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terça-feira, 12 de janeiro de 2016

ORLANDO SILVA E A MORFINA

Por Norma Couri



No último dia 03 de outubro foi o centenário do nascimento de Orlando Silva, o cantor que já foi das multidões mas hoje deve causar nos leitores jovens um “Orlando, quem?”. Muito cedo perdeu a voz para a morfina. Um vozeirão, sem favor o melhor cantor do Brasil de 1935 a 1942, talvez o maior do Brasil na opinião de Ruy Castro em “A Onda Que se Ergueu no Mar“ ( Cia das Letras, 2001). Semana passada as homenagens começaram na coluna do Ancelmo Góis (27/09) “O Frank Sinatra Brasileiro”, três dias depois na do Ruy (FSP,30/09), “Orlando Indestrutível” ……

Sexta-feira dia 2 a Folha deu capa e lembrou quem bebeu na sua fonte, João Gilberto, Caetano, Paulinho da Viola, Roberto Carlos. A Carta Capital lembrou a homenagem de cinco programas da radio Batuta (www.radiobatuta.com.br) conduzidos pelo expert João Máximo que assinou a matéria da contra-capa do Caderno 2 de O Globo no sábado, “Entre a Glória e o Drama”, “a voz…mais arrebatadora…pela perfeição com que passava entre os graves e agudos…primeiro ídolo de massa da música e do rádio”.

Ancelmo Góis, na coluna dele de O GLOBO do dia 3/10/2015, publicou uma entrevista com José Serra , meia página, oito colunas, falando sobre o cantor. O título O Maior Cantor de Todos os Tempos. Serra, um noctívago, concedeu a entrevista às 4h44 e fala coisas como “sempre fiquei me perguntando como a droga e o sofrimento amoroso puderam cometer o crime de corroeram aquelas cordas vocais e a alma que as acionava e modulava”

Aos 16 anos Orlando, nascido no subúrbio carioca de Engenho de Dentro, começou a tomar morfina depois de perder três dedos do pé ao escorregar do bonde em movimento e prender o pé no estribo. Já era sucesso nacional quando foi submetido a uma cirurgia nos dentes e a dor novamente desaguou na morfina, e desta vez não largou mais. No meio tinha uma caso de amor, mais da cantora e atriz da Rádio nacional, Zezé Fonseca, porque Orlando tinha uma adesão total…à droga, à morfina, à bebida, à degradação. João Máximo explica, “Vai perdendo a voz, castigada por um timbre rouco que lhe torna tudo mais difícil”. E o cantor das multidões deixou de existir em 1943.

Na véspera de completar 60 anos, em 1975, Orlando Silva tentava se recuperar há alguns anos. Estava casado há 28 anos com Maria de Lurdes que o salvou da derrota total, regravando clássicos (“ainda um bom cantor…mas sem ter como resistir às comparações com ele mesmo quando jovem”, diz João Máximo). Neste momento fui entrevistá-lo no apartamento em Copacabana com a incumbência de mostrar a decadência e trazer um histórico do seu problema com as drogas. Um caso de sucesso absoluto que se evaporou. Era matéria. Eu estava formada em Jornalismo há quatro anos, senti que tinha uma matéria dramática pela frente e me preparei para ir fundo.


A entrevista

Quando encontrei Orlando Silva meu coração balançou. Seria uma grande matéria desvendando um fracasso? Ou um encontro com um cantor que havia conhecido a glória mais que qualquer outro, e estava démodé, triste, tentando se mostrar digno.

É a grande questão do jornalismo: se a freirinha cai do ônibus o profissional de imprensa bate a foto ou ajuda?

Titubeei. Na hora em que entrei, ele preparou uma cena. Coisa de ídolo. Estava supostamente no banheiro fazendo a barba, penteando as costeletas, aprumando-se para receber a imprensa, repórter e o fotógrafo do jornal na época mais prestigiado, O Jornal do Brasil. E cantava, o vozeirão aumentado pela acústica do banheiro , uma demonstração de que ainda era o Orlando Silva das multidões. No começo Maria de Lurdes me olhava com temor das perguntas mas não dizia nada. Antes que ele entrasse triunfal na sala já tinha decidido. Não teria perguntas malcheirosas, a matéria seria uma homenagem. Briguei por isso na redação onde fui cobrada por não ter feito as perguntas pesadas, e o Caderno B deu Orlando na capa com toda reverência.

Ele tinha 60, parecia 80 anos, morreria três anos depois num silêncio só rompido agora no centenário do nascimento graças aos programas de João Máximo na Rádio Batuta (“ Orlando Silva- A Voz e a Vida” em cinco capítulos, “Os Caprichos do Destino”, “Da Apoteose ao Declínio”, “Uma Voz, Todos os Gêneros”, “O Cantor e seus Compositores”, “Enquanto Houver Saudade”). Também à lembrança de Ruy Castro. E aos dois ótimos programas na radio Cultura ( Brasil Brasileiro sábado e Memória Popular Brasileira domingo) que brindaram os ouvintes com “Rosa”, “Nada Além”, “A Jardineira”, “Lábios que Beijei” – esses no entanto sem mencionar o debacle da morfina, agora uma falha grave. São 37 anos passados depois de sua morte, e o cantor já não se mostra destruído pedindo reverência diante deles. Agora é história, e biografia pede verdade.




