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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*




E o público delirava, noite após noite, meses a fio. Em seguida, com o Sambalanço, Lennie gravou seu primeiro disco para a Elenco, de Aloysio de Oliveira, e se tornou um dos artistas mais influentes da nova música brasileira. Nunca mais fomos os mesmos depois daquele verão de 1963 em Petrópolis. De volta ao Rio, as festas em volta de Vinícius se sucediam e se multiplicavam, novos amigos entravam na turma, havia cada vez mais música no ar que respirávamos. Todo mundo voltou a fingir que estudava — mas só se pensava em música. A Faculdade de Direito parecia uma sombra distante e não havia nenhuma outra perspectiva profissional no meu horizonte. Trabalhando como escriturário na Universidade do Brasil (datilografava os contracheques de milhares de professores e funcionários, não podia errar), passei o ano procurando desesperadamente uma vocação universitária que aplacasse os temores de minha mãe: “Se você não se formar, não vai ser doutor, vai ficar a vida inteira sendo chamado de ‘seu’ Nelsinho”, ecoava em minha cabeça a sua terrível advertência. Ela certamente não via muito futuro para mim como instrumentista, apesar de sua paixão musical, ou por isso mesmo: ouvido de mãe não se engana.

Mas, apaixonado cega e surdamente pela música, eu insistia, feliz. Tinha 19 anos e estava adorando aquela vida musical, com minha turma musical, vivendo e sonhando música dia e noite. Estudava violão o dia inteiro e embora o sentido rítmico não me fosse natural, nem meu ouvido ajudasse muito, a paixão, o entusiasmo e o esforço eram tais que inevitavelmente comecei a tocar razoavelmente. E a articular com Alberto, um amigo flautista, magro e alto como uma flauta, filho do compositor erudito Hekel Tavares, a formação de um conjunto instrumental. Freqüentadores assíduos das jam sessions do Beco das Garrafas e dos shows de bossa nova, queríamos fazer alguma coisa entre o som metálico, jazzístico e vigoroso de Sérgio Mendes e seu Bossa Rio, que adorávamos, e os sons mais leves e praieiros do Conjunto Roberto Menescal.
 
Sérgio tinha três sopros soberbos, dois trombones e um sax tenor, e o sexteto de Menescal construía sua sonoridade na combinação dos timbres agudos e suaves de flauta-vibrafone-guitarra. Eram sons opostos — e nós queríamos estar no meio. No “Seis em Ponto”, batizado por Ronaldo Bôscoli, as melodias seriam soladas quase sempre em uníssono por trombone e flauta, um bem grave e outra bem aguda, às vezes com o piano timbrando no meio, com meu modesto violão ao fundo ajudando na base harmônica. Não podia mesmo dar certo. Chamamos Francis para ser o pianista, com a promessa de tocarmos várias músicas dele. Na bateria, João Jorge, filho de Lucinha Proença. No trombone, Carlos Alberto Camarão, que conhecíamos das jam sessions do Little Club. E, na falta de outras opções, chamamos para o contrabaixo Carlos Eduardo (Saddock de Sá), um garotão bonito que tocava pessimamente, mas tinha o instrumento e um fusca. O grupo, tirando o talento de compositor de Francis, modestamente, era ruim de doer, mas mesmo assim foi contratado para gravar um Lp na RGE.

Em sua coluna na Revista do Rádio, o Imperial contra-atacou: “A já famosa Turma do sobrenome, simpática rapaziada de famílias conhecidas que se reúne para difundir a bossa nova, é apadrinhada por Ronaldo Bôscoli, que batizou o conjunto como ‘Seis em Ponto’. A idéia não é boa: o nome vai dar chance aos trocadilhos de que a turma quer mesmo é ‘fazer hora’. A melhor sugestão é colocar mesmo ‘Turma do sobrenome’ no disco...” Fui ficando muito amigo de Edu, admirava-o e gostava dele, de seu jeito sério e sua determinação, sua intensa musicalidade.

Nos falávamos todos os dias, nos encontrávamos no apartamento dos pais dele, em Copacabana, ele namorava Wanda Sá e eu Helena Campos, sua melhor amiga. Nos reuníamos na casa de Wanda, no Leblon, com outros amigos, como os irmãos Valle, Dory Caymmi e Francis Hime, ou no apartamento dos pais de Olivia Leuenroth, no Morro da Viúva, o “apartamento de Nara” da nossa geração. Só que maior e mais bonito e com vista para o Pão de Açúcar, onde passávamos tardes e noites e madrugadas em volta de Vinícius cantando e tocando e namorando. Com Wanda fiz minha primeira letra, com o original título de “Encontro”, que tinha uma primeira parte “triste” e uma segunda “alegre”, naturalmente quando ela encontrava seu amor. Pura bossa nova de Copacabana, ortodoxia menescoboscoliana. Wanda estava dividida: namorava e admirava Edu, que estava fazendo uma música mais “sertão”, mais nordestina, com letras fortes e sonoras de Ruy Guerra; mas também era amicíssima e ex-aluna de Roberto Menescal, por quem tinha enorme admiração e respeito. Eu também.

