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segunda-feira, 14 de março de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*





Com o sucesso estrondoso de “Meu bem”, versão de “My Girl”, dos Beatles, Ronnie Von se tornou uma nova estrela dentro da “Jovem guarda” e dos outros programas do circuito de musicais da emissora. Tinha longos cabelos lisos em corte pajem, olhos verdes e belos dentes: era um rapaz bonito e suave, que também cantava. A Record imaginou que Ronnie poderia transformar-se numa alternativa a Roberto Carlos, promoveu sua imagem de “Pequeno príncipe” e ele passou a ter o seu próprio programa nas tardes de sábado, onde se apresentavam todos que faziam todos os outros programas. E mais alguns, bem iniciantes, que participavam só do seu.

Como os Baobás, trio formado pelos irmãos Sérgio e Arnaldo Baptista e sua namorada, a lourinha Rita Lee. Era tal o sucesso da “Jovem guarda”, assistida no resto do Brasil com atraso, em videoteipe, que uma versão carioca ao vivo passou a ser feita todas as semanas na TV Rio, dirigida por Carlos Manga. Mas nunca chegou a ter o sucesso da versão paulista, muito pelo contrário. Numa dessas idas ao Rio, Erasmo deu um mau passo. Depois do programa, como sempre, fazia-se uma “colheita de brotos”, como dizia Imperial, e iam todos, Erasmo, Eduardo Araújo, Luiz Carlos Ismail e outros, para o apartamento de Imperial, em frente à TV Rio, para o que o gordo chamava dubiamente de “comes e bebes”.

Naquela noite não só os brotos eram menores de idade, mas tinham vindo de São Paulo e foram encontradas de madrugada pela polícia cheirando a bebida e vagando como zumbis pela Praia de Copacabana. Erasmo, que tinha saído no início da festinha, escapou do processo. Mas os outros dançaram. Depoimentos, investigações, escândalo: voz de prisão, sujeira geral. Rádios e jornais associando a jovem guarda à corrupção de menores. Roberto Carlos e a TV Record e a Magaldi & Maia, preocupadíssimos, lançam uma blitz de relações públicas. Eduardo Araújo e Imperial, com prisão decretada no Rio, fogem para São Paulo e de lá para o interior de Minas, onde ficam três meses escondidos numa fazenda de parentes de Eduardo. Juntos, compõem futuros hits como “O bom”: “Meu carro é vermelho, só uso o espelho pra me pentear, botinha sem meia, só na areia eu sei trabalhar, cabelo na testa, sou o dono da festa, pertenço aos dez mais ha ha ha ha se você quiser experimentar sei que vai gostar.”

E o coro ficava repetindo o refrão: “Ele é o bom, é o bom, é o bom, ele é o bom, é o bom, é o bom demais.” Erasmo não foi preso mas proibido pelo juiz de Menores de se apresentar em shows e programas de rádio e televisão no Rio de Janeiro por um ano. E pior: foi proibida também a presença de menores em programas de rádio e TV de “música jovem”. Banido do Rio, Erasmo ficou em São Paulo, fazendo a “Jovem guarda” e outros shows da Record. Mas não pôde mais fazer shows ao vivo: nas primeiras tentativas em cidades do interior do estado, onde as notícias se espalharam rapidamente, seu carro foi apedrejado e o show suspenso. O cerco estava se fechando. Depois de um programa “Jovem guarda”, Erasmo foi levado apressadamente por uma saída de fundos do teatro e colocado em um carro. Assustado, ele ficou sabendo pelo chefe da segurança da Record que a polícia do Rio tinha enviado uma ordem de captura para a polícia de São Paulo. O chefe da segurança sabia da ordem de prisão porque era também delegado da polícia paulista, com muitos contatos e informações, freqüentador do Cave e conhecido de todos os artistas: o delegado Sérgio Paranhos Fleury levou Erasmo para casa e aconselhou-o a sumir por uns dias.

Antes que sumissem com ele. A briga entre a “música brasileira” e a “música jovem”, isto é, entre “Jovem guarda” o “Fino da bossa”, se transformou em uma verdadeira guerra musical.
Discutida apaixonadamente nas esquinas e nos botecos, nas farmácias e nos velórios, a música brasileira, jovem ou não, era o assunto do momento no início de 1966, quando a Record anunciou que faria o seu Festival da Música Brasileira, com grandes prêmios em dinheiro e o “Berimbau de ouro” ao primeiro colocado. Ao mesmo tempo, a TV Rio de Walter Clark anunciou o seu I Festival Internacional da Canção, com prêmios em dinheiro maiores que os da Record e o troféu “Galo de ouro”, desenhado por Ziraldo. Todo mundo inscreveu suas melhores músicas, inclusive Dory e eu, com a nossa ainda inédita “Saveiros”, que havia sido rejeitada no festival da TV Excelsior. No meio do ano, graças à generosidade de meu pai e de meu tio Max, fui para Londres assistir à Copa do Mundo. Antes passei uma semana em Paris, onde vivi um breve e intenso romance com uma mulher brasileira bem mais velha do que eu, amiga de Ronaldo Bôscoli, que foi para mim uma fonte de alegria e de revelações e me fez chegar a Londres me sentindo um adulto. Em Londres, me maravilhei com a força e criatividade da juventude nas ruas, com suas roupas coloridas, invejei sua liberdade e sua democracia, seu acesso à arte e à cultura, sua música alegre e vibrante.

