois se uniu às outras duas, surgindo daí a Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, tendo o próprio Paulino de Oliveira como seu primeiro presidente .

Aos 17 anos, Duduca compôs o seu primeiro samba para uma namorada chamada Elza e, ao mostrá-lo para o compositor Matinadas, da Escola de Samba Depois Eu Digo, foi convidado pelo mesmo a compor para esta escola, chegando ao cargo de diretor de harmonia, que manteve mesmo com a fusão das três escolas. 

No dia 3 de março de 1953, participou da fundação da Acadêmicos do Salgueiro ao lado de Geraldo Babão, Casemiro Calça Larga, entre outros.



Em 1954 compôs, juntamente com Abelardo e Juca, de um dos primeiros sambas-enredo do Salgueiro "Romaria à Bahia", com o qual a escola classificou-se em 3º lugar do Grupo 1 no desfile daquele ano. 

Em 1955 compôs "Epopéia do samba", com Juca e Bala, em homenagem ao ex-prefeito Pedro Ernesto Batista, um entusiasta das escolas de samba, um dos primeiros a trabalhar para que o desfile torna-se uma atração turística mundial, alcançando o quarto lugar do Grupo 1. 

Em 1961 compôs "A vida e a obra de Aleijadinho", em parceria com Bala, classificada em segundo lugar no desfile. 

No ano de 1964, assumiu o cargo de presidente da Ala dos Compositores da Acadêmicos do Salgueiro, que ocupou até a sua morte. 

Em 1974, Elza Soares gravou em LP uma composição sua, "Nem vem", em parceria com Noel Rosa de Oliveira e José Alves. 

Faleceu em 29 de junho de 1978, na cidade do Rio de Janeiro, RJ, quando ainda estava em plena criação artística.


Geraldo Babão

Quem sabe das coisas é o Geraldo Babão! Lá do Salgueiro!”, dizia Martinho da Vila.


Geraldo Babão (Geraldo Soares de Carvalho, compositor, instrumentista e flautista (de onde herdou o apelido Babão), nasceu no bairro Terreiro Grande, no Morro do Salgueiro, Rio de Janeiro em 20/7/1926, e faleceu na mesma cidade em 22/5/1988. Durante anos trabalhou como carregador de engradados de cerveja, trocador de ônibus, engraxate e entregador.

Compositor brilhante, Geraldo Babão teve seu primeiro samba-enredo cantado em 1940, ainda na Unidos do Salgueiro, quando a escola desfilou na Praça Onze, com o enredo "Terra Amada".

Com a fusão das escolas Azul e Branco e Depois Eu Digo, para a fundação do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, Geraldo Babão continuou fiel à Unidos do Salgueiro que viria a desaparecer alguns anos mais tarde, e passou a fazer parte também da ala de compositores da Unidos de Vila Isabel, onde compôs os sambas de enredo "Castro Alves - Poeta dos escravos" (1959) e "Imprensa régia" (1960).

Em 1962, convidado por seu amigo Tião da Alda, então diretor de bateria do Salgueiro, passou a integrar a Ala dos Compositores da escola. O samba-enredo "Descobrimento do Brasil", de sua autoria, classificou o Salgueiro em terceiro lugar no Grupo 1 do carnaval daquele ano.

Dois anos depois, compôs com seu irmão, irmão Jarbas Soares de Carvalho (Binha) e Djalma Sabiá, um dos mais conhecidos sambas da escola: Chico-Rei.

A escola seria campeã do carnaval, em 1965 - História do Carnaval Carioca - com um samba feito por Babão em parceria com Valdelino Rosa. A escola desfilaria ainda com um samba de Geraldo Babão em 1973 ("Eneida, amor e fantasia") e 1977 ("Do cauim ao efó, com moça branca, branquinha).

Em 1974, foi lançado o LP "História das escolas de samba: Salgueiro", pelo selo Marcus Pereira, no qual interpretou algumas de suas composições. Dois anos depois, sua composição "Samba do sofá" (com Dicró) foi registrada por Roberto Ribeiro, no LP "Arrasta povo".



Faleceu em consequência de complicações acarretadas por um tombo na escadaria que liga a Lapa (Rua Joaquim Silva) à Santa Teresa.

Após sua morte, a BMG lançou, em 2001, a série "Sambas da Minha Terra", coletânea que incluiu sua composição "Viola de maçaranduba", cantada pelo próprio Geraldo Babão. No ano de 2002, Martinho da Vila incluiu "Chico Rei" no disco "Voz e coração", com a participação especial do percussionista Naná Vasconcelos.


O sambista foi um versador do primeiro time, como mostra o documentário “Partideiros”, lançado em 1978, sob a direção de Carlos Tourinho e Clóvis Scarpino. Vale assistir.

Geraldo é um dos maiores nomes da agremiação que ajudou a fundar, inclusive com um samba de união, o Salgueiro, e autor de diversos sambas-enredo da escola.

Seu pai músico o ensinou a tocar flauta, seu diferencial e motivo do seu apelido:

Tocava horas a fio pelas vielas do morro, e a saliva que saía da boca para não machucar os lábios em contato com a flauta lhe rendeu o apelido que o consagraria no carnaval carioca: Geraldo Babão”, como conta a reportagem do jornal Extra.

Já este depoimento do Djalma Sabiá, único fundador vivo da escola, ressalta essa qualidade musical de Geraldo: “não tinha pra ninguém”. E revela: “tinha que comprar conhaque, cachaça. Ele só funcionava assim”:


terça-feira, 28 de junho de 2016

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




Diante da falta do pré conhecimento do ouvinte, o rádio age com a imprevisibilidade. Em geral, salvo quando o apresentador adianta, não sabemos qual canção será executada no momento seguinte. Outras técnicas de reprodução tentam repetir isso. Mas, por exemplo, o modo aleatório de nossos equipamentos trabalha com canções previamente escolhidas por nós, faz a procura "aleatória" em arquivos pré montados. Tudo está previsto, tudo é des-surpresa. Ou seja, tais recursos inibem o risco e a graça que o rádio nos proporciona. 

E é uma destas armadilhas do imprevisível radiofônico que captura o sujeito de "Maldito rádio", de Adriana Calcanhotto (Micróbio vivo 2012). Sem esperar, já em pretensa profícua recuperação das dores do termino do amor, o rádio toca a canção que detona memórias e esquecimentos. "Maldito rádio / Agora que parecia que eu ia / Deixar o falso amor lá na memória / Agora que parecia que eu ia ser agora", canta praguejando: "Volte pros anúncios / Para para o hit da nova novela".

Amamos a vida pela sua imprevisibilidade. É a vontade livre das coisas o que nos oferece a sensação de liberdade, mesmo quando elas nos parecem fazer mal, como no caso do sujeito da canção. Ferido, ele não percebe isso: quer esquecer aquilo que o rádio teimou em lembrar. O excesso de segurança, vigília e (falso) bem-estar parecem caracterizar a contemporaneidade.

