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terça-feira, 6 de outubro de 2015

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*


Na coluna de 02/10/2011 (jornal O globo), Caetano Veloso anota: "De que vale a vida se não respondemos ao escândalo que é existirmos com gestos igualmente extremos como a fé em Deus, a dedicação obsessiva a uma pessoa, uma arte, uma causa? (...) A vida vale a sua evidência animal".

"Dying is easy, it's living that scares me to death" ("Morrer é fácil, é viver o que me assusta até a morte"), diria o sujeito da canção "Cold", de Annie Lennox. Sobre a nossa alegria terrível, para suportar o pensamento de Si, da sobrevivência no inferno e céu de todo dia, transformamos o tédio em poesia, inventamos verdades. Forjamo-nos em homens-bomba de estrelas: cantores.

Afinal, "não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus" (Mateus: 4,4). E como Deus usa os homens para ser e estar nos homens viventes na terra, é pela boca do outro que nos situamos (encontramos lugar) no mundo. Aqui ressoa algo de materno: da mãe ideal que alimenta o filho com leite e palavra.

Porém, não há metáforas nem misticismos nesta leitura, posto que toda voz vem de uma pessoa viva: boca, garganta, úvula, saliva. A voz imprime unicidade a pessoa. Há aqui uma constatação da voz e sua autoficcionalização - aquilo que nos resgata do abandono profundo.

Nesse movimento, a canção popular é o diário dos detentos que somos. Pensamos sobre nós através da voz nas canções. E entre mentiras sinceras e falsas verdades nos mantemos atentos e fortes. Não à toa o sujeito da canção "Bogotá", de Criolo, diz: "Se você quer amor chegue aqui / se você quer esquecer a dor venha pra cá / pois a ilusão é doce como mel / e cada um sabe o preço do papel que tem".

É desse convite irresistível à canção que trata o sujeito de "Verdade, uma ilusão", de Carlinhos Brown, Marisa Monte e Arnaldo Antunes. Guardada no disco Diminuto (2010), essa canção tem um sujeito lúcido de sua função: "Eu posso te fazer feliz / Feliz me sentir também / Eu posso te fazer tão bem / Eu sei que isso eu faço bem", diz.

Sujeito cancional, portanto, uma ilusão (ficção), ele sabe tanto o preço do papel que tem, quanto a necessidade urgente do ouvinte em ser cantado, mimado, ninado. Ele fala de si - constituindo "Verdade, uma ilusão" em uma metacanção (canção que pensa teoricamente a própria canção) - para se aproximar do outro. E faz isso exibindo um Carlinhos Brown além do orientador do carnaval. O corpo aqui balança junto com a palavra (semântica) cantada.

Toda vez que uma canção se confessa - "Eu posso te fazer canções / O amor soa em minha voz / Eu posso te fazer sorrir" - ela se inscreve ficcionalmente, revelando a ficção em nós (ouvintes: humanos na terra): a verdade ilusória, a ilusão verdadeira. Pois no fundo "Ninguém precisa decidir / Verdade / Uma ilusão / Digo de coração / Verdade / Seu nome é mentira". Como anota e canta o sujeito da canção.

A verdade é sempre o que está sendo dito e ouvido no instante-já. Ela é o canto paralelo - e mantenedor de - ao escândalo de nossa existência. Aqui a canção se dedica obsessivamente a arte de cantar. Verdades vindas do coração e travestidas na voz de alguém, as canções nos alimentam de palavras, seguram nossa cintura e não nos deixam cair: "Eu posso te fazer ouvir / Milhões de sinos ao redor / Eu posso te fazer canções", canta o sujeito da canção.

É no meio da ponte que vai do real ao ficcional, que vai de mim para o outro, onde podemos ouvir ressoar aquilo que somos, ou podemos ser. A língua que a canção canta é a mesma língua que lhe canta. É assim que "o amor soa em minha voz". O vocálico precede e excede o semântico.

As palavras cantadas guardam sentido, embora não guardem significação. A palavra não nos traduz, é insuficiente para tanto. É na voz de alguém cantando as palavras que nos forjamos: que somos e estamos. E assim fazemos a vida valer a pena. E a ilusão cria a verdade: a "verdade-mais-erro". E o horror de se perceber vivo retorna, reinstala-se. E as canções (de novo) surgem como repostas (cíclicas) ao escândalo. Eis os tais "volteios da dança do espírito" apontados por Caetano. As nossas contrapartidas à vida.


***

Verdade, uma ilusão
(Carlinhos Brown / Marisa Monte / Arnaldo Antunes)


Eu posso te fazer feliz
Feliz me sentir também
Eu posso te fazer tão bem
Eu sei que isso eu faço bem
Roubar-te um beijo num salão
Girar sem perder o chão
Não vou deixar você cair

Cintura
Leve a minha mão
Verdade
Uma ilusão
Vinda do coração
Verdade
Seu nome é mentira

Eu posso te fazer ouvir
Milhões de sinos ao redor
Eu posso te fazer canções
O amor soa em minha voz
Eu posso te fazer sorrir
Meus olhos brilham para ti
E os pés já sabem aonde ir
Ninguém precisa decidir
Verdade
Uma ilusão
Digo de coração
Verdade
Seu nome é mentira


* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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