Muitas vezes era constrangedor ver alguém sendo esculhambado ao vivo e em preto-e-branco, mas o público gostava. Nunca fiz isso. Fazia minhas críticas com cuidado, quase pedindo desculpas ao réu. O público gostava. O programa em poucas semanas era um sucesso, a fórmula de Flávio tinha dado certo: juntando a ânsia nacional por debates e a música popular, um tema querido e cotidiano dos brasileiros, dava ao público a oportunidade de se identificar com algum dos jurados, através de seus pontos de vista, de sua personalidade, de seus valores, e sentir-se representado e ouvido. Havia para todos os gostos, com uma exceção: até no júri de “Um instante maestro” Chico Buarque era uma unanimidade. Depois de “A banda” e da sensacional primeira safra, Chico lançou uma seqüência impressionante de sucessos: o primeiro foi “Com açúcar, com afeto” (“fiz seu doce predileto/ pra você parar em casa...”), carro-chefe do disco de Nara e mais uma polêmica: a letra lírica cantada por uma mulher apaixonada e submissa de um malandro, pronta a recebê-lo de braços abertos, depois de suas noites de perigos e orgias, não casava com a imagem de Nara, mulher independente e moderna, politizada, revolucionária, sexualmente igualitária. Na vida real, Nara era o oposto da protagonista da canção, mas cantava com tanta graça e ironia que os belos versos e a melancólica melodia eram entendidos e amados pelo que eram: talento e sentimento.
A polêmica só ajudou e a música foi um hit instantâneo. Depois, “Quem te viu, quem te vê”, na melhor tradição do samba carioca, também dolente e melancólica, com um sambista de escola lamentando em versos impecáveis a perda da cabrocha que virou madame. Em seguida, “A noite dos mascarados”, um belo dueto de dois mascarados num baile de carnaval antigo, uma marcha-rancho com versos estupendos e nostálgica melodia, gravada por Chico e Elis Regina. Roberto e Erasmo detonam uma saraivada de hits jovens e agressivos como “Eu sou terrível” e “Não presto mas eu te amo”, mas Roberto assina sozinho, pela primeira vez, um grande sucesso. Os motivos logo ficam claros e contribuem para a polêmica e a promoção de “Namoradinha”, em que Roberto confessa que está amando loucamente a namoradinha de um amigo, que, diz a lenda, era o costureiro Denner, casado com a estonteante Maria Stella Splendore. “Negro gato”, de Getúlio Cortes, é outro dos grandes sucessos do disco de Roberto: “Eu sou um negro gato de arrepiar e esta minha vida é mesmo de amargar, só mesmo de um telhado aos outros desacato . eu sou um negro gato! Minha triste história vou lhes contar e depois de ouvi-la, sei que vão chorar há tempos eu não sei o que é um bom prato, eu sou um negro gato.”
Carlos Imperial está com a corda toda e não descansa. A gravação de Ronnie Von de sua “A praça”, uma contrafação vagabunda de “A banda” que ele marqueteava como “marcha-jovem”, promovida febrilmente pela sua máquina pessoal de divulgação, vai ao primeiro lugar das paradas de sucessos. Apesar de denunciada e debochada pela crítica, ou talvez por isso mesmo. Com Eduardo Araújo, Imperial acerta no paladar e diverte o Brasil com o sensacional rock and roll “Vem quente que eu estou fervendo”. “Pode tirar seu time de campo, o meu coração é do tamanho de um trem, iguais a você eu já apanhei mais de cem, pode vir quente que eu estou fervendo.” Parecia Ronaldo e Elis brigando. Era o contrário da delicadeza e melancolia de Chico. Segunda - “O fino”.
Terça — “Esta noite se improvisa”. Quarta — “Show em Si... monal”. Quinta — Hebe Camargo. Sexta — “Bossaudade”. Sábado — “Astros do disco”. Domingo — “Jovem guarda”. Além do “Show do dia 7”, que reunia o cast inteiro durante três horas uma vez por mês. A Record arrasava as concorrentes todas as noites no horário nobre. Mas os programas começaram a se parecer entre si: os convidados eram praticamente os mesmos em todos os shows, ficava cada vez mais difícil criar alguma coisa diferente e o público começou a se cansar dos musicais. A dupla Miele e Bôscoli conseguiu fazer umas poucas mudanças em “O fino 67”, mas não suficientes para reacender a velha chama. Elis se renovou e se modernizou, mas o programa não, a audiência caía lenta mas inexoravelmente. “Jovem guarda” fervia. Na esperança de uma guerra musical, a Record abriu as inscrições para o festival. Além do prêmio em dinheiro e do “Galo de Ouro” do festival do Rio, Dory e eu ganhamos da Esso uma passagem de ida-e-volta para Nova York e US$ 500 para despesas, que davam de sobra para uma semana num hotel barato na Rua 46, para comer e para comprar discos e livros e entradas para shows. Eu já tinha ido à Europa duas vezes, uma com meus pais, percorrendo compulsoriamente museus, ruínas e monumentos em exaustiva maratona cultural, e outra solto na “suingueing London”, na Copa do Mundo, em Paris e na Liverpool dos Beatles. Tirando a música, os Estados Unidos me interessavam muito menos do que a Europa, nos bares de Ipanema só se discutia cultura européia e se desprezava a americana, na ESDI o design e a comunicação visual americanos eram debochados como mero “styling”. Fora a música e alguma coisa de Hemingway, Scott Fitzgerald e Faulkner, dos beats e de alguns poucos atores e diretores como Marlon Brando e Elia Kazan, eu considerava tudo deles muito inferior aos europeus: cinema, pintura, moda, teatro, literatura, política e comportamento. E mulheres. Arrogante e ignorante, só fui porque ganhei a passagem.