Uso o termo vontade tal e qual Nietzsche definia. Ou seja, como a unificação de toda a multiplicidade dos nossos afetos. Como o querer só se constitui como palavra, é o reconhecimento do domínio que dá a sensação de liberdade. Mas este domínio não pode ser confundido com comodismo, máscara, aparência, ilusão. 

Na verdade, é neste imbróglio que o sujeito da canção está enredado. Ele acha que tem o domínio, mas a canção tocada naquele momento pelo rádio vem e desvela tudo. O sujeito pensa comandar os afetos, mas reconhece que não os obedece e culpa - porque ainda carregamos a necessidade de apontar culpados - o rádio por isso.

É a negação da vontade o que move o sujeito da canção "Maldito rádio". Iludido na crença de que teria o domínio-de-si - Agora que parecia que eu ia / Mudar de vez o curso dessa história (...) Não é momento / De revisar emoções que são só minhas" -, ele se defronta consigo mesmo, com situações que não se resolvem no nada, mas, ao contrário, na afirmação dos afetos que ele tenta negar.

De viés, ele descobre que não é independente de outros sujeitos, de outros corpos, muito menos do "falso amor" (ela), nem da história pulsional e cultural que lhe constitui hoje. A canção que lhe rouba a pseuda harmonia, convida o sujeito à vida, ao enfrentamento, ao risco. Ela Indica que ele não está apartado do todo.

Em sua valorização do esquecimento e de sua consequente força plástica fundamental à felicidade, o sujeito esqueceu que a vida é um lance de olhos, um relance, um instante. E é isso que a canção - com melodias que machucam o coração - quer apontar, surgida assim, do inesperado. Não à toa, "Maldito rádio" é dedicada a Ângela Maria, "como representante dessas vozes que amamos escutar no rádio, mas que às vezes podem machucar", como escreve Calcanhotto no encarte.

Podemos entrar ainda em uma rápida, mas pertinente, reflexão sobre o tempo. Como diz outra canção, "o tempo voa mais do que a canção". "Maldito rádio" confirma que o tempo da canção não é o tempo do sujeito. Com sua capacidade de cristalizar momentos, a canção parece estar no eterno presente. "Ficaram as canções e você não ficou", dirá outro sujeito cancional. Enquanto isso o sujeito não está apartado do todo temporal.

O tempo não é espacializável. E é do centro desta constatação dolorosa que surge o canto do sujeito de "Maldito rádio". Adultos, não somos como a criança que esquece no instante imediato a briga com o coleguinha e caímos na interpretação rancorosa do passar do tempo. É nisso que o sujeito se debate. Tudo motivado pela canção que desperta memórias não agradáveis, histórias "mal acabadas".

Voltando a Nietzsche, podemos dizer que o sujeito de "Maldito rádio" está na afirmação do "foi assim", ao invés do "assim eu quis", "assim eu vou querer". Esta mudança na mirada das coisas que somos ainda não atingiu o sujeito e ele sofre. É este "querer para trás" a cura do ressentimento proposta por Zaratustra.

Ou seja, esquecimento não é inércia, acomodação, resignação. É trabalho contínuo, é uma benção laica daquilo que somos e continuamos a experimentar ser. Esquecer é lembrar que somos um todo de afetos em que não há distinção entre corpo e alma, mas um continuar querendo o que foi/é querido, e não maldito. 

"O esquecimento, em Nietzsche, remetido à digestão, sugere uma visão do corpo e da relação com a vida radicalmente distintas daquela estabelecida pela lógica da descartabilidade e da obsolescência imediata de tudo (tanto de produtos quanto de relações interpessoais), cara aos modos de vida atualmente valorizados, atrelados à lógica empresarial", destaca a doutora Maria Cristina Franco Ferraz, em palestra intitulada "Atualidade do pensamento de Nietzsche".

Obviamente, é preciso haver uma "paciência do tempo", um dobrar-se ao tempo do luto, da doença, do fim de uma relação amorosa, por exemplos. Mas é do horror contemporâneo ao risco que trato aqui. O sujeito de "Maldito rádio" mostra que a prevenção e a adaptação não deram conta daquilo que ele suponha ter "superado". Esquecer não é negar, isso ele descobre com o retorno da dor, ao ouvir aquela canção inesperada que, entre um hit da novela e um anúncio, lhe arrebata e arrebenta.


***

Maldito rádio
(Adriana Calcanhotto)

Não, de novo não
Não quero ouvir não
Agora não

Maldito rádio
Agora que parecia que eu ia
Deixar o falso amor lá na memória
Agora que parecia que eu ia ser agora

Não é momento
De machucar meu coração com melodias
Maldito radio não me faça pensar nela
Volte pras notícias
Para o hit da nova novela

Maldito rádio

Não, de novo não
Não quero ouvir não
Agora não

Maldito rádio
Agora que parecia que eu ia
Mudar de vez o curso dessa história
Agora que parecia que eu ia ser agora

Não é momento
De revisar emoções que são só minhas
Maldito radio não me faça pensar nela
Volte pros anúncios
Para para o hit da nova novela

Maldito rádio

Não, de novo não
Não quero ouvir não
Agora não



* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

MEMÓRIA MUSICAL BRASILEIRA

Disco que conta com arranjos de nomes como Wagner Tiso e Gilberto Gil, "Domingo Menino Dominguinhos" completa 40 anos



Dominguinhos – Domingo Menino Dominguinhos (Philips) (1976)

“Um dia desses eu mostrei esse disco prum grande colega e sanfoneiro americano, o Robert Curto que toca música brasileira como poucos e na mesma hora ele disse: “Caralho, o que o Dominguinhos estava ouvindo nessa época pra gravar este disco ? Será que ele ouvia Charlie Parker, John Coltrane ?

Primeiramente a banda que o acompanha neste disco é da pesada: Wagner Tiso no piano, Toninho Horta nas guitarras, Jackson do Pandeiro na percussão, Altamiro Carrilho na flauta (não tem na ficha técnica, mas o Dominguinhos que me disse), Gilberto Gil no violão e outros músicos completam essa “gig” jazzística.

O repertório é de primeira também. Dominguinhos e sua parceira Anastácia assinam grande parte da autoria das músicas do disco. Quero um Xamego. O Babulina (um samba-rock de sanfona), Destino Traquino, De Mala e Cuia, Tenho Sede (maravilhosa !!!), Forró do Sertão, Veja, Cheguei pra ficar e Canto de Acauã são da dupla. Algumas são lentinhas e tem uma cadência que emociona com Dominguinhos brincando com sua sanfona nos intervalos dos versos. Tem um samba muito bonito da Anastácia chamado Minha Ilusão, em que Altamiro Carrilho coloca sua flauta numa introdução belíssima e Dominguinhos canta com uma leveza e facilidade incríveis. O mesmo Altamiro Carrilho é autor de Gracioso, um choro invocado e com um groove anos 70. A última faixa do disco é Baião Violado, do Dominguinhos, que pra mim é a melhor. Wagner Tiso arrebenta num solo e Dominguinhos com seus contrapontos incríveis mostra seu lado improvisador.

