Por Luiz Américo Lisboa Junior
Elizete Sobe o Morro (1965)
Houve um tempo não muito distante em que o Brasil vivia um momento de ambigüidade, era a época das contradições, o mundo girava em torno da era de aquário, as mudanças estavam por toda a parte, caminhávamos para uma redescoberta de valores rumo a uma identificação conceitual e a um modo livre de ver e ouvir tudo o que estava em nossa volta pois buscava-se a todo instante a revolução/transformação daquilo que era tradicional, deveria-se, portanto, modernizar os pensamentos, a maneira de agir e demonstrar essas mudanças de diversas formas, sendo que foi através da arte que ela se tornou visível e duradoura. Era um mundo de sonhos? Talvez! Porém muitos ainda estavam irremediavelmente ligados as suas tradições, não queriam que elas desaparecessem, mas sabiam também da necessidade de adequá-las aos novos tempos.
Brasil, inicio de 1965, incertezas, frustrações, progresso, música popular, eis ai a nossa contradição, ou o nosso crescimento/retrocesso, saudades de alguns, raiva e desprezo por outros, sentimentos que se cruzam, qual deles o mais verdadeiro? Se o ideal ainda não existe, pelo menos fiquemos na relatividade, esqueçamos as amarguras e lembremos dos sons suaves de um violão, um cavaquinho, um coro bem afinado, uma frase inesquecível, uma voz divina, essa é a melhor parte, pois mesmo que bombas de gás lacrimogêneo estourem os nossos ouvidos e nos causem angustia e desespero, elas em tempo algum irão superar a saudade de um verso perfeito e uma melodia inesquecível, é a constatação dos contrários e que embora não queiramos resulta sempre numa afirmação, num sentimento inequívoco, dito de maneiras diferentes mas que pode ser resumido como um, ah! que saudade daqueles tempos, o mundo já não é o mesmo! Eu era feliz e não sabia! E assim sem se querer a melancolia chega, a musica se aproxima e cada vez mais se faz presente, obscurecendo todas as bombas, é a arte vibrando com sua vitória inquestionável diante dos erros humanos.
Foi então que nos dias 31 de maio, 7, 14 e 15 de junho daquele ano de 1965 uma das maiores cantoras brasileiras, Elizete Cardoso entrou nos estúdios da Copacabana Discos no Rio de Janeiro e gravou um LP em que sintetizava o tradicional modernizando-o com categoria e demonstrando que se podia manter uma raiz cultural numa época de grandes transformações na estética musical . Ela não se intimidou e fez como ninguém havia feito ainda dando um novo rumo ao samba realizando um trabalho atemporal e eterno.
Depois de ter assistido ao show Rosa de Ouro produzido por Hermínio Belo de Carvalho, resolveu que deveria gravar um disco com o repertório do espetáculo e também com músicas dos compositores que dele fizeram parte. E assim surgiu um disco fenomenal intitulado de Elizete Sobe o Morro onde aparecem pela vez composições de um rapaz chamado Paulo César Faria que o Brasil iria respeitar com o nome de Paulinho da Viola e que participaria ainda com seu instrumento de todas as faixas do LP, outro bamba Nelson Cavaquinho estreava também em disco como cantor e violonista e ao seu lado estavam os calouros de estúdio, Nelson Sargento tocando violão, Jair Costa, cavaquinho e Elton Medeiros na caixa de fósforos. Entre os compositores figuravam com destaque Cartola, Candeia e Zé Kéti.
O estúdio da Copacabana transformou-se numa verdadeira roda de samba e sem o saber perenizou um dos momentos mágicos da música popular brasileira reunindo artistas de um talento excepcional e revelando outros na mesma proporção. Elizete Cardoso num dos grandes momentos de sua carreira reafirmava a cada faixa o porque de ser considerada como Divina, sua estrela brilhou intensamente naqueles dias de gravação e contagiou a todos que estavam ao seu lado e que brilharam juntos. Unindo o tradicional e o moderno o disco traz na capa um trabalho do pintor Walter Wendhausen numa colagem perfeita que simboliza a imagem estilizada de um barraco e seus componentes básicos decorativos. Uma bela obra de arte e renovadora como conceito gráfico das capas de nossos LPs.
Elizete Sobe o Morro é uma das obras máximas de nossa discografia e representa a maturidade de nosso samba de raiz numa época em que o repique de um tamborim, a batida de um violão, o som de uma cuíca, de um agogô e de um pandeiro, aliados a mais pura poesia e uma voz maravilhosa fizessem o contraponto das contradições permitindo que o belo sobressaísse e se perenizasse na história conseguindo o que parecia impossível, que tivéssemos saudades de um tempo difícil.
Músicas:
01 - Vou partir
(Nelson Cavaquinho/Jair Costa)
02 - Malvadeza durão
(Zé Kéti)
03 - Folhas no ar
(Elton Medeiros e Hermínio Belo de Carvalho)
04 - Pecadora
(Jair Costa/Joãozinho)
05 - Rosa de ouro
(Hermínio Belo de Carvalho, Elton Medeiros e Paulinho da Viola)
06 - A flor e o espinho
(Nelson Cavaquinho, Alcides Caminha e Guilherme de Brito)
07 - Minhas madrugadas
(Paulinho da Viola e Candeia)
08 - Água no rio
(Noel Rosa de Oliveira e Anescar Pereira Filho)
09 - Sim
(Cartola e Oswaldo Martins)
10 - Meu viver
(Elton Medeiros, Jair Costa e Kleber Santos)
11 - Ele deixou
(Nelson Matos e Jair Costa)
12 - Luz negra
(Nelson Cavaquinho e Amâncio Cardoso)
Ficha Técnica
Produção e direção musical: Moacyr Silva
Técnico de som: Paulo Roberto do Nascimento
Capa: Walter Wendhausen
Músicos:
Elton Medeiros: Prato e faca e caixa de fósforos
Bucy Moreira, Arnô Canegal e Anescar: Tamborim
Geraldo: Pandeiro
Jair Alves: Caixa
Aleio: Afoxé
Oscar: Agogô
Raul Marques: Surdo
Jair: Cavaquinho
Paulinho da Viola, Nelson Sargento e Jose Soares de Freitas: Violão
Othoniel, Valéria, Cosme, Noemi, Jair, Vera e Glória: Coro
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