Mas meu grande ídolo era Ronaldo Bôscoli, o “Véio”, como seus amigos (e ele mesmo) o chamavam, quando ele mal tinha passado dos 30. Ele era especialista no autodeboche, tanto quanto em usar seu humor venenoso e implacável, invariavelmente hilariante, para detonar 
indiscriminadamente egos, vaidades e reputações, pelo simples prazer de divertir. Ronaldo tinha, entre outros, um especial e maligno talento, que às vezes levou às fronteiras da arte, para farejar e alvejar certeiramente o ponto fraco, o falso, o feio e o errado que havia em todos e em cada um, principalmente nos bonitos e inteligentes, nos ricos e vitoriosos. Sem que em nenhum momento ele deixasse de fustigar os fracos e feios e tristes, os pobres e oprimidos. Além da pura maledicência e do intenso divertimento, as rajadas de piadas com que o “Véio” alvejava todos — e a si mesmo — me serviam como uma afirmação permanente da fragilidade do ser humano e ajudavam a equilibrar meu deslumbramento pelo que moços de família conheciam como “vida artística”.

Era a língua mais rápida e temida do Rio e foi a pessoa que mais me fez rir na vida — e provavelmente a que fez mais gente rir de mim. Com 19 anos eu queria ser como ele, ter aquele charme todo, comer aquelas mulheres todas, ter aquele humor carioca, fazer aquelas letras, saber todas aquelas malandragens, contar aquelas histórias, morar naquela cobertura em Ipanema. Além da música, nos unia a paixão pelo Fluminense, que nos levava ao Maracanã todos os domingos, para jornadas geralmente gloriosas e comemorações ruidosas.

O “Véio” era ranzinza, reacionário, intolerante e engraçadíssimo. Não poupava ninguém, nem os amigos mais queridos, Ronaldo não poupava a própria mãe. Muito menos os que considerava responsáveis pelo desgaste, diluição e vulgarização da “sua” bossa nova, que parecia irremediavelmente atropelada pela efervescência política e pelas novidades musicais que começavam a fazer barulho em todo o país.

Ronaldo tomava a decadência comercial da bossa como uma afronta pessoal. Suas músicas com Menescal ainda faziam muito sucesso, mas o “Véio” era chamado de ultrapassado e se ressentia. Mesmo com todo o sucesso e toda a sua malandragem, Ronaldo não vivia folgado, corria atrás de dinheiro em vários empregos e não desfrutava os lucros que suas músicas geravam: era escandalosamente roubado em seus direitos autorais por um editor italiano simpaticíssimo, que surrupiou durante anos os direitos dele e de Menescal, de Tom, Carlos Lyra, Vinícius, Baden e outros e logo em seguida estaria roubando Edu, Francis, Marcos e Paulo Sérgio e até eu mesmo. Até ser liquidado nos tribunais por um advogado judeu americano de Sérgio Mendes.

O “Véio” estava inquieto, sentia que o vento estava mudando rapidamente, Tom e João estavam nos Estados Unidos, o samba-jazz pesado fervia no Beco, a dupla Lyra e Vinícius apresentava uma primeira safra de músicas excepcionais, mais fortes e densas, mais “sérias” e “brasileiras” que as suas com Menescal. A bossa nova perdia público e as novas gerações — como eu, Wanda e Heleninha, que nos reuníamos freqüentemente com ele em sua cobertura em Ipanema — estavam mais interessadas na “beat generation” americana, nos “angry young men” ingleses, na “nouvelle vague” francesa e na Revolução Cubana. No Teatro de Arena e no Cinema Novo. Um dos alvos favoritos do “Véio” era a nascente esquerda musical e sua aproximação, que considerava demagógica e populista, com os sambistas de morro cariocas e a música nordestina. Com um agravante: sua ex-noiva Nara, de quem achávamos que ele ainda gostava, estava namorando justamente uma das figuras mais carismáticas e brilhantes da arte engajada, o cineasta socialista e agora também concorrente como letrista, o moçambicano barbudo Ruy Guerra, o anti-Ronaldo.

“Se quando você chegar a portaria estiver fechada, bate no vidro que tem um porteirinho guardado lá dentro”, avisava Ronaldo a quem ia visitá-lo na cobertura do 22 da Visconde de Pirajá, em cima do Teatro Santa Rosa, no coração de Ipanema, de onde se via o mar. E nós íamos sempre nos fins de semana: Wanda, Heleninha e eu, e encontrávamos sempre Miele, o fotógrafo Paulo Garcez e o ator Hugo Carvana, além das namoradas de Ronaldo e de eventuais visitas ipanemenhas, para manhãs de sol e tardes de c erveja e gargalhadas, refrescadas por chuveiradas e jatos de mangueira. Numa manhã o calor estava tanto e foram tantas as cervejas que, por sugestão de Ronaldo, Carvana e eu subimos com ele ao telhado do edifício e irresponsavelmente fizemos da caixa d’agua nossa piscina. “Sem pipi”, sem que ninguém perguntasse, prometeu Ronaldo, embora, em se tratando do “Véio”, tudo fosse possível.

Mas também frequentávamos ativamente os fins de semana do apartamento do jornalista francês Daniel Garric, correspondente de Le Figaro, em Copacabana, onde se hospedava, há mais de um ano, Ruy Guerra. Depois da praia, era um dos points favoritos, open house que 
começava com mariscadas e entrava pela noite com cerveja e violão. Ruy era charmoso e educado, baixinho e de traços finos, tinha uma imagem viril e corajosa, opiniões diretas e apaixonadas, cultura europeia e espírito aventureiro.

Tempos depois, quando Daniel foi chamado de volta para Paris, Vinícius e seu substituto Philippe não só herdou o posto como o hóspede e quando mudou-se para um novo apartamento fez questão de levar Ruy com ele. Às vezes o visitávamos e perguntávamos como ia a coabitação com o francês. Ele respondia com seu sotaque luso: “De vez em quando eu faço um ‘plebiscito’: digo que já estou “aqui há muito tempo, que posso estar incomodando, que estou pensando em me mudar... e como ele sempre diz para eu ficar, então eu vou ficando.”



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