Dominguinhos é um músico completo. Em 1949 / 1950 conheceu Luiz Gonzaga que na mesma hora lhe deu 300 mil réis e seu endereço no Rio de Janeiro. Foi bater na porta do Mestre Lua em 1954 aos 13 anos no Rio de Janeiro. Na mesma hora o Mestre Lua lhe deu uma sanfona de 80 baixos. No RJ foi servente de pedreiro, tintureiro e tocava nos fins de semana com seu pai e irmãos nas festas.

Passou muitos anos da sua vida tocando em boates e cabarés no Rio de Janeiro. Nos cabarés ele tocava de tudo: Jazz, Bolero, Samba-Canção, Bossa Nova, choros e claro alguns forrós. E ainda por cima, substituía nada mais nada menos que Orlando Silveira no regional do Canhoto e Chiquinho do Acordeon na Rádio Nacional, Rádio Tupi, Rádio Mayrink Veiga. Nas rádios acompanhava Caubi Peixoto, Nelson Gonçalves, Ciro Monteiro, Dalva de Oliveira e qualquer um que aparecia. Não queria gravar discos, até que em 1964, Pedro Sertanejo (pai de Oswaldinho do Acordeon) o levou pra gravar na sua gravadora, a Cantagalo, sediada em São Paulo. Foi lá e gravou Fim de Festa. O primeiro de uma série de discos consagrados desse grande compositor e versátil instrumentista da Música Brasileira.


Faixas:
01 - Quero um xamego (Anastácia - Dominguinhos)
02 - O babulina (Anastácia - Dominguinhos)
03 - Destino traquino (Anastácia - Dominguinhos)
04 - De mala e cuia (Anastácia - Dominguinhos)
05 - Minha ilusão (Anastácia)
06 - Gracioso (Altamiro Carrilho)
07 - Tenho sede (Anastácia - Dominguinhos)
08 - Forró do sertão (Anastácia - Dominguinhos)
09 - Veja (Anastácia - Dominguinhos)
10 - Cheguei pra ficar (Anastácia - Dominguinhos)
11 - O canto de acauã (Anastácia - Dominguinhos)
12 - Baião Violado (Dominguinhos)


Fonte: Forró em Vinil

MAURO SENISE REALÇANDO MELODIAS DE GILBERTO GIL

Por José Teles



Feliz e ótima coincidência que dois dos melhores instrumentistas em atividade no Brasil lancem, quase simultaneamente, discos interpretando dois dos maiores autores em atividade na música popular brasileira. O bandolinista Hamilton de Holanda, com Samba de Chico (já comentado neste blog), e o saxofonista Mauro Senise, com Amor Até O Fim – Mauro Senise Toca Gilberto Gil (CD e DVD, Fina Flor).

Ambos os compositores pertencem à geração que deu uma nova conotação à letra na MPB, não mais apenas lúdica ou romântica, porém também engajada, instrumento de transformação da sociedade, sobretudo nos anos 60. Parafraseando versos de uma canção da época, vivia-se em um tempo de guerra, em um tempo sem sol (de Tempo de Guerra, Edu Lobo, Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, de 1965), então a letra adquiriu uma importância que ia além do lirismo, do poético, não poucas vezes, em detrimento da melodia.

É isto que Senise ressalta, a beleza a engenhosidade da música de Gilberto Gil, com quem tocou no começo da carreira, nos anos 70. Ele selecionou 13 músicas (compostas entre 1965 e meados dos anos 80), a mesma quantidade no CD e no DVD, com Gil participando de Preciso Aprender A Só Ser, declamando, na verdade falando, a letra. Senise escreve no encarte que escolheu composições que soassem bem no formato instrumental, e todas se prestam a isto, até porque Gil é ele mesmo um instrumentista talentoso.

Se a seleção tivesse um técnico no estilo Mauro Senise a Copa teria sido outra história. Ele aqui escalou um time irrepreensível de craques, tanto para tocar, quanto para arranjar. Não tinha como não ganhar com nomes feito Romero Lubambo, Leonardo Amuedo, Zeca Assumpção, Rodrigo Villa, Bruno Aguiar, Ricardo Costa e Mingo Araújo, velha e nova guarda do instrumental brasileiro juntas e sintonizadas com o sax de Senise. A ordem é suas a camisa, mas sempre com a bola no pé, sem complicar.

Achando pouco, ele arrebanhou sete arranjadores para dar uma nova roupagem às canções, começando pelo parceiro Gilson Peranzzetta, Jota Moraes, Cristóvão Bastos, Gabriel Geszti, Kiko Horta, Adriano Souza e Roberto Araújo. Depois desta é chutar e é correr para o abraço.

O disco incursiona por antigas canções, os sambas Mancada e Eu Vim Da Bahia, passa por hits, Se Eu Quiser Falar Com Deus ou Drão, algumas mais ou menos conhecidas, Flora e A Linha E O Linho. Em algumas tocam como manda o figurino, sem sair muito do caminho originalmente traçado por Gil, , ou reinventam, feito fazem com Expresso 2222 acentuando a influência que as bandas de pífanos exerceram sobre Gilberto Gil.

O DVD é complemento do CD, o making of. Recomenda-se escutar primeiro o disco, para depois entender a apreciar como ele foi feito.

Confiram Mauro Senise e banda em Procissão:

segunda-feira, 27 de junho de 2016

PAUTA MUSICAL: JESY BARBOSA, A RAINHA DA CANÇÃO BRASILEIRA

Por Laura Macedo


Jesy Barbosa

*15/11/1902 - Campos (RJ)
+30/12/1987 - Rio de Janeiro (RJ)
Cantora / Violonista / Jornalista / Poetisa / Rádio atriz / Autora de rádio novelas

É com a frase a seguir: - “Continua sendo uma das mais ignoradas dentre as cantoras pioneiras da Era do Rádio no Brasil”-, que o Dicionário Cravo Albin encerra o verbete da cantora Jesy Barbosa. Tentando minimizar tal efeito (infelizmente verdadeiro) fiz este post em sua homenagem destacando algumas das suas gravações.

Herdou dos pais o gosto pelas artes, especialmente, com ênfase na literatura e música. Atuou em vários jornais e revistas e foi uma das primeiras cantoras da chamada “Era do Rádio” a gravar discos, no final da década de 1920.

Jesy Barbosa, ainda criança, aprendeu tocar violão e teve aulas de canto.


Roquete Pinto e Jesy Barbosa

O pontapé inicial da carreira se deu por intermédio de Roquete Pinto quando a convidou a ingressar na Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em 1928.

No ano seguinte (1929) grava seu primeiro disco pelo selo Victor estabelecendo um marco histórico, ou seja, a primeira cantora a gravar pela Victor no Brasil.

