O merchandising da jovem guarda ia de vento em popa, com a juventude paulista comprando calças “Calhambeque”, chapéus “Tremendão” e coletes “Ternurinha”. Mas Simonal não tinha nenhum produto com seu nome. Mas tinha tudo para ter, pensava Horácio Berlinck, ativo participante do lançamento da jovem guarda e produtor de diversos shows universitários. Mas não seriam roupas nem brinquedos: Simonal, como o slogan da Shell, tinha “algo mais”. De reuniões com Horácio e João Evangelista Leão surgiu uma nova e audaciosa pilantragem: um Amuleto.
Um boneco de pano preto de um palmo de altura, redondo, com braços e pernas moles e sem pescoço, um monstrengo que parecia uma mistura de Pelé com o marechal Castello Branco, que foi chamado de “Mug” e apresentado por Simonal no programa como o seu amuleto da sorte. Todos os convidados ganharam seus “Mugs”, alguns foram distribuídos no auditório, outros artistas receberam em casa. E logo Chico Buarque, Jair Rodrigues, Jorge Ben, Imperial e vários outros começaram a aparecer nos programas da Record com o “Mug” e a fazer piadas e brincadeiras com ele, a imprensa começou a falar, as crianças gostaram, o público se apaixonou. O boneco estourou nas lojas e naquele Natal em São Paulo todo mundo ganhou o seu. O “Mug” realmente deu muita sorte para Simonal, que mostrou o poder de fogo de sua pilantragem.
Muito mais do que um boneco, ele vendeu sorte, como estava vendendo gasolina, como vendia alegria. Fustigado pela “Jovem guarda” e pelo “Show em Si... monal”, pelo sucesso estrondoso do “Esta noite se improvisa”, “O fino” perde audiência: Elis pede à produção que
tire Jair, mas não é atendida. No Rio, uma provocação: a jovem cantora Cláudia, vinda de São Paulo como grande revelação, com um timbre de voz parecido e diziam — uma potência vocal semelhante à de Elis, é a estrela do novo show de Ronaldo Bôscoli, “Quem tem medo de Elis Regina?”. Ajudado pela polêmica, o show foi um sucesso e encheu o Rui Bar Bossa durante três semanas. Elis ficou furiosa, mas não tinha nada a temer: ela sabia que Cláudia era dona de uma voz poderosa, mas que não tinha o seu carisma e musicalidade. Mas não sabia que estava mordendo a isca de Ronaldo Bôscoli.
Na sua cobertura de Ipanema, tomando sol e cerveja e cercado de brotos, o “Véio”, que em nenhum momento acreditou no título do seu show, gargalhava triunfante com as reações furibundas de Elis. Ele tinha 38 anos e ela 22. Por via das dúvidas, Elis baniu Cláudia de “O fino”, onde tinha se apresentado algumas vezes com algum sucesso. E pediu à direção da Record para tirar Manoel Carlos e contratar a dupla Miele e Bôscoli — com quem não falava há dois anos, desde uma briga no Beco das Garrafas — para dirigir o programa. Enquanto Ronaldo assinava contrato com a Record, Elis se sentia ameaçada não por Cláudia, mas pela jovem guarda. Em São Paulo, junto com Gilberto Gil, Edu Lobo, Geraldo Vandré e outros nacionalistas acústicos, ela formou uma “Frente Única da Música Popular Brasileira”. E comandou uma passeata que saiu às ruas com faixas, cartazes e palavras de ordem contra a guitarra elétrica, contra a dominação estrangeira, contra a “música jovem” alienante. Contra a jovem guarda vitoriosa.
A passeata saiu do Largo de São Francisco e, entre vaias e aplausos, foi até o Teatro Paramount, onde Chico, da janela, assistiu a sua chegada. Da janela do apartamento do empresário Guilherme Araújo, Nara Leão e Caetano Veloso assistiram à passagem da passeata e se divertiram muito: achavam tudo aquilo uma grande bobagem. Sábado de manhã, cobertura do “Véio” em Ipanema. Ele e Miele tinham passado duas semanas em São Paulo para começar a reformular “O fino”. Enquanto tomava uma cerveja no terraço com um casal amigo, quase não acreditei no que vi: Elis, descalça e de camiseta, atravessando a sala e indo para a cozinha. Mal-humoradíssima. Olhei para o “Véio” pasmo. Ele riu do meu espanto, triunfante. Se alegrou quando a campainha tocou e outros amigos teriam a mesma espantosa surpresa: o “Véio” estava orgulhoso de sua mais difícil e trabalhosa conquista, a inconquistável arquiinimiga, a melhor de todas. Ronaldo dizia que não, mas talvez não soubesse que estava apaixonado por Elis.