Assim que cheguei, procurei um amigo de meu pai, Andre Spitzman Jordan, e ele gentilmente me convidou para assistir a um show no Rainbow Room, no 65º andar do Rockeffeller Center, um grande salão art déco redondo, todo envidraçado e com Manhattan iluminada embaixo e ao redor: uma das vistas mais lindas do mundo. O show era João Gilberto, cantando e tocando violão, com Airto Moreira tocando com vassourinhas num catálogo telefônico: parecia um sonho dentro de outro dentro de outro. João estava cada vez melhor e depois do show saímos juntos os três, conversando pela rua. Feliz e animado, ele de vez em quando ensaiava uns passos de sapateado pela Quinta Avenida quase deserta, com fumaça saindo pelos bueiros. Foi minha primeira noite em Nova York.
Com um bilhete de recomendação de minha colega Silvia Ferreira para seus amigos Neville de Almeida e Jorge Mautner, que moravam em Nova York, encontrei-os no bar Figaro, no Village. Gostei deles e de seus relatos entusiasmados sobre a cultura pop e revolucionária, me deslumbrei com a potência daquela juventude colorida e cabeluda, com o ar de liberdade política praticamente ilimitada que se respirava, com a riqueza e diversidade, com a vitalidade da metrópole: foi amor à primeira mordida. Neville estudava cinema e sobrevivia como garçom free-lancer, Mautner era tradutor na ONU e reforçava o orçamento como massagista de senhoras. No apartamento deles, na esquina de Bleecker Street com Sexta Avenida, fumei meu primeiro baseado. Duas tímidas e medrosas tragadas. E não senti nada. udo ali para mim era novo, forte, inesperado. Numa loja de livros, revistas e bugigangas, cheirando a incenso de patchouli, vi as paredes cobertas de pôsteres, enormes fotos em preto-e-branco de músicos, estrelas de cinema e heróis culturais nacionais e internacionais, novidade absoluta. Eram lindos, todos, eu nunca tinha visto’nada parecido. Meu deslumbramento só foi quebrado quando ouvi um garotão cabeludo, cheio de livros debaixo do braço, chamar o vendedor e apontar para a parede, com a maior nonchalance: — Please give me a Charlie Marx and a Freddie Engels. “Charlie”?!? “Freddie”?!?
Era um mundo novo de liberdade e irreverência que se abria diante dos meus olhos. No Brasil, falar em Karl Marx e em Friedrich Engels, mesmo com o maior respeito, o que era pior ainda, podia dar cadeia. Mesmo assim, inebriado pelos vapores da liberdade, comprei Num almoço com Chico num restaurante na Praça Quinze, no Centro da cidade, depois de cobrir para o JB a gravação de seu precoce depoimento histórico para o Museu da Imagem e do Som, ele me falou da música que tinha inscrito no festival da Record. Chico tinha 23 anos
e parecia assustado com a “Chicomania”: unanimidade nacional, ele vivia sob intensas e cada vez maiores pressões e expectativas, de mais e melhores músicas, de atitudes e declarações mais fortes. Para alguém discreto e reservado como ele, era terrível ter sua intimidade devassada e todos os seus menores passos fotografados e descritos todos os dias
nos jornais. Era um desconforto se apresentar na televisão, um tormento fazer shows ao vivo, nervoso, bebendo, com medo de esquecer as letras, desafinar, errar no violão. Ele não dizia, mas se incomodava com a sensação de que cada um queria um pedaço dele, a televisão, as gravadoras, a imprensa, amigos e inimigos. Mas Chico parecia esperançoso quando me cantou baixinho “Roda-viva”, que falava em versos perfeitos e sofridos sobre tudo que ele, superstar relutante, estava vivendo. Era fortíssima concorrente: “Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu, a gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu.” Dory e eu inscrevemos “O cantador”, a primeira letra boa de verdade que escrevi na vida. A melodia de Dory era linda, uma toada moderna e sofisticada, e melhor ainda, tinha um poderoso refrão, como era indispensável para ir ao jogo dos festivais. E melhor do que tudo, Elis aceitou nosso convite: iria cantar a nossa música.
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