Olhos pálidos” (Josué de Barros) # Jesy Barbosa. Disco Victor (33208-A), 1929.

Medroso de amor” (Zizinha Bessa/Jesy Barbosa) # Jesy Barbosa. Disco Victor (33208-B), 1929.

Ainda em 1929, grava de Marcello Tupymambá, “Balaio”.

Balaio” (Marcello Tupynambá) # Jesy Barbosa e Mário Pessoa. Disco Victor (33219-A), 1929.


Em 1930, foi contratada pela Rádio Clube do Brasil. Nesse ano foi escolhida, em concurso do jornal "Diário Carioca", como a “Rainha da Canção Brasileira” gravando, na ocasião, seu primeiro grande sucesso.

“Minha viola” (Randoval Montenegro) # Jesy Barbosa (voz) / Rogério Guimarães (violão). Disco Victor (33264-A), 1930.


O concurso promovido pelo jornal “Diário Carioca” teve grande repercussão, envolvendo nomes da nossa música brasileira da época, a exemplo de Carmen Miranda, Yolanda Osório, Zaíra Cavalcanti, Aracy Cortes, Abigail Maia, Olga Prageur, Francisco Alves, Silvio Caldas, Renato Murce, Vicente Celestino, Patrício Teixeira, Noel Rosa, Mário Reis, Gastão Formenti, Aníbal Duarte, Breno Ferreira, entre outros.

Uma das prévias da acirrada concorrência


A duração do referido concurso foi de 17 de julho a 10 de setembro de 1930, contemplando, também, o “Príncipe dos Cantores Regionais”, vencido pelo cantor Renato Murce.


Resultado Final:


Os Vencedores

Jesy Barbosa, que por uma votação altamente significativa, foi consagrada a “Rainha da Canção Brasileira” e Renato Murce conquistou o título ambicioso de “Príncipe dos Cantores Regionais”.




Diploma recebido por Jesy Barbosa


Mais três destaques do ano de 1930. A versão de “Amor” feita/gravada por Jesy Barbosa, “Saudade danada” e “Romance sertanejo”.

“Amor” (Janis/Gouding [versão: Jesy Barbosa]) # Jesy Barbosa. Disco Victor (33274-B), 1930.


Jesy Barbosa e Rogério Guimarães

Saudade danada” (Joubert de Carvalho) # Jesy Barbosa (voz) / Rogério Guimarães (violão). Disco Victor (33283-B), 1930.



Em 1931, quando da sua visita ao Brasil, o Príncipe de Gales, futuro rei Eduardo VIII da Inglaterra, teceu grandes elogios à cantora Jesy Barbosa e comprou seus discos para curtir na Inglaterra. Em agradecimento Jesy Barbosa gravou o tango “Príncipe de Gales”.

Príncipe de Gales” (Gastão Lamounier/Mário Lopes de Castro) # Jesy Barbosa. Disco Parlophon (13298-B), 1931.

Em 1931, gravou também, “Baianinha” e “Um beijo não é pecado”.


Baianinha” (Henrique Vogeler/Freire Júnior) # Jesy Barbosa. Disco Victor (33486-X), 1931.

Um beijo não é pecado” (Gastão Lamounier/Valdo Abreu) # Jesy Barbosa. Disco Victor (33632-A), gravação 1932 / lançamento 1933.



Em 1933, gravou pelos selos Columbia e Odeon seus dois últimos discos, respectivamente, com as músicas “Saudades do arranha-céu”/“Olhos perdidos” e “Ninho desfeito”/“Nunca mais”.

Jesy Barbosa e Orestes Barbosa


Saudades do arranha-céu” (Orestes Barbosa/J. Tomaz) # Jesy Barbosa. Disco Columbia (22236-A), 1933.

Olhos perdidos” (Orestes Barbosa/J. Tomaz) # Jesy Barbosa. Disco Columbia (22236-B), 1933.


Segundo o compositor/jornalista Orestes Barbosa, Jesy era especialista em “canções de emoção e pensamento”. Suas gravações ouvidas neste post refletem a opinião de Orestes. Encerro com mais uma bela interpretação de Jesy Barbosa. Trata-se do tango/canção “Volta”.

Volta” (Mário Lopes de Castro) # Jesy Barbosa. Disco Victor (33269-B), 1930.


Em 1935, atuou na Rádio Tupi com grande sucesso. Aos poucos foi deixando as interpretações românticas das canções brasileiras passando a atuar, posteriormente, como rádio atriz e escritora de novelas transmitidas pela Rádio Nacional. Uma das suas novelas de sucesso foi “Ressurreição”.

Foi redatora da Rádio Globo durante nove anos, atuando, também, como apresentadora.

Em 1963, publicou o livro de poesias "Cantigas de quem perdoa", pela Livraria Freitas Bastos, de São Paulo. (Alguns exemplares disponíveis do site Estante Virtual).

O Selo Revivendo, em 1998, incluiu sua interpretação de “Medroso amor”, parceria sua com Zizinha Bessa, no volume 6, da série “Músicas Brasileiras” (segundo áudio disponível neste post).


Jesy Barbosa foi uma artista eclética, atuando em várias frentes. Ao gravar um total de 26 discos, principalmente na Victor, mas também na Columbia e Odeon, totalizando 52 músicasde grandes compositores, como Joubert de Carvalho, Gastão Lamounier, Orestes Barbosa, entre outros, nos deixou um grande legado à Música Popular Brasileira.

Que o nosso objetivo seja alcançado, ou seja, que Jesy Barbosa saia do anonimato e continue seu reinado como a nossa “Rainha da Canção Brasileira”.

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Post dedicado ao amigo Gilberto Inácio Gonçalves.

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Fontes:

- Áudios disponibilizados pelo colecionador/pesquisador Gilberto Inácio Gonçalves.

- Blog Estrelas que nunca se apagam.

- Dicionário Cravo Albin da MPB (Verbete: Jesy Barbosa).

- Fotomontagem: Laura Macedo.

- Fotos: Acervo Nirez / Revista Carioca [várias edições] / Internet.

- Montagem áudios Soundcloud: Laura Macedo.

- Site YouTube (Canais: “luciano hortencio”, “Gilberto Inácio Gonçalves”, “1000amigovelho”).

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NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



No dia seguinte, ele me dizia e eu publicava na coluna: “O importante é não abrir concessões à repressão e assim vou continuar agindo, sem pensar onde possa parar, eu ou a minha carreira. Nós somos a revolução encarnada.” No fim do ano, depois de tudo que tinha acontecido no Rio e em São Paulo, o festival da Record de 68 não despertou as mesmas paixões e a grande final foi morna. A vencedora foi a irônica “São, São Paulo, meu amor”, do tropicalista Tom Zé, apresentada por ele e Os Mutantes. Rita, Sérgio e Arnaldo também brilharam com “2001”, uma hilariante sátira sertanejo-espacial em parceria com Tom Zé que ficou em quarto lugar. Mas o maior impacto do festival foi a música classificada em terceiro pelo júri, “Divino maravilhoso”, de Gil e Caetano, cantada sensacionalmente por Gal Costa, acompanhada por uma banda de rock, com gritos e guitarras, cheia de brilhos e transparências, numa radical transformação da ex-Gracinha gilbertiana em uma explosão hendrixiana.

