Um mês depois fui cobrir uma coletiva do produtor de rádio e televisão Flávio Cavalcanti em que ele denunciaria a baixeza e obscenidade das músicas de carnaval e iniciaria uma campanha moralizadora para acabar com elas. Flávio se caracterizava por um moralismo dramático e sensacionalista, que interpretava com grande sentido de espetáculo. Lá estava eu, papel e caneta na mão, me divertindo com algumas hilariantes “obscenidades e baixezas” que Flávio denunciava, tirando e colocando os óculos quando lia as letras, fazendo expressões exageradas de pasmo e de indignação. “Isto tem que acabar, em nome da família e da autêntica música popular brasileira”, clamava Flávio, passando para o mundo do espetáculo o estilo de seu ídolo político Carlos Lacerda.
A maioria das letras era de bobagens e baixarias, algumas poucas eram realmente grossas, mas entre essas algumas eram irresistivelmente engraçadas, como “Toco cru pegando fogo”, proibida pela Censura Estadual a pedido de Flávio. Afinal, o que se pode esperar das músicas de carnaval, que são a trilha sonora para a libertinagem e os excessos que caracterizam a folia?, pensei mas não disse. Depois da coletiva, conversando com Flávio, contei-lhe que tinha ganho o festival com “Saveiros” e era repórter do JB, falamos um pouco sobre música e ele me convidou para fazer parte de um grupo de jornalistas que formariam um júri musical em seu programa da TV Excelsior, “Um instante maestro”, para julgar as músicas de carnaval que ele apresentaria.
“Pode dizer o que você quiser”, assegurou. E completou, com voz mais baixa: “E tem até um cachezinho.” Na noite seguinte, de smoking, no auditório da TV Excelsior em Ipanema, participei pela primeira vez de “Um instante maestro” junto com os jornalistas Mister Eco, veterano colunista da noite, Hugo Dupin, diagramador e colunista do Diário de Notícias, Carlos Renato, um quarentão simpático especialista em consultórios sentimentais que se esforçava em imitar Nelson Rodrigues, totalmente alheio ao mundo da música, o sisudo crítico musical José Fernandes, ultraconservador, comicamente inflexível, e Sérgio Bittencourt, um jovem cronista e compositor, filho do legendário Jacob do Bandolim. Com 22 anos eu era o mais jovem e menos experiente da mesa, tanto em jornalismo como em televisão. E falei o que me veio à cabeça, de acordo com meu temperamento: a maioria era bobagem, algumas eram baixarias e algumas poucas realmente eram de muito mau gosto e não eram para famílias.
Como o carnaval, pensei, mas não disse. Depois do programa recebi o cachezinho e exultei: era o salário de uma semana de trabalho no jornal. Flávio gostou tanto que convidou todo mundo para o programa da semana seguinte. Sempre gostei de músicas de carnaval, dessa mistura de ritmo com humor que aprendi a amar nas chanchadas da Atlântida. Mas ouvindo as novas músicas carnavalescas ficava claro que as antigas eram melhores. Antigamente, os melhores, Ary Barroso, Lamartine Babo, Assis Valente, é que faziam as músicas de carnaval. Já os que vieram depois da bossa nova não achavam carnaval coisa séria, musicalmente, e os políticos e engajados então, nem pensar. A música de carnaval era considerada um gênero menor, primário, comercial. Com a cabeça cheia de velhas marchinhas e sambas alegres, maliciosos e espontâneos, comecei a imaginar como seria bom se todos aqueles mestres como Tom e Vinícius e aqueles jovens tão talentosos, como Chico, Edu, Caetano, Gil, pudessem usar seu talento para criar novas músicas de carnaval, alegres, maliciosas, espontâneas, e dessem essa alegria ao povo.
E a nós mesmos. Com essa idéia na cabeça e lápis e papel na mão fui ouvir vários diretores de gravadoras para uma matéria no JB sobre a decadência das músicas de carnaval. Conversei bastante com João Araújo, diretor da Philips, que eu já conhecia de shows e festas, e ele ficou entusiasmado com a possibilidade de os novos compositores renovarem o carnaval — e decidiu convocá-los para fazer um disco na Philips. Falou com Vinícius, que adorou a idéia. Todos os chamados gostaram da ideia.
Dias depois, na cobertura de Vinícius, no Jardim Botânico, nos reunimos para o lançamento do projeto para a imprensa. Meio como epórter do JB e meio como compositor da nova geração, me encontrei com Edu, Chico, Caetano, Capinam, Torquato Neto, Paulinho da Viola, Luiz Bonfá, Maria Helena Toledo, Tuca, Dory Caymmi, Francis Hime, Eumir Deodato, João Araújo e naturalmente Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Para evitar qualquer mal-entendido ou animosidade em relação às velhas gerações, Vinícius fez questão de chamar João de Barro, o Braguinha, veteraníssimo grande mestre e autor de grandes clássicos carnavalescos. E também Linda Batista, a cantora, uma das melhores de todos os carnavais. E por via das dúvidas, uma simpática senhora, que diziam ligada à música, chamada Jandira, filha do governador Negrão de Lima. Todos juntos, no terraço de Vinícius, foi feita a foto histórica por Paulinho Sheuensthul para grande matéria na revista Manchete. A matéria e as fotos saíram gloriosas. Mas ninguém fez música alguma. Só o Braguinha fez o dever de casa.
