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terça-feira, 26 de janeiro de 2016

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




Depois de uma serena e breve introdução instrumental - com o mesmo andamento rítmico que acompanhará a canção até o final - entra em cena a voz de Dori Caymmi entoando com timbres passionais "Canto praieiro", de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro (Poesia musicada, 2011).

A princípio, a canção fala de dois corações - do sujeito-cantor (pescador, praieiro) e de Maria - unidos pelo mar e sua sugestão de eternidade. Desde a introdução, com o uso do violoncelo - instrumento cujo som mais se assemelha à voz humana - há significantes que levam o ouvinte a crer que Maria, o amor do pescador, pode ser, além do bem-de-terra (aquela que chora quando o sujeito sai), também o bem-do-mar: Yemanjá.

"Fiz meu canto praieiro pro mar cantar pra Maria", diz o sujeito. Como sabemos, a semiótica da palavra "Maria", sincretizada à mitologia mariana cristã, é um dos nomes de Yemanjá - um dos orixás mais populares do Brasil, mesmo entre aqueles que não seguem as religiões afrodescendentes. Além de Dandalunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá, Inaê, Sereia, Mucunã.

Desde modo, o canto praieiro é o canto-de-retorno do sujeito à sereia rainha do mar. Humano, o sujeito cria os elementos necessários para que o próprio mar (berço do amor) retribua Maria. Tendo em vista que "é com o povo que é praieiro / que dona Yemanjá quer se casar", como diz outra canção.

Retomo à importância da presença do violoncelo, pois parece ser movido (acalentado) por este som - "não era canto de gente / bonito de admirar", como diria o sujeito de "Caminhos do mar" - que o sujeito de "Canto praieiro" constrói sua declaração amorosa. O violoncelo representa o canto sirênico (não humano, mas assemelhado a esse) que dialoga com a voz (humana) do sujeito, de Dori.

Dito de outro modo, há um diálogo erótico-cancional que move e atravessa toda a canção, iconizado pelo embaralhamento (sobre e justaposição) de alguns versos: reiteração em diferença. O que, tanto representa os dois corações (esculpidos em uma palmeira do chão da praia) em enlace, como aponta as notas (vocais e do violão) carregadas pelo vento ao mar que, a pedido (cúmplice) do sujeito, canta Maria. É nesse rearranjo de significantes (versos e melodias marinhas) que o sujeito em estado contemplativo encena a ponte de voz-dupla entre ele e a musa, a sereia: Maria.

Importa apontar que no mesmo disco - Poesia musicada - há uma canção intitulada "Dona Yemanjá". "Vi que um clarão me alumbrava / do olho se encadear / Vinha da ponta de pedra / que aflorava do mar / era uma moça encantada / (...) Correu um gelo na espinha / bateu espanto no olhar / (...) / senti meu peito afundando / dentro da arrebentação / e ela virando a rainha / do mar do meu coração", diz o sujeito. Como percebe-se, as duas canções guardam signos muito próximos, diante do inferno (medo) e céu (vontade) do indivíduo em epifania mística-amorosa.

Há uma devoção e uma delicadeza melancólicas comoventes no modo como este sujeito é figurativizado na voz de Dori. Denso, aprofundando-se na entrega-de-si, o sujeito de "Canto praieiro", de viés, elege-se e se canta ao cantar seu par no mundo, ao tecer sua poética sustentadora do amor.

"Poesia é estrela arisca / tem que ter muito namoro / tem que ser diamante a isca / posta num anzol de ouro / (...) / Poesia é peixe não / mas se pesca de canoa / na maré do coração", dirá outra canção - "Estrela verde" - do mesmo disco, ampliando as noções teóricas daquilo que separa poesia e gesto poético, trama poemática da existência, produção de presença, impressão descritiva.

"A palavra cantada / não é a palavra falada / nem a palavra escrita / a altura a intensidade a duração a posição / da palavra no espaço musical / a voz e o modo mudam tudo / a palavra-canto é outra coisa", comenta Augusto de Campos, ensaiando sobre Torquato Neto. Em "Canto praieiro", o organismo inseparável da canção (palavra, som e voz) está representado, desenhado nos elementos sofisticados, porque primitivos - violão e maresia, areia e coqueiro, sujeito e Maria -, que compõem o lugar onde a canção se encarna: a ca(rna)n(a)ção do afeto.

É assim que, Yemanjá, prescindindo à formação da individuação, é a amante-companheira perfeita no mergulho para dentro-de-si - dentro do eterno verde - do indivíduo praieiro alumbrado com sua própria imagem (interioridade, potencialidades) refletida no espelho (canto) sempre na mão (na voz) da sereia.

O sujeito de "Canto praieiro" é alegre na monocordia do cotidiano trágico. Afinal, "foi com pincel de relento / e tinta de maresia / que a mão do meu pensamento / no chão da praia vazia / riscou um verso de vento / pro mar levar pra Maria", como anota o sujeito. E o que se ouve nessa canção é exatamente a toada sempre grave, na voz de Dori Caymmi.


***

Canto praieiro
(Dori Caymmi / Paulo César Pinheiro)

Foi com pincel de relento
e tinta de maresia
que a mão do meu pensamento
no chão da praia vazia
riscou um verso de vento
pro mar levar pra Maria

Foi com violão de coqueiro
e cordas de ventania
que com meu dom de violeiro
e ao som da onda vadia
eu fiz meu canto praieiro
pro mar cantar pra Maria

Foi com clarão de poesia
que eu esculpi de paixão
com a ponta da estrela guia
numa palmeira do chão
o coração de Maria
junto com meu coração




* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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