“Divino maravilhoso” foi também o nome do programa que Gil e Caetano comandaram fugazmente na TV Tupi, onde radicalizaram ainda mais as propostas anárquicas do tropicalismo e provocaram indistintamente a esquerda e a direita. Num dos programas, Caetano, dentro de uma jaula, arrebentava as grades e cantava: “Um leão está solto nas ruas”, um sucesso de Roberto Carlos. Em outro, Gil performava Jesus Cristo numa versão tropicalista da “Última ceia”, com os apóstolos cantando e comendo e jogando bananas e abacaxis para o público, uma espécie de Evangelho segundo o Chacrinha. No início de dezembro, o pior aconteceu: foi decretado o AI-5. Censura total, repressão pesada, cassações e prisões: terror. No dia seguinte, perplexo e apavorado como toda a redação, fui estimulado por Samuel a escrever uma coluna sobre Bob Dylan, o rebelde, o Chico Buarque americano. Escrevi apaixonadamente. No outro, ele sugeriu Melina Mercouri, uma artista que lutava pela liberdade contra a ditadura dos coronéis na Grécia. Depois Joan Baez e os direitos civis. Três rebeldes internacionais depois, a coluna saiu pela última vez, não como “Roda-viva”, mas com o título de “Chão de estrelas”, da antiga canção de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa, uma última gargalhada tropicalista.

“Minha vida era um palco iluminado — eu vivia vestido de dourado palhaço das perdidas ilusões...” A coluna foi suspensa por tempo indeterminado. No último “Divino maravilhoso”, que foi ao ar na antevéspera de Natal, Caetano cantava “Boas festas”, de Assis Valente, com um revólver apontado para a cabeça: “Já faz tempo que eu pedi mas o meu Papai Noel não vem com certeza já morreu ou então felicidade é brinquedo que não tem.” Logo depois do Natal, Gil e Caetano foram presos. Poucos dias antes da prisão de Gil e Caetano, Chico Buarque acordou às sete da manhã com a polícia em casa e foi levado ao Ministério do Exército, onde passou o dia depondo sobre sua peça, suas músicas e suas ideias. Recebeu ordens de não sair da cidade e teve que pedir uma autorização especial para poder viajar no início de janeiro para se apresentar no Festival do MIDEM — Mercado Internacional do Disco e Edições Musicais —, em Cannes, com Marieta grávida de seis meses. De lá foi esperançoso para a Itália, onde a gravação de “A banda” com a popularíssima Mina tinha estourado e tornado seu nome conhecido. Em vão: o lançamento italiano de seus sucessos brasileiros reunidos em um disco teve boas críticas mas foi ignorado pelo público. Um outro disco, com as versões de suas letras em italiano feitas por Sérgio Bardotti e com arranjos de Ennio Morriconi, também não aconteceu. Gil e Caetano continuavam presos no Rio de Janeiro. Muitos outros amigos estavam presos e desaparecidos. As notícias do Brasil eram aterrorizantes.

Convencidos por Vinícius, que estava em Roma, Chico e Marieta decidiram ficar na Itália, onde nasceu sua primeira filha, Silvia. No calorão de janeiro de 1969, na varanda do Antonio’s, eu pensava em Caetano preso enquanto o rádio tocava o seu frevo rápido e alegre, esfuziante, chamado “Atrás do trio elétrico”, que todo mundo tinha adorado, de Os Mutantes a Edu Lobo. Uma unanimidade. De volta ao Rio começamos a trabalhar freneticamente no projeto. O espaço era excelente, destinado a um teatro de 400 lugares, e utilizando minhas observações da “viagem de estudos noturnos” e meus conhecimentos da escola de design, projetei-o com um palco, uma imensa pista de dança branca e preta e, novidade absoluta, uma arquibancada de 20 degraus, forrada de tecido jeans.

Não haveria “consumação mínima” nem “couvert artístico” como em todas as boates e casas noturnas, não haveria seleção na porta, as entradas seriam vendidas para qualquer um numa bilheteria, como em qualquer show. Preços populares. Faltava um nome. Havia na parede do escritório uma grande lista, onde cada um ia escrevendo suas sugestões. Uma tarde, um jovem ator amigo, que sempre dava uma passada quando estava por perto, juntou
dois da lista e sugeriu “Frenetic (que eu gostava menos) Dancing Days” (meu favorito, tirado de uma música do Led Zeppelin). Todo mundo gostou da sugestão de Marco Nanini, bati o martelo e o designer Nilo de Paula criou — em letras de néon, naturalmente — o logo de The
Frenetic Dancing Days Discotheque, com inauguração marcada para o dia 5 de agosto de 1976, aniversário de morte de Carmen Miranda e de Marilyn Monroe, no quarto andar do deserto Shopping Center da Gávea. “Dancemos todos, dancemos, amadas, mortos, amigos, dancemos todos até não mais saber-se o motivo.” Os versos de Mário Quintana ilustravam os convites para a noite de estreia.

Para servir as poucas mesas espalhadas em volta da pista de dança, eu não queria garçons, mas garçonetes, como as novaiorquinas, alegres e divertidas, atrizes representando garçonetes. Assim que falei da ideia, minha cunhada Sandra Pêra se interessou pelo papel e me disse que chamaria suas amigas Regina Chaves, Leiloca e Lidoka, que tinham participado da trupe feminina das Dzi Croquettes, dirigida por Lennie Dale, e uma ótima cantora, Dulcilene de Morais, a “Nega Dudu”. Indicada por Dom Pepe, a mulata Edir de Castro, bailarina da trupe Braziliana, completou o grupo. Mas elas não seriam só garçonetes, no meio da noite subiriam ao palco de surpresa, cantariam três ou quatro músicas e depois voltariam às bandejas. Ficaria muito simpático e original, elas se divertiriam mais e provavelmente melhorariam muito as gorjetas. Escolhemos cinco músicas, de Rita Lee (“Dançar para não dançar”), dos Rolling Stones (“Let’s Spend the Night Together”), de Raul Seixas (“Let Me Sing”) e dois clássicos da jovem guarda (“Exército do surf” e “O gênio”), e chamei Roberto de Carvalho, o novo pianista, guitarrista e namorado de Rita Lee, para ensaiá-las. No seu apartamento em Copacabana, Roberto criou os arranjos, distribuiu as vozes, ensaiou-as exaustivamente e sobreviveu ao fogo cruzado de seis mulheres falando ao mesmo tempo, com opiniões diferentes. Nasciam as Frenéticas. Na noite de estréia, elas estavam com malhas colantes de lurex prateado, do pescoço aos pés, de saltos altíssimos, bocas vermelhas e bandeja na mão. Momentos antes de as portas de vidro se abrirem para centenas de pessoas, uma parede da sala de entrada ainda estava sendo pintada.