Tremendo de emoção entrei no trem que nos levaria a Liverpool, onde eu andaria pelas ruas por onde andaram os Beatles e assistiria o Brasil de Garrincha decadente e Pelé machucado ser massacrado em campo pela Hungria e por Portugal. Durante a Copa, fiquei muito amigo de um americano quarentão, baixinho e barrigudinho, ultrafã do futebol brasileiro e amigo de meu tio Max, que foi a todos os jogos no nosso grupo: Nesuhi Ertegun, fundador da Atlantic Records e lenda viva do disco americano. Nesuhi era um homem finíssimo, não era americano, mas filho do embaixador da Turquia em Washington, educado na Sorbonne, um dos grandes críticos de jazz dos Estados Unidos e depois produtor de Miles Davis, John Coltrane, Tom Jobim e outras estrelas do jazz. Nesuhi adorava música brasileira, feijão-preto e maconha, mas do que mais gostava era nosso futebol. Foi quem mais sofreu com a derrocada de Liverpool.

Voltei de Londres derrotado mas feliz. E me perguntava por que no Brasil a música não podia ser “brasileira” e “jovem” ao mesmo tempo? Embora a minha primeira vez com os Beatles tenha sido uma decepção. Quando chegaram as imagens deles ao Brasil, em 1963, de cara não simpatizei muito com aquelas franjinhas e aqueles terninhos, achei meio ridículo. Mas estava louco para ouvir a música deles, estávamos todos: o disco era mais que um sucesso, era uma comoção mundial, uma nova onda musical. No meu apartamento da Rua Paissandu, ouvimos pela primeira vez “She Loves You”. Quando a música terminou, silêncio total. Mas era só aquilo? Uma musiquinha boba, com uma letrinha bobíssima, um ritmo quadrado: o que havia de tanta novidade naquilo? Shakespearianamente concluí que era “much ado about nothing”, muito barulho por nada.
 
Quando saiu o primeiro Lp, com “Love Me Do”, dei uma ouvida desinteressada mas continuei achando a música pobre e as letras bobas. Ninguém que eu conhecia gostava dos Beatles, só as garotinhas da praia e Carlos Imperial e suas platéias suburbanas. Mas quando fui, com Edu Lobo, ver o filme Os reis do iê-iê-iê (A Hard Day’s Night), saímos do cinema completamente seduzidos por suas personalidades e humor, pela atitude rebelde e irreverente, pelo ritmo vertiginoso e as imagens sofisticadas de Richard Lester. Depois do filme, até as músicas deles pareciam melhores. E talvez  “Cant Buy Me Love”, “A Hard Day’s Night” e especialmente “And I Love Her” fossem mesmo muito melhores. Em 1965 vi Help em Londres, num imenso cinema em Picadilly Circus, e saí em êxtase, absolutamente conquistado. Foi um dos pontos altos da viagem. Três meses depois, o filme entrou em cartaz no Rio e assisti pelo menos mais umas dez vezes, vários dias seguidos. Adorava os diálogos, as gags, as músicas, os vilões, as roupas, as cores psicodélicas, tudo ali era alegre e divertido, tudo parecia novo e jovem. Na ESDI costumávamos até brincar entre nós, perguntando com afetada casualidade: “Você já viu Help hoje?” 

Numa das incontáveis festas no apartamento de Olivia Leuenroth, no Morro da Viúva, o irmão de Bethânia apareceu, tocou e cantou e ouvimos pela primeira vez sua nova música “Quem me dera”, que deixou todo mundo maravilhado e teve que ser repetida muitas vezes,
até que todos aprendessem a melodia, a letra e os acordes do violão. “De madrugada, Quando o sol cai dendágua Vou mandar te buscar.

Ai quem me dera Voltar quem me dera um dia Meu Deus não tenho alegria Bahia no coração...”Ele estava louco para voltar para Salvador, não estava gostando nada daquela vida no Rio como acompanhante da irmã. Caetano foi paparicadíssimo por todo mundo e eu me encantei com ele, que também adorava João Gilberto. Conversamos um pouco sobre cinema, Fellini, nouvelle vague, Cinema Novo, Godard, Bunuel, e me surpreendi secretamente que aquele rapaz daquela distantíssima Salvador e de uma inconcebível Santo Amaro da Purificação tivesse visto os mesmos filmes que eu via no Paissandu e na Cinemateca do MAM e na Europa e falasse deles com tanta intimidade e desenvoltura. E me dei conta de que, há pouco tempo, quando eu conversava animadamente sobre cinema e música com um jovem recém-amigo inglês num pub de Londres, ele deve ter pensado a mesma coisa.



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