Líder absoluta com seus musicais para todos os gostos, a Record lança mais um programa de sucesso, uma mistura de jogo de salão com música, com nome tirado de peça de Pirandello: “Esta noite se improvisa”. Cinco cantores se sentavam diante do auditório lotado e quando o
apresentador Blota Júnior anunciava “a palavra é...”, corriam para apertar o botão que daria direito a cantar uma música que tivesse aquela palavra na letra. Quem apertasse primeiro o botão, respondia: se acertasse ganhava e se errasse perdia pontos e outro podia responder e
ganhar. O vencedor ganhava um carro Gordini. O público delirava. Acompanhados pelo conjunto de Caçulinha, que com sua grande experiência em bailes e programas de calouros parecia conhecer todas as músicas, as grandes estrelas de todos os musicais da Record passaram a participar do programa. Assim que o cantor começava, Caçulinha e seu pessoal saíam atrás, mais em perseguição do que em acompanhamento, e o público se divertia com seus ídolos brincando de cantar. Mas as grandes estrelas do “Esta noite se improvisa” não eram necessariamente as melhores vozes, nem os artistas mais populares: eram os de melhor memória musical. Como Chico Buarque, que demonstrava conhecimento enciclopédico de letras brasileiras e uma vez inventou na hora uma música e uma letra com a palavra pedida, inventando também uma dupla de autores e provocando protestos dos concorrentes: nem Caçulinha nem ninguém da produção conheciam a música e os pontos foram impugnados. Mas Chico estava apenas levando ao pé da letra o nome do programa e exibindo seu humor e seu talento de improvisador.
O grande rival de Chico era Caetano Veloso, que apenas começava ficar conhecido como compositor e uma noite, improvisadamente, substituiu sua irmã Maria Bethânia, que estava escalada mas não quis participar porque ficava nervosa e na hora não se lembrava de música
nenhuma. Mas Caetano parecia que lembrava de todas, velhos sambas e boleros, marchas de carnaval, valsas, choros e bossas. No palco do “Esta noite se improvisa”, Chico e Caetano iniciaram uma amistosa rivalidade e protagonizaram memoráveis batalhas de memória musical, muitas vezes com lances eletrizantes, como quando a palavra pedida aparecia somente nas últimas frases da música e o auditório acompanhava ansioso em suspense e explodia em aplausos no final. Mas os dois tiveram que enfrentar um surpreendente concorrente, que também sabia muitas músicas, era brigão e cafajeste, provocava tumultos e contestações, sacaneava os adversários, tentava todos os truques, respondia com beijos às vaias do auditório e se tornou uma antiestrela do programa: o gordo Carlos Imperial, sempre de chinelos e com os pés sujos, fazia o papel de vilão com grande competência e ótima memória e várias vezes foi de carro novo para casa. “Prefiro ser vaiado numa Mercedes do que ser aplaudido num ônibus”, era sua máxima, plagiada de uma frase de Françoise Sagan. Todo mundo riu com a resposta do cronista Rubem Braga a um amigo que voltava depois de três anos no exterior e perguntou excitado o que havia de novo no Brasil. “Cigarro Hollywood com filtro”, rosnou o mestre rabugento. Mas quando Tom Jobim voltou depois de uma longa temporada americana e os jornalistas lhe fizeram a mesma pergunta, respondeu com entusiasmo: “Chico Buarque de Hollanda.” Com a “Bandamania”, Nara e Chico percorreram o Brasil em sequências exaustivas de shows, alguns em cima de caminhões, em praças de cidades do interior. Em todos os lugares eram recebidos por bandas, que, com o sucesso da música, saíram do esquecimento e voltaram aos coretos e às ruas. Fazer o show não era nada: duro era ouvir a bandinha da cidade.
A Record bem que tentou faturar a nova paixão nacional, à sua maneira: Chico e Nara tiveram imediatamente seu próprio programa semanal, onde apresentavam convidados do cast da emissora, menos os da jovem guarda. Mas durou pouco: a timidez dos dois, a pouca vontade e muito sofrimento para interpretar aquele papel fizeram o diretor Manoel Carlos concluir — e Nara e Chico concordaram, aliviados — que eles eram perfeitos “desanimadores de auditório”, encerrando a breve carreira de “Pra ver a banda passar”. Antes do festival, Chico já tinha se mudado para o Rio, morava num pequeno apartamento na Rua Prado Júnior, no coração de Copacabana, zona de bares e putas, de boates e inferninhos, tradicional ponto de fim de noite carioca, do sanduíche de churrasquinho do Cervantes e do caldo verde da Lindaura no Beco da Fome. Numa produção do amigo Hugo Carvana, fez uma curta e festiva temporada na boate Arpege, no Leme, ao lado da atriz e cantora Odete Lara e do MPB 4.
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