Fora isso, estava tudo pronto para os convidados do meio musical e da TV Globo, para amigos cinema-novistas, jornalistas, surfistas, socialites, psicanalistas e comunistas: a praia inteira, na grande boca livre, na festa carioca da semana. Mais de 700 pessoas abarrotaram pista e arquibancadas, bar e sala de entrada, mesas e banheiros. Quase às duas da madrugada Rita Lee subiu ao palco com sua nova banda e novo show, “Entradas e bandeiras”, e levantou o público com uma performance sensacional. Abriu com seus hits “Ovelha negra” e “Esse tal de roque enrow” e fechou apoteoticamente com sua nova música em parceria com Paulo Coelho, “Arrombou a festa”, que gozava e sacaneava os grandes personagens da música popular brasileira. Era uma versão atualizada e debochada da “Festa de arromba” da jovem guarda. “Ai, ai meu Deus, o que foi que aconteceu com a música popular brasileira? Todos falam sério, todos eles levam a sério, mas esse sério me parece brincadeira...” Assim que voltou a São Paulo, Rita Lee foi presa: uma blitz policial em sua casa encontrou uma bagana de maconha e ela foi levada algemada para a delegacia. Deu no “Jornal nacional” e saiu na primeira página de todos os jornais. Mas eu soube antes, à tarde, em um telefonema aflito de sua empresária Mônica Lisboa. Liguei para o advogado Técio Lins e Silva, que me indicou em São Paulo o Dr. José Carlos Dias. Numa ação espontânea e surpreendente, Elis Regina foi com os dois filhos, João, de seis anos, e Pedro, de um, para a porta da delegacia e fez um escândalo, falou para todas as rádios e televisões em apoio a Rita — que não conhecia, com quem nunca tinha falado, nem mesmo em bastidores de televisão e de festivais. Rita era o rock, Elis a MPB. Elis mandou-lhe um bilhete amoroso e convidou-a para participar de seu especial de fim de ano na Bandeirantes. Por ser primária, Rita, grávida de seu primeiro filho, foi solta para responder ao processo em liberdade.

O compacto de “Arrombou a festa” estourou nas rádios e nas lojas, com Rita vestida de presidiária na capa. A boca-livre inaugural do Dancing Days foi um sucesso, mas no dia seguinte, aberto ao público pagante, só apareceu meia dúzia de gatos pingados. Comecei a ficar preocupado. No outro dia, com anúncios nos jornais, telefonemas desesperados a colunistas, convites distribuídos e esperanças renovadas, recebemos pouquíssimas visitas. Fiquei preocupadíssimo. No terceiro dia, uma sexta-feira, ressurgimos dos mortos e a casa encheu, com um público jovem e animado que tinha lido nos jornais e ouvido na praia o boca a boca sobre a sensacional festa de abertura da nova discoteca na Gávea, com muitos amigos voltando. No sábado, mais de 700 pessoas, casa lotada, público animadíssimo, adorando tudo, enchendo a pista, namorando nas arquibancadas, dançando e se divertindo com o showzinho das Frenéticas, que foi aplaudido freneticamente, muito além das nossas expectativas mais otimistas. Acrescentamos mais duas músicas ao repertório delas.

Em sua cabine de som, atrás de seus pick-ups, Dom Pepe gritava “Vou fazer vocês pular feito pipoca!”. E a pista explodia com hits de James Brown e dos Rolling Stones, de Rita Lee e de Raul Seixas, misturados com os sucessos da disco music trazidos de Nova York. Com um projetor de 16mm emprestado, Dom Pepe exibia numa tela sobre o palco números musicais filmados cedidos pelas gravadoras, com Bob Dylan (“Hurricane”), David Bowie (“Soul Train”), Eric Clapton (“Cocaine”) e se transformava no primeiro “film-jockey” do Brasil. O público nunca tinha visto aquilo e adorava. O volume era ensurdecedor. Em duas semanas o Dancing Days se tornou a febre da cidade. Misturados ao jovem público da Zona Sul que enchia a casa, estrelas e personagens das noites cariocas, músicos, intelectuais, esportistas e até artistas que não frequentavam a noite, como Milton Nascimento e Maria Bethânia, dançavam no frenético Dancing Days. A casa era tão democrática que uma noite o pintor Jorge Guinle Filho, surpreso, encontrou na pista a sua empregada doméstica: os dois tinham
comprado entrada na mesma bilheteria e dançavam na mesma pista. O ambiente era tão sexy e tão liberal que as escadas escuras do shopping deserto se enchiam de gemidos e de casais de todos os sexos, enquanto outros, mais ousados, preferiam os cantos escuros debaixo das arquibancadas, protegidos por cortinas. Por pressão popular, as Frenéticas passaram a cantar mais músicas e a servir menos drinques e se tornaram a grande atração da casa.

Muita gente ia lá só para ver as Frenéticas, de espartilhos negros, cinta-liga, meias de náilon e saltos altíssimos, num show de mais de uma hora, obrigadas a incontáveis “bis”. Bandejas, nunca mais. Mas a essas alturas não havia mais mesas no Dancing Days, era tudo pista de dança.No Dancing Days lancei meu primeiro livro, uma coletânea de contos temerariamente publicada por um vizinho de porta do escritório de Ipanema, o jovem Paulo Rocco, que iniciava sua editora numa salinha apertada como a minha. Paulo teve muito boa vontade: com exceção de três ou quatro boas histórias (Antônio Calmon queria filmar uma delas, de sexo e terror), o resto do livro, escrito às pressas, sem edição, sem revisão, era uma mistura caótica — que não deu certo de algumas boas ideias com um monte de bobagens. O piromaníaco foi um fracasso de vendas e passou despercebido pela crítica. Mas a noite de autógrafos foi divertidíssima, misturando meu avô e seus amigos velhinhos da Academia Brasileira de Letras com gatas e surfistas de Ipanema, artistas e doidões, jornalistas e cinemanovistas, colegas da TV Globo e amigos de Marília do teatro, todos dançando contentes em efervescente boca-livre lítero-discoteca.

No meu aniversário o pessoal preparou uma festança-surpresa, com convidados e equipe, inclusive os seguranças, fantasiados de criança, as Frenéticas de uniforme de grupo escolar. Era uma festa infantil para adultos, com engolidor de fogo, pipoqueiro e carrocinha de algodão-doce na pista, mamadeiras de champanhe de boca em boca. A praia tremeu quando se espalhou o boato que o Dancing, como era chamado na intimidade, estava com as noites contadas: fecharia no dia 5 de novembro para começarem as obras do Teatro dos Quatro. A confirmação da notícia levou a legião de habitues ao desespero e provocou uma corrida dos que queriam conhecer o Dancing Days antes que acabasse. Foram milhares de pessoas, noites e mais noites de festa e dança, onde gente de várias classes e gerações se misturava, uma usina de alegria nas noites cariocas.

