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sábado, 5 de março de 2016

LUIZ AYRÃO: BREGAS E CENSURA (ROBERTO E MILICOS)

Por Abílio Neto




A maior injustiça que se comete contra os chamados artistas bregas do Brasil é imaginar que eles não tinham inteligência nem “charme” para protestarem contra o regime militar porque faziam uma espécie de música de segunda classe. Por isso mesmo, os jovens universitários deles desdenhavam por entenderem que eles não tinham a cabeça de um Chico Buarque, um Gil, um Geraldo Vandré. Era, sem dúvida alguma, um tipo de preconceito contra quem fazia música para o povão. Achavam que eles não tinham preocupações sociais ou políticas. Muitos deles não tinham, como o próprio Erasmo Carlos confessou que era um alienado, mas outros não.

Como exemplo desse preconceito ainda hoje existente contra os não queridinhos dos universitários, jornalistas, profissionais liberais e componentes da elite pensante do país, no período 1964/1985, citarei aqui o caso do injustiçado Luiz Ayrão, cantor, compositor e músico nascido no Rio de Janeiro em 19/01/1942. Na música, ele é também maestro por formação e no campo dos estudos tem graduação como bacharel em direito. Atuou vários anos como advogado de banco. No campo musical, teve várias músicas que se transformaram em sucesso popular na voz de Roberto Carlos e outros artistas, porém nele ficou impregnada para sempre a áurea de brega. E olhem que ele além de compor músicas românticas também é um ótimo sambista.

Em 1977, Ayrão mandou uma música para aprovação da Censura que tinha o título “Treze Anos”. Era uma manifestação clara e inequívoca contra os 13 anos da ditadura fardada que se comemorava justamente naquele 1977. A música foi censurada. E o que ele fez? Deixou passar uns três meses e quando a emenda do divórcio do senador Nelson Carneiro passou a ser debatida no Congresso Nacional (foi aprovada em junho de 1977), ele a reenviou à Censura com novo nome: “O Divórcio”. Foi liberada sem que uma vírgula sequer da letra original tivesse sido modificada. Prontamente, foi incluída no seu LP de 1977 que só faltava a prensagem, uma vez que a matriz do disco já estava finalizada. Um dia, quando os discos já estavam nas lojas do ramo e com boa vendagem, um general invadiu o recinto do Departamento de Censura da Polícia Federal esbravejando. Ele chamou todos os censores de calhordas mostrando para eles que a música “O Divórcio” era, sem tirar nem pôr, aquela antes censurada meses atrás quando ali chegou com o título “Treze Anos”.

Com o disco na praça e, como afirmei, vendendo bem, a gravadora mandou um advogado para Brasília para negociar com a Censura e impedir que o disco fosse retirado das lojas. O homem haveria de convencer a Censura que a música se destinava a uma mulher e não para a “Revolução de 1964”. E não é que o habilidoso homem das leis conseguiu essa proeza!?

Somente assim é possível nos dias de hoje provar por A + B que aqueles artistas discriminados pela classe média intelectualizada também tinham tutano. Que muitos deles não aceitavam aquele estado de coisas e, à sua maneira, também protestavam. Quem se lembra, por exemplo, que após o lançamento do compacto simples do final de 1970, de Chico Buarque, que trazia o samba “Apesar de Você” ter atingido uma marca superior a 100 mil vendas, é que o monstro sem cabeça da Censura veio descobrir que a música tinha como destinatário o general Médici? Foi preciso um jornalista bater com a língua nos dentes. Quem recorda que Benito di Paula foi o segundo artista a gravar essa música, em fevereiro de 1971, numa performance digna dos maiores aplausos e teve o azar de ter seu LP retirado das lojas? Tornou-se um disco tão raro que somente alguns colecionadores o possuem. Por que vocês acham que Benito resolveu gravar este samba? Porque nunca foi um artista alienado. É o mesmo Benito que alguns anos depois, em plena ditadura, dedicou uma música a Geraldo Vandré, porém sem fazer nenhum alarde, não despertando a atenção da Censura.