O “Véio” estava feliz, mas cada vez mais rabugento e intolerante com tudo que não fosse bossa nova, Frank Sinatra, o Fluminense e Ipanema. E cada vez mais engraçado, com seus exageros, sua rapidez e seu talento para o mal falar. Era implacável com a esquerda musical, a antibossa nova, reagia à ameaça dos novos compositores que estavam fazendo uma música oposta à dele. Detestava a valorização de sambistas de morro e artistas nordestinos. E tinha o mais profundo desprezo pela jovem guarda. Beatles, nem pensar. Os musicais políticos do Teatro de Arena e os filmes do Cinema Novo mereciam dele saraivadas de piadas. Outro de seus alvos favoritos era Elis Regina, cafona, mal vestida, mal-educada, grossa, cafajeste, mau-caráter, a melhor cantora do Brasil. Em suas mãos experientes, ele imaginava, a baixinha seria a maior. Nos dias seguintes, Elis mudou da água para o uísque. Cortou os cabelos bem curtinhos por sugestão de Ronaldo, iguais aos de Mia Farrow, então casada com Sinatra. Ficou uma graça: mais jovem, mais moderna, mais bonita. Fez uma plástica para diminuir os seios, comprou roupas novas, mais leves, mais discreta, mais elegantes, acariocou seu guarda-roupa. Continuou desbocada, aceitando todas as provocações de Ronaldo e respondendo com uma torrente de palavrões enquanto ele ria e ela saía batendo porta. Na entrega dos prêmios “Roquette Pinto” na Record, Elis era outra, de minivestido de Denner e meias prateadas “espaciais”. Estava cantando cada vez melhor.
Na cobertura de Ipanema, onde passou a morar, Elis tratava os amigos de Ronaldo com distância e desconfiança. Com ele, alternava momentos de ternura explícita com ataques furiosos, pelos menores motivos e diante de quem quer que fosse, fazendo uma versão brasileira, mais apimentada, de “Quem tem medo de Virginia Woolf”, a peça de Albee. Ronaldo estava feliz e parecia se divertir com as brigas, tratava Elis como se fosse uma menina, como uma potranca puro-sangue que precisava ser domada. Aos poucos ela foi se acostumando com a sua nova turma, ficando mais segura e simpática, chegou até a ir ao Maracanã com a gente, no meio da torcida “Jovem Flu”, e dizia para a imprensa que era tricolor desde criancinha, quando torcia para o Grêmio de Porto Alegre. Com seu poder e influência sobre Elis, Ronaldo pensava que poderia restabelecer um pouco de ordem e hierarquia na música brasileira em seu maior palco — “O fino”. Que poderia enfrentar os populistas, demagogos, esquerdistas e jovem-guardistas e talvez fazer renascer a bossa nova.
Até o carnaval foram mais três programas “Um instante maestro” e os cachezinhos representaram considerável reforço para o meu caixa momesco. As discussões sobre músicas de carnaval foram animadas, não só se falava mal das novas, como se celebravam as velhas, que eu conhecia e amava desde criança. O auditório participava ativamente vaiando e aplaudindo as opiniões dos jurados, e Flávio Cavalcanti percebeu logo que tinha encontrado um novo formato de programa.
Depois convidou todos para jantar, pediu atenção, baixou a voz e com seu habitual estilo conspiratório e bombástico nos disse que depois do carnaval iria estrear na TV Tupi. E que levaria com ele o seu júri musical, que comentaria e debateria não apenas músicas de carnaval, mas toda a música popular brasileira. E ganhando um cachê de verdade. Depois do carnaval, virei crítico musical na televisão. De smoking, gravava uma vez por semana “Um instante maestro” no auditório do Cassino da Urca e debatia acaloradamente com os jurados
— que ou eram ultraconservadores e agressivos ou simpáticos que não entendiam nada de música. Desde o início, defendi sincera e apaixonadamente aquilo em que acreditava, novidade e qualidade, sofisticação e rebeldia, e muitas vezes me chocava contra a intolerância e falta de humor da mesa, mas freqüentemente o auditório me apoiava nessas posições mais liberais. Todos aqueles dias e noites ouvindo discos, lendo, estudando e discutindo música não tinham sido em vão: a ESDI começava a perder um aluno. Na televisão, me tornei o porta-voz da nova música, que era abominada pelos outros jurados. Defendia a esquerda musical e Roberto Carlos, me divertia com o samba-jovem e a pilantragem, que eles detestavam, defendia e promovia meus amigos. Flávio provocava, incentivava as discussões, levava cantores para apresentar músicas polêmicas, que eram julgadas de corpo presente.
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