Mas, antes de fechar definitivamente, o Dancing foi fechado três vezes pela Administração Regional da Gávea, por não ter alvará nem qualquer licença de funcionamento: a casa era totalmente ilegal, pirata, fantasma. Com as portas do Dancing lacradas, fui conversar com o administrador regional, que era um senhor muito simpático e compreensivo, mas dizia que não podia nos dar um alvará porque naquela zona não eram permitidas casas noturnas. Mesmo no quarto andar de um shopping center deserto?, eu argumentava. Não incomodávamos ninguém, estávamos pagando impostos sobre a bilheteria e o movimento do bar, nossa firma estava em ordem com suas obrigações fiscais, era só mais um mês (embora fossem dois) e a casa fecharia. Ele refrescou e a casa reabriu. A mesma sequência se
repetiu mais duas vezes, completa: com a boa vontade do administrador e a promessa de que iria fechar, a casa reabria. Até o último dia, o Dancing Days jamais teve um alvará ou qualquer licença de funcionamento, começou e terminou absolutamente fora da lei. Já nos últimos dias, fomos fechados pela Delegacia de Polícia da Gávea, atendendo à reclamação de uma vizinha de fundos, que não conseguia dormir, enlouquecida com o barulho. Fui ao apartamento da reclamante, uma senhora educada, escritora de livros infantis, para tentar uma solução. Ela pediu que eu telefonasse para o Dancing Days e mandasse ligar o som, para ouvir o que ela ouvia todas as noites. Telefonei, cético, porque o apartamento era muito distante, mas quando ligaram o som, tremi: do imenso exaustor do Dancing Days vinham não só ar e fumaça de dentro, mas um rio de som que desaguava direto na janela do quarto da pobre senhora.

Constrangido, pedi desculpas e ofereci-lhe imediatamente um ar-condicionado. Me comprometi a colocar isolante acústico na parede que dava para a sua janela. No dia seguinte, forramos toda a parede interna do Dancing com embalagens de ovos de papelão, recomendadas por nosso técnico de som, Ray, um garotão australiano. Adiantou, mas não muito: quando a noite pegava fogo, Dom Pepe e Ray se entusiasmavam no volume e a professora não conseguia dormir. E entrou com um processo para fechar a casa. Mas como faltavam poucos dias para o fim da temporada, antes de qualquer medida judicial, tivemos morte natural e anunciada, no auge do sucesso, sem conhecer a decadência de todas as casas noturnas de sucesso. Muita gente, como o jovem Cazuza, de 17 anos, filho dos amigos João e Lucinha Araújo, um dos frequentadores mais assíduos e animados, chorava na última noite. O Dancing Days começava a virar uma lenda nas noites cariocas.

Entre os vários personagens que marcaram o Dancing, uma das mais bonitas e festejadas era uma jovem atriz paranaense que tinha estourado na novela “Gabriela” e era nossa amiga da praia, uma morena que enlouquecia a pista com sua alegria e seu sex-appeal. Sônia Braga
tinha 24 anos e foi a musa que inspirou Caetano Veloso a compor o sucesso “Tigresa”: “Ela me conta sem certeza Tudo que viveu Que gostava De política em 1966 E hoje dança No Frenetic Dancing Days Ela me conta que era atriz E trabalhou no Hair, Com alguns homens foi feliz, Com outros foi mulher” Dez anos tinham se passado, desde o idealismo hippie, da generosidade revolucionária e do romantismo transformador que marcaram nossa geração. Nos Estados Unidos e na Europa, eles celebravam com sexo, drogas e disco music suas lutas e conquistas e queriam mais. No Brasil, depois de 12 anos de ditadura militar, a escalada repressiva que tinha chegado a seu ponto mais agudo com o assassinato de Vladimir Herzog experimentava uma pequena mas significativa distensão. O general Geisel demitiu o comandante do II Exército em São Paulo como responsável pela área em que ocorreu o crime, enquadrou o aparelho repressivo e sinalizou que mesmo a “guerra contra-revolucionária” tinha limites. E que havia uma possibilidade de abertura, lenta e mínima que fosse. Era um novo carnaval, aquele carnaval que sonhamos na cobertura de Vinícius no dia daquela foto.

A música era um sucesso, estava alegrando o Brasil, mas Caetano estava preso. E ninguém sequer sabia disso, os jornais sob censura não davam nada, não se podia falar no assunto, as redações estavam cheias de informantes do SNI. A coisa estava feia. Ouvindo “Atrás do trio elétrico” me lembrei de uma noite naquele mesmo Antonio’s, logo no início do tropicalismo e da polêmica com as guitarras “estrangeiras”, quando Caetano me surpreendeu com a história de que existia na Bahia, desde os anos 50, uma forma muito popular de música de carnaval, que era tocada pelas ruas em cima de um caminhão, por uma guitarra e um cavaquinho, chamados de “paus elétricos”, que junto com a percussão formavam o “trio elétrico”. Achei muita graça do nome e de toda a história, e embora nunca tivesse ouvido um “trio elétrico” entendi que esses vanguardistas da folia tocavam com seus instrumentos estridentes os grandes sucessos do ano — nacionais e internacionais — em ritmo de frevo rápido, carnavalizavam tudo, faziam pura antropofagia cultural. E o povo dançava e cantava em volta, com alegria e naturalidade. E o pessoal no Rio e em São Paulo tinha se espantado com umas guitarrinhas de nada, divertia-se Caetano.

Naquele verão, fui à Bahia pela primeira vez. Vi um saveiro de verdade, vi vários. Vi fascinado os personagens de Caymmi e Jorge Amado andando pelas ruas, conheci amigos de Glauber Rocha. Da janela do Hotel da Barra via passar o trio elétrico de Dodô e Osmar, tocando “Atrás do trio elétrico”, e pensava em Caetano. Fui convidado a participar do programa do pianista Carlos Lacerda, “o governador do teclado”, na TV Bahia e fiz ao vivo uma ardente defesa do tropicalismo. No entusiasmo e na emoção, acabei dizendo o que não
podia mas que devia: que enquanto o Brasil inteiro cantava e se alegrava com a sua música, Caetano estava sozinho e triste preso no Rio de Janeiro. Foi uma comoção. Pouca gente na Bahia sabia que Caetano estava preso. Assim que o programa terminou, Carlos Lacerda me colocou no telefone para falar com dona Cano, mãe de Caetano, que estava emocionadíssima, como eu. Conheci seus irmãos Roberto e Rodrigo, fui a Santo Amaro da Purificação, me considerei da família. Passei o carnaval na Bahia, atrás do trio elétrico.