Arquivo Jornal do Brasil

A matéria “Orlando Silva, Os 60 Anos da Voz Que Nunca Precisou Ser Treinada” saiu dia 02/10/1975 no Caderno B d’O Jornal do Brasil:

Seresteiro, rei do disco, colecionador de troféus, frequentador do extinto Café Nice, cantor das multidões, arrebatador de fãs, sucesso garantido nos dois lados dos discos de 78 rotações, boêmio de um Rio fértil em boemia, Orlando Silva, sobrevivente de um tempo que já não existe mais, completa amanhã 60 anos. Falando pouco, sem gastar a voz que há alguns anos faria uma fã rasgar as roupas – deles ou as próprias –o cantor de uma multidão hoje inexistente relembra o passado.

A voz chega antes dele, vinda lá de dentro, cantarolada no banheiro enquanto ele faz a barba, penteia as costeletas, apruma-se dentro da calça azul bem vincada, da camiseta, da camisa engomada. A mesma voz que há uma dezena de anos causaria no mínimo um desmaio da fã sentada no sofá da sala. “Eu fiz uma verdadeira revolução no rádio. Esse negócio de rasgar roupa de cantor, sair pelas ruas perseguido pelas fãs, começou comigo!

Sua guimba de cigarro jogada ao acaso pela janela de um trem levava uma disputa às suas últimas consequências e a descoberta do número de seu quarto no hotel provocava a loucura de fazer uma menina esconder-se no armário, só para vê-lo. Seresteiro autêntico do tempo em que ainda havia serestas, Rei do Rádio que nunca se importou com deixar o título de Rei da Voz pra seu amigo Francisco Alves – o Chico Viola – ganhador de mais de 100 troféus cuidadosamente guardados no armário, frequentador do café Nice na extinta e boêmia galeria Cruzeiro, ele chega à sala depois de uma hora de espera.

Chega calmo, piteira na mão, cabelos pintados, penteados à maneira de 1930, olhar jogado ao jeito do sucesso que hoje só se faz lembrar nos discos de acetato, 78 rotações, espalhados no sofá.

Orlando Silva, 60 anos, 41 e meio como cantor das Multidões entra na sala do apartamento em Copacabana ( uma das poucas coisas que ficaram próprias em toda sua carreira) e canta, agora para uma multidão bem menor, resumida numa jornalista, num fotógrafo e na mulher Lurdes – um sucesso antigo qualquer:

LÁBIOS QUE BEIJEI

MEU CONSOLO É VOCÊ

AMIGO LEAL

ENQUANTO HOUVER SAUDADE


Lembranças do tempo fértil

Não sobrou ninguém. Ninguém daquele tempo, fértil em Donga, Pixinguinha, João da Baiana, Lamartine Babo, Zé da Zilda, Ratinho, Luis Americano, Chico Viola, Jacob do Bandolim, todos amarelados nos retratos que Lurdes traz em envelopes bem guardados.

–Não existe mais um ponto de encontro. Um Café Nice, quartel general do rádio, ponto de convergência de todos nós. Lá sabíamos de uma coisa de um e de outro. Hoje ninguém se vê, só nos corredores dos aeroportos, uns indo para Minas, outros para São Paulo.

Sem gastar muito a voz, falando pouco e fumando muito, sério e achando graça apenas quando é Lurdes quem a provoca, Orlando Silva lembra o Rio, do tempo em que tudo era perto, “ da Glória a gente ía a pé para o Centro, passando pela Lapa, a um pulo da Cinelândia”. Do tempo em que seu sucesso não era representado apenas pelo busto encostado na parede, cópia do que existe na Praça Orçando Silva, no Méier. E quando o cantor só contava com o microfone para lançar a voz nos auditórios repletos ( de gente pronta para chorar quando o peito de Orlando se abria nas últimas estrofes), “ sem essa coisa toda de playback, corte daqui e dali, câmara de eco e máquinas que dão voz a quem não a tem”.

Junto com o aparato romântico, a figura do seresteiro desapareceu desse mapa novo da cidade. Sem herdeiros, “ embora goste de música popular brasileira de todos os feitios, desde Carlos Gomes até Chico Buarque, em especial aquelas coisas de Erasmo Carlos e Roberto Carlos”. Orlando Silva, cantor de agradar nos dois lados do disco – coisa rara na época – canta pedaços de músicas e conta a história comprida do sucesso.

–Nasci no Engenho de Dentro, no subúrbio da Central e esse negócio de cantar surgiu logo nos primeiros anos. Junto com os livros que levava para a escola, havia sempre um folheto de modinha. E quando voltava do colégio. Aos seis ou sete anos, achava de subir na amoreira da vizinha para cantar. Naquela época já tinha fãs.

