Por Francisco Bosco
Roberto Carlos foi protagonista do que se pode chamar, sem exagero, de a invenção da juventude no Brasil. Até os anos 1960, crianças e adolescentes eram tratados como adultos em miniatura. Não havia uma cultura que decifrasse sua experiência. O próprio Roberto iniciaria sua carreira de cantor, ainda de calças curtas, cantando boleros. Na esteira do rock e do cinema estadunidenses, a Jovem Guarda deu à juventude seu espelho. Nos anos 1970, junto ao parceiro Erasmo Carlos, Roberto construiu um repertório de alta qualidade, que permanece como um standard das canções de amor brasileiras. Tornou-se “o mais moderno
dos cantores românticos latinos”, como disse Chico Buarque. A partir de meados dos anos 1980, contudo, sua obra entrou em um declínio que perdura até hoje. A decadência artística do Rei desde então já foi apontada muitas vezes — mas o que está em jogo nessa decadência? O que havia em sua criação que em certo momento deixa de existir?
O que faz de um artista um artista é a sua coragem, sua entrega para conhecer a realidade em toda a sua complexidade e profundidade. Há outros entendimentos do que seja um artista, mas é esta noção que proponho aqui, por ser ela a que ilumina a trajetória de Roberto Carlos.
Uma frase de Almodóvar nos ajuda a esclarecê-la. O cineasta espanhol mudou-se para Madri aos 16 anos, sozinho e sem dinheiro, a fim de estudar cinema. Muitos anos depois, ele diria dessa experiência: “Eu me acostumei à realidade (eu a assumi, como se assume a doença de alguém que se ama).”
O artista é aquele que assume a realidade, assume-a com sua imperfeição constitutiva, com seus impasses insolúveis, com toda sua dimensão dolorosa, trágica, fatal como uma doença. Artista é aquele que se entrega à realidade, que se dispõe a percorrer a geografia subjetiva que ela descortina. O resultado dessa experiência, quando traduzida para uma linguagem, é sempre um alargamento do campo da realidade. O mundo fica maior, mais surpreendente, mais admirável — e mais angustiante também.
Roberto Carlos foi um grande artista até certo momento. Na Jovem Guarda, levou para a canção popular experiências da realidade que não eram tematizadas. Embora hoje soem ingênuas, aquelas canções ampliaram a experiência de seu tempo, tratando de temas como apaixonar-se pela namoradinha de um amigo, andar de carro em alta velocidade, recusar-se ao casamento, usar cabelos compridos etc. A Jovem Guarda tinha uma radicalidade limitada, é verdade. Uma frase de Jorge Mautner sobre Roberto define com precisão os limites de seu gesto: “[...] rebelde e submisso, puritano e sexy [...] eis o grande rei, situado exatamente na fronteira do permitido e do não permitido”. Mas, apesar dessa ambivalência, houve ali um alargamento da realidade, um desrecalque de alguns de seus aspectos.
Isso não se reduz ao plano comportamental. As canções de Roberto dos anos 1960 eram inovadoras na temática das letras e também na sonoridade. Havia experimentação timbrística, busca por um som novo e moderno. Na passagem dos 1960 para os 1970, e ao longo desta década, a intensidade artística só fez crescer. Os arranjos orquestrais são impactantes. As melodias, inspiradas e eficazes. As letras continuavam a não temer a realidade, tematizando desde seus aspectos mais delicados, como a rotina esvaziadora do casamento, aos mais provocativos, explicitando a sexualidade em Cavalgada, Proposta e Os seus botões.
Esse destemor da realidade revela-se plenamente em canções como Traumas e O divã. Em ambas ele alude ao acontecimento do acidente que lhe causou a amputação da perna. “Relembro bem a festa, o apito/ e na multidão um grito/ o sangue no linho branco.” O trauma, para a psicanálise, é uma espécie de limite da realidade. Traumático é o acontecimento que o sujeito não é capaz de simbolizar. O fato de Roberto Carlos ter tido a coragem de retornar a esse limite da realidade, às fronteiras do insuportável, trazendo desse lugar estrangeiro sua forma poética, cancional, isso resume a exigência fundamental ao artista. Foi precisamente isso que se perdeu.
E por que se perdeu? A decadência artística de Roberto começa na mesma época em que se intensificam sua experiência religiosa e os sintomas de transtorno obsessivo-compulsivo, ambos a partir dos anos 1980. Com efeito, há um estreitamento da realidade na perspectiva religiosa dogmática, assim como no TOC.
O idealismo religioso, seguido radicalmente, conduz a um recalque dos aspectos incômodos, porém constitutivos, da realidade. O TOC, por sua vez, é a metáfora perfeita (e a causa efetiva) do estreitamento da realidade. Seus sintomas mais característicos incluem evitações e repetições, transformando a realidade num campo minado, temível, repleto de interdições. Roberto Carlos, então, descobre-se impedido, por essa força estranha no seu psiquismo, de falar e cantar certas palavras. é assim que uma das canções mais importantes de sua carreira, Quero que vá tudo pro inferno, desaparece de seu repertório. Letras são modificadas, com resultados bizarros, porque determinadas palavras não podem ser cantadas. Na canção “ Épreciso saber viver”, o verso “se o bem e o mal existem” chegou a ser substituído por “se o bem e o bem existem”. Não se trata de uma mera troca de palavras: é toda a dimensão negativa da experiência humana que é recalcada.
O estreitamento da realidade tem como consequência necessária o estreitamento da arte. O que havia em Roberto Carlos, e que o fez merecer o título de Rei da juventude, e depois simplesmente Rei, na medida em que suas canções traduziram a experiência humana madura nos anos 1970, o que havia, e se perdeu, era a aceitação da realidade. Não se pode ser artista recusando-se a olhar para ela.
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