No Rio, depois do carnaval, fiquei sabendo que Caetano e Gil tinham sido libertados mas estavam confinados na Bahia, tinham que se apresentar na Região Militar todos os dias, não podiam trabalhar nem dar declarações, não podiam nada. Estavam com os cabelos curtos, Caetano muito triste, Gil muito mais magro, sem barba, de cara limpa e aspecto mais sereno: tinha se tornado macrobiótico na prisão, onde achava que ia ficar para sempre. Libertado de surpresa depois do carnaval, a caminho do aeroporto, percorrendo o Centro da cidade vazio, ainda com os restos da decoração carnavalesca, Gil começou a fazer o seu grande samba de alegria. E de despedida: “O Rio de Janeiro continua lindo, o Rio de Janeiro continua sendo, o Rio de Janeiro, fevereiro e março, alô, alô, Realengo, aquele abraço, alô, torcida do Flamengo, aquele abraço, Chacrinha continua balançando a pança.”

1968 foi um ano terrível para Gil, Caetano e Chico, mas para Wilson Simonal e sua pilantragem foi triunfal. Um hit atrás do outro, cada vez maiores. Mais que um cantor, Simonal se afirmava como um entertainer, que divertia a platéia e a fazia cantar com ele, que contava piadas entre uma música e outra. Do início ao fim dos shows, o público cantava com ele seus sucessos populares, obedecendo alegremente a seus comandos. Quanto mais o público participava cantando, mais aplaudido era o show no final. E Simonal concluía que o público gostava mesmo era de aplaudir a si mesmo, sua própria performance. E que muita gente estava ali pagando não apenas para ouvir, mas principalmente para cantar.

“Vamos lá, alegria! Alegria! Todos comigo, aqui na mão do maestro! Metade do auditório faz ta-ta-tata e metade faz to-toto-to, todos comigo, 1-2-3!”, Simonal comandava. E o público obedecia, feliz, nos teatros superlotados. “Em casa de saci uma calça dá pra dois” era uma de suas máximas favoritas. E o público explodia de rir. “É tamanco sem couro: pau puro!”, era outra. “Malandro é o gato, que não vai à feira e come peixe; malandro é o sapo, que não tem bunda e senta”, dizia ele cheio de suingue e malandragem, o público ria e ele emendava com mais um hit. Como a nova — e sensacional — de Jorge Ben, “País tropical”. “Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza (mas que beleza), em fevereiro (fevereiro) tem carnaval (tem carnaval), tenho um fusca e um violão sou Flamengo e tenho uma nega chamada Tereza.”

O Brasil cantou com Simonal. A música de Jorge agradava a gregos e baianos, com um poderoso arranjo de César Mariano tipo “metais em brasa, com molho”, o irresistível balanço dançante do Som Três e uma grande performance de Simonal. Mas mesmo assim provocou polêmica: no momento mais feroz da ditadura, em pleno terror, com tantas prisões e torturas, sob a mais truculenta censura, não se podia nem devia cantar o Brasil dos militares daquele jeito, com aquele amor ufanista, como os sambas-exaltação de Ary Barroso (entre eles “Aquarela do Brasil”), associados com o Estado Novo getulista. O país estava pegando fogo, não havia mais meios-termos: quem não estava contra — então estava a favor. Jorge Ben, como sempre, ficou na dele: depois de uma fase de transição entre a MPB e a “música jovem” e vice-versa, depois de se eletrificar e dar peso sonoro de rock aos seus sambas, antecipando algumas das principais propostas musicais do tropicalismo, Jorge solidificou seu estilo e detonou uma saraivada de hits como “Que pena”, “Zazueira” , “Cadê Tereza”, “Que maravilha” (com Toquinho) e — o maior de todos — “País tropical”. Os tropicalistas adoravam Jorge Ben, que tinha sido banido da MPB por tocar guitarra e cantar na “Jovem guarda”, porque ele fazia o que eles queriam fazer, em termos de ritmo, de síntese, de liberdade. E mais: valorizaram as letras de Jorge, desprezadas como pueris e primitivas pela MPB universitária e literária, mas celebradas pelos baianos pela sonoridade de suas palavras, pelo ritmo de suas sílabas e rimas, pela liberdade e originalidade de suas abordagens do cotidiano. As letras de Jorge não eram literárias, eram musicais. Suas palavras eram puro som, diziam o que soavam.

Sua música ia além do samba e do rock. Nada mais tropicalista. Depois do AI-5 a minha coluna acabou e Samuel me propôs fazer uma página por semana, com muitas fotos e ilustrações. E textos mais leves, mais internacionais. Porque a coisa estava feia. Prometendo a Samuel uma série de reportagens sobre a explosão da juventude americana, voei para Nova York. Assim que cheguei telefonei para Sérgio Mendes na Califórnia e ele me convidou para acompanhar sua turnê pelos Estados Unidos com o Brazil 66. Me mandou uma passagem de avião de primeira classe, para ir encontrá-los em El Paso, no Texas, de onde seguiria com eles por mais dez cidades, a bordo de um avião fretado. Do frio de final de outono em Nova York cheguei eufórico à canícula texana e fui recebido no aeroporto por Sérgio e Flávio Ramos, ex-dono do Au Bon Gourmet no Rio e que se tornara seu secretário nos Estados Unidos. Sérgio era um big sucesso, vendia milhões de discos, tocava no rádio, aparecia na televisão, dava entrevistas nos jornais, se apresentava em ginásios abarrotados.

Mesmo sabendo de tudo isto, levei um susto à noite, quando entrei num enorme ginásio superlotado de jovens para ouvir Sérgio Mendes e o Brazil 66. Como abertura apresentava-se o Bossa Rio, produzido e empresariado por Sérgio, com músicos brasileiros e Pery Ribeiro e Gracinha Leporace nos vocais, cantando em português e em inglês. Depois, um comediante americano sem graça, que contava 15 minutos de piadas antes do show principal. O público vibrava com os hits de Sérgio, com o charme e as vozes de suas cantoras, entendia aquela linguagem musical que parecia ao mesmo tempo exótica e familiar, popular e sofisticada, jazzística e tropical. Ao final, uma standing ovation de 15 mil jovens texanos, fascinados com a alegria, a fluência e o ritmo do niteroiense Sérgio e seu pessoal, grandes músicos como o baterista Dom Um Romão, o baixista Tião Neto e o percussionista Rubens Bassini, alvo de inveja geral porque namorava Karen, a louraça. Na manhã seguinte, partimos para Amarillo, a duas horas de vôo mas ainda no Texas, a bordo do Viscount de 60 lugares fretado para a turnê triunfal. No avião, igual aos que faziam a ponte aérea Rio-São Paulo e apelidado por Sérgio de “Rodolfo”, viajavam o Brazil 66, o Bossa Rio, o comediante americano, o pessoal da produção o convidado. Uma festa nos ares. Com tanto sucesso e conforto, o bom humor era geral, mesmo de manhã. Sérgio divertia-se com os nomes esquisitos das cidades americanas — como Tampa, na Flórida, ou Mesa, na Califórnia — e inventava outros, pronunciados com sotaque radiofônico americano, como “Pentello, Texas”, ou “Cancro, Arizona”, às gargalhadas.



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