ROSA, CARINHOSO,

JARDINEIRA, NADA ALÉM,

AOS PÉS DA CRUZ,

ÚTIMA ESTROFE

Cantando “Mimi“ ele segurou o microfone pela primeira vez, em 1934.

–Foi uma emoção. Eu já estava cansado de esperar pelo diretor, na Rado Cajuti, quando o compositor Bororó apareceu e se encantou. Resolveu me apresentar ao Chico Alves e a partir daí muita coisa mudou.

Ele apanha um retrato robusto de Chico Viola. Retrato colorido, guardado junto com os troféus.

–Chico era lindo, uma figura maravilhosa.

Dá um risinho e completa:

–Chico fazia misérias. Eu, só na surdina. A gente convivia diariamente no Café Nice: Silvio Caldas, Mário Reis, Orestes Barbosa, Custódio Mesquita, Araci de Almeida, uma das poucas mulheres mas assídua.


A Rádio Nacional

Logo depois do contato com Chico Alves, Orlando se lançava na Rádio Cajuti e mais tarde cantou “ em tudo quanto era estação, a Rádio Sociedade, a Clube do Brasil, a Guanabara, a Mayrink Veiga, a Cruzeiro do Sul “. Em 1936 surgiu a Rádio Transmissora e lá ele ficou por seis meses. Depois veio a Nacional que ele “inaugurou” em 12 de setembro de 1936.

— Era linda, no 21º. Andar do edifício A Noite, o mais alto do Rio naquele tempo. A Nacional foi tomando conta, e eu junto, cantando tanto sucesso que nem sei.

Quem tem mais de 30 anos sabe o que foi o programa do meio- dia, Quando os Ponteiros se Encontram, o que era suspirar por Orlando Silva ao lado do rádio sintonizado na Nacional, a voz — que o tenor Tito Schipa disse já ter “ nascida no lugar, nunca precisa ser trinada, é só cantar sempre, assim como você cantou para mim” – totalmente desconhecida pelas cocotas de hoje.

Outro dia vi na televisão uma menina torcendo o nariz para o apresentador que perguntava quem era Noel Rosa. Hoje Noel é confundido com médico ou cirurgião plástico.; Ninguém lembra, ninguém sabe.

CURARE, NANÃ, ADEUS,

POR TI, SERTANEJA,

ABRE A JANELA, HOMEM

SEM MULHER NÃO VALE NADA


Orlando Silva, “ mais de mil músicas gravadas”, ex-estafeta da Western, ex- operário na Cerâmica Trajano de Medeiros, ex-entregador de uma loja de fazendas da rua do Ouvidor, ex-cobrador de ônibus, ex- melhor cantor, ex- melhor do disco, ex- boêmio (“hoje sou pacato até demais”) , faz 60 anos já quase nada significando para a geração do rock.

Seus discos já não são encontrados nos sebos, principalmente aqueles da RCA Victor, Odeon e Columbia, que ele ( e poucos mais) tem em casa: Por Ti (da RCA, Orlando na capa, moço, sentado no sofá da mesma sala onde está), Orlando e Músicas Famosas de Ary Barroso, Aquela Mascarada (Copacabana), Uma Dor e Uma Saudade, Enquanto Houver Saudade, Vinte e Cinco Anos Cantando Para as Multidões (Odeon), Sempre Sucesso, Última Estrofe, e um monte de outros, principalmente 78 rotações com toda variedade de chorinhos, tangos, valsas, fox, fox-bolero, marchas, valsas- canções, sucessos casando-se dos dois lados.

–Tem ainda um recente, com música de Taiguara ( Hoje), Antonio Carlos e Jocáfi (Desespero), Edu Lobo e Torquato Neto (Prá Dizer Adeus), Gilberto Gil ( Mancada). É prá homenagear a garotada – diz Lurdes.

Segundo Lurdes, Orlando ouve rádio o dia inteiro e de televisão sabe muito pouco. Também não entende muito desses casamentos de hoje, “ como o da vizinha, que casou em setembro e deixou passar o carnaval, mas antes da Semana Santa estava descasada. Na minha época eu não sabia o que era isso ou aquilo, nem aquilo outro”, diz, rindo.

Por falar em carnaval ele relembra os dele: “Gravava verdadeiras joias carnavalescas, como um disco com Jardineira e Meu Consolo é Você. Todo ano eu encaixava um sucesso”. Fala dos períodos férteis, entre 37 e 44, “ por exemplo aquele e no em que eu gravei uns 20 sucessos seguidos”, mas dos fracos nada diz.

A mulher – está casado há 28 anos – lembra a hora do remédio e do mingau e ele dá um sorriso para a máquina do fotógrafo. Seus 60 anos serão comemorados sem festa. Mas ele não está triste por isso. Diz mesmo que nunca festejou aniversário e, depois, a vida que viveu seria vivida outra vez se multidão ainda houvesse para seu canto.

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