A mãe é a primeira sereia do indivíduo. A força motriz a convidá-lo à vida, ao mesmo tempo em que aperta os laços da relação [de dependência] dialógica (mãe-filho). Ou seja, ela dá a corda, mas mantém o cordão (umbilical) bem ajustado.
E são nas cantigas de ninar - e suas ambiguidades entre o consolo e a provocação do medo - que as mães vão sustentando o filho, na voz, ao mesmo tempo em que se mantem viva (com função e sentido) no mundo. Oferecendo tempos e espaços suspensos na realidade vocal, a mãe insere o filho na descoberta-de-si.
Diferente do Ulisses homérico, o indivíduo comum não tem uma Circe a lhe advertir dos encantos das sereias. Somos urdidos e maturados já imersos no paraíso sonoro do canto (ulterior) sirênico.
É por isso que tenho dito que toda canção (mesmo mediatizada, serial, produto de mercado) tem algo de maternal: ela quer [en]cantar o ouvinte, dar-lhe sentidos ao absurdo. Tudo na canção se articula a fim de criar o paraíso esperado por cada ouvinte. A vida em abundância, porque ficcional - descolada do real, mas sem deixar de roçá-lo.
Seguindo este raciocínio, o disco Liebe Paradiso (2011), de Celso Fonseca e Ronaldo Bastos, é uma caixa sonora onde cada palavra dita (cantada) parece querer iluminar o recanto escuro de cada sujeito cancional a dançar em cada canção.
O requinte sonoro manipulado e atingido pelos produtores Duda Mello e Leonel Pereda, produtores é algo fundador na canção popular brasileira. As ambiências geradas - quase pinturas, mas algo superior, porque canção - de tão sofisticadas soam íntimas do ouvinte e promove o efeito estético da lindeza.
E é atento a esta intimidade que destaco "Flor da noite" cantada por Nana Caymmi. Temos aqui uma jóia rara. Avesso à simplicidade, ou à simplificação, das relações afetivas entre cantor e ouvinte, o sujeito da canção - feito vivo na voz de Nana - pontua aquilo que ele é: sereia/mãe a acalentar o indivíduo/filho solto na noite escura.
Só mesmo quem cantou com imprescindível beleza os versos "Hoje eu quero a rosa mais linda que houver / quero a primeira estrela que vier / para enfeitar a noite do meu bem" poderia recriar "Flor da noite", de Celso Fonseca e Ronaldo Bastos: uma canção de ninar adultos, de embalar afetos.
A voz de Nana Caymmi se acomoda com tamanha precisão ao desenho musical que o desejo do sujeito da canção acontece: a cama sonora e tépida está feita, basta ao ouvinte deitar e aproveitar a suave proteção (maternal) que ela oferece - o lugar onde o amor ficará em permanente estado de pausa e será acionado sempre que a canção retornar.
Aqui, a proteção maternal é travestida na fala de alguém que se despede: "Se outro alguém te lembrar de nós dois / Não diz pra esse alguém / O que passou e ficou pra depois / Seja o que for / Além de mim / Ninguém / Assim", diz o sujeito que, pela reminiscência do ouvinte, dialoga com os versos de "Detalhes", de Roberto e Erasmo Carlos: "Se um outro cabeludo aparecer na sua rua / e isso lhe trouxer saudades minhas a culpa é sua".
Tudo dorme, está em pausa. Tudo sonha, está vibrando nos amantes. É no sonho, na memória afetiva e onírica que tudo dorme, sonha e permanece. É no canto (ficção / sonho) levemente entoado de Nana Caymmi que tudo é real - "e o uni[verso] vai ao léu". E "como a lua rolando entre as estrelas", o ouvinte é puro estado estético.
Deste modo, "Flor da noite" dialoga tematicamente com "Tudo tudo tudo", de Caetano Veloso, e "Dorme", de Arnaldo Antunes. Especialmente quando estas dizem "Tudo dormir" e "Pensamento, dorme / Sensação, dorme", respectivamente, na tentativa de colocar o ouvinte em estado de repouso, de quietude.
O pronome indefinido "tudo", nas três canções, utilizando seus cancionistas do recurso de montagem cinematográfica einseiteniano e godardiano, não se refere a uma totalidade, mas ao gesto (humano) sempre fracassado e circular de busca pela completude - na repetição do pronome, do ato, do [re]canto. Tudo é uno: cantor e ouvinte, mãe e filho, amado e amante. Cada um é parte que (juntas) leva ao todo - tudo cantado.
O canto de "Flor da noite" é a "cirandas voltas de tu em mim", como diria o poema "Saudades" de Amador Ribeiro Neto. A canção circula e protege quem é cantado, no modo (passional) de cantar os significantes - carrossel em movimento, "sobre o mundo [íntimo] cai o véu", estrela - espalhados (feitos carrossel) na canção.
Destacar aqui todos os sons sutis e suas articulações dentro de Liebe Paradiso é algo impossível e soa incoerente diante da grandeza da obra. É preciso ouvir: sem pressa, ao sabor dos sons, das vozes, do simples gesto - cada vez mais raro - de ouvir para ser ouvido.
***
Flor da noite
(Celso Fonseca / Ronaldo Bastos)
Dorme, tudo dorme
Sobre o mundo cai o véu
Veste o infinito
Véu da noite, cai do céu
Se outro alguém te lembrar de nós dois
Não diz pra esse alguém
O que passou e ficou pra depois
Seja o que for
Além de mim
Ninguém
Assim
Sonha, tudo sonha
O universo vai ao léu
Verso do meu sonho
Flor da noite, carrossel
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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