"Há na alegria um mecanismo aprovador que tende a ir além do objeto particular que a suscitou, para afetar indiretamente qualquer objeto e chegar a uma afirmação do caráter jubiloso da existência em geral", anota Clément Rosset em Alegria a força maior.
Toda alegria é alegria de viver. Prenhe de alegria, o indivíduo alegre só quer saber - involuntariamente - de espalhar aquilo que lhe move, lhe toma por dentro. Particular que se insinua no geral, assim como a tristeza, a alegria não tem motivo de ser, mas está.
No entanto, enquanto a alegria parece não desejar o impossível, aquilo que a realidade não é capaz de oferecer, a tristeza se debate em esperar o irreal, a incessante aprovação do outro.
Obviamente, ninguém é tão mono ou bicromático. Porém, como diz o sujeito de "Neguinho", de Caetano Veloso: "Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz", esquecendo-se que "belezas são coisas acesas por dentro" e "tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento".
"Haverá um dia em que você não haverá de ser feliz / (...) / Você vai rir sem perceber / Felicidade é só questão de ser / Se chorar chorar é vão porque os dias vão pra nunca mais", diz o sujeito de "Felicidade", canção de Marcelo Jeneci e Chico César. É mais ou menos isso.
As fronteiras que distinguem e delimitam a alegria (aqui, propositadamente confundida com a felicidade) e a tristeza são constantemente borradas na ação do indivíduo no mundo. Tanto os risos sem razão quanto o choro sem motivo aparente são emblemas de um corpo existindo.
Salvo engano, penso ser desse modo que o sujeito da canção "Cantar", de Teresa Cristina (Delicada, 2007) se coloca no mundo: sem "ter que explicar pra ninguém / A razão desta tal melodia / Encharcada de sorriso e pranto".
"Cantar é vestir-se com a voz que se tem", diz o sujeito indicando que, para além do que é cantado, há um indivíduo nu sangrando e sagrando a própria existência ao cantar: ao criar e envelhecer (solta no ar) a lembrança de uma alegria perdida.
No canto, o sujeito existe: se plasma, posto que, pela voz, ele sai para fora de si - "No canto / Vou jogando a minha vida pra você / Por isso, fecho os olhos pra não ver", diz o sujeito de "Cantar".
O timbre vocal de Teresa Cristina - tons baixos, voz descompromissada, andamento lento e cadenciado - figurativiza o sujeito que canta e se acomoda à vida: está impregnado de dor e prazer, pois ele/ela sabe que tristeza sem ressentimento é alegria.
Os versos "canto para amenizar / Grande dor que me traz / O sorriso de alguém / Se a minha escola querida / Cruzar a avenida" parecem sintetizar aquilo que aqui sugiro: cantar é equilibrar na voz a alegria e a tristeza, a lembrança e o gesto de existir no instante-já da canção. E isso só é possível porque há um indivíduo (humano) por trás de tudo: procurando no inferno o que não é inferno, como diria Calvino.
Penso a alegria de modo muito próximo a Clément Rosset, ou seja, a alegria não nega a tristeza, ao contrário, incorpora. Equilibrando-se dentro de nós, são elas que nos mantem em estado febril diante da vida, sem tempo de temer a morte. Cantar, alegrar-se é arriscar, é entregar-se ao que virá, lúcido pela lembrança dos acúmulos do tempo que não pára.
Nós brasileiros temos um movimento nato ao encontro da alegria. E somos cobrados por isso o tempo todo. E claro que há uma indústria do entretenimento tirando proveito disso. Mas ser alegre, e nisso o brasileiro, na prática (sempre pensando com o corpo todo), faz muito bem, é ter lucidez de sua posição (individual) e nem por isso deixar de cantar. Daí a nossa melancolia (melosa melodia) tropical.
Talvez o jeito de corpo do malandro seja a melhor metáfora para ilustrar isso. Ser alegre não é ser alienado e raso. Nem tão pouco, ser triste é sinônimo de ser casmurro e profundo. Para além das patologias que tais sintomas podem indiciar, é preciso atentar-se à unicidade de cada voz e sua legitimitidade de ser.
Claro, isso é um viver por um fio: ter lucidez diante do absurdo da existência, tanto pode levar à tristeza profunda, quanto a alegria romântica e boba. Além das subcategorias, talvez mais nefastas ao indivíduo, como a má interpretação do que é ser cool.
A voz de Teresa Cristina - meio Nelson Cavaquinho, meio Paulinho da Viola, meio canto falado, meio samba-canção - cantando "Cantar" é mirada no espelho da memória de alguém que vivencia, experimenta o sabor do gesto de viver. E isso dói, mas não de tristeza, no sentido negativo, mas da sensação de estar vivo, arranhando o real: uma dor gostosa, mansa, alegre.
***
Cantar
(Teresa Cristina)
Cantar
Desnudar-se diante da vida
Cantar é vestir-se com a voz que se tem
Achar o tom da alegria perdida
E não ter que explicar pra ninguém
A razão desta tal melodia
Encharcada de sorriso e pranto
No cantar a lembrança se cria
E envelhece de repente
Vai solta no ar
Por isso eu canto
Canto para amenizar
Grande dor que me traz
O sorriso de alguém
Se a minha escola querida
Cruzar a avenida
Eu canto também
No canto
Vou jogando a minha vida pra você
Por isso, fecho os olhos pra não ver
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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