O escritor e jornalista que, primeiramente, chamou a atenção para esses artistas escanteados foi, sem dúvidas, o pesquisador Paulo César de Araújo na sua obra memorável “Eu Não Sou Cachorro, Não”. É o mesmo que teve o livro “Roberto Carlos em Detalhes” recolhido das lojas após uma ação na Justiça promovida pelo citado cantor. Os artistas do gênero brega e do chamado “sambão joia” devem muito a esse rapaz. O mérito de eles hoje serem reconhecidos como pessoas inteligentes, sensíveis e não alienadas política e socialmente, é todo dele. Aos bregas não era reconhecido o direito de terem memória musical. Era como se a música que eles faziam não merecesse um lugar na História. É verdade que eu discordo de algumas teses do Paulo César, mas o seu livro é essencial aos estudiosos da música em geral no Brasil. É rico de histórias da vida de artistas considerados marginais pela elite da música e do núcleo do pensamento no país.

Ri muito de uma entrevista em que ele, Paulo César, confessou que certa vez viu Agnaldo Timóteo (intérprete e autor de “A Galeria do Amor”) numa fila de autógrafos e estremeceu as bases. É que tinha incluído o talentoso e polêmico artista num capítulo que trata dos “pederastas, maconheiros e prostitutas” e ele conhecia a fama de Agnaldo que se autorreconhece como brigão e másculo. No mínimo PC imaginou: vou apanhar aqui e agora. Ao contrário do que ele pensava, recebeu efusivos abraços do ex-motorista de Ângela Maria que havia comprado três exemplares. Um dos livros ele pediu que tivesse uma dedicatória especial para o empresário Sílvio Santos.

Quem é que vive da fama e aplausos que não gostaria de se ver “retratado” em um livro? Por enquanto, acho que somente o grupo dos sete (agora são nove com a adesão de Marisa Monte e Lenine)!

E para provar que o Brasil real é um país muito preconceituoso, Paulo César é tido no meio de alguns supostos intelectuais como biógrafo de segunda e escritor de terceira classe. A falta de respeito que existia contra os artistas que ele tão bem relatou em seu livro foi estendida do mesmo modo à sua pessoa de homem simples, batalhador pela vida, que foi engraxate e montador de óculos. Enfim, um nordestino de Vitória da Conquista/BA. É diferente você contar em um livro a história da música da elite de Ipanema (Bossa Nova) para um escritor que resolve mergulhar fundo no universo dos bregas, cujas músicas eram destinadas às classes C e D. Mesmo assim, para minha surpresa, o grande jornalista Ruy Castro está a favor de Paulo César nessa questão das biografias não autorizadas e ciente do seu importante papel de historiador.

Finalizando, que lancemos um olhar mais benevolente sobre a criação desses cantores/compositores (alguns são verdadeiros ídolos do povo!) tidos e havidos como representantes do brega. Eles, queiram ou não queiram nossos intelectuais, compõem o enredo musical desta terra fantástica que um dia foi chamada Pindorama. Não acho maldição dizer que aqui tudo acaba em samba. É uma bênção isso! O samba, seja ele do morro, bossa nova, samba rock, samba de roda ou “sambão joia” é sempre lindo, da mesma forma como o brega rasgado de Reginaldo Rossi, Adilson Ramos e Waldick Soriano. Já dizia o Mestre Dominguinhos, através de Anastácia, em célebre letra, que “o preconceito não tem valor”.

Aplausos para Paulo César de Oliveira e uma imensa vaia para Roberto Carlos, emporcalhador da sua biografia, junto a esses oito que o apoiam nesse tipo de censura prévia, execrável como outra qualquer!

Fiquem agora com o som da beleza de música composta por Luiz Ayrão: “Treze Anos”, ou (outra vaia pra Censura!) “O Divórcio”.




Sobre a obra
Os artistas chamados bregas, o sambão-joia, a censura prévia de Roberto Carlos e da elite da MPB.

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