"Quanto mais o tempo passa, mais me afasto, mais vejo outras possibilidades de ser que não são propriamente possibilidades femininas, mas possibilidades limpas, como, por exemplo, intrigar-me neuroticamente com o canto dos bem-te-vis, que não é nada, nem masculino nem feminino, é limpo", anota o narrador do livro Rato, de Luís Capucho.
Parece ser nesse "canto limpo", puro, assemântico que se baseia a tradição filosófica de matriz grega, a fim de definir o lugar da voz em nossas vidas: o lugar onde o semântico (masculino) se perde na sedução vocálica (feminina) e, portanto, deve ser evitado.
Porém, assim como também sugere o narrador de Rato - "mais vejo outras possibilidades de ser que não são propriamente possibilidades femininas" -, tal filosofia esquece que todo canto pressupõe uma audição e que a voz sempre vence. Ora, quem foi que disse que o bem-te-vi diz "bem-te-vi" enquanto canta senão a interpretação humana? Ou melhor, nossa tendência a dar sentido a tudo que nos cerca - eliminando os riscos do desconhecido?
A ideia de um canto limpo (assexuado) tenta recuperar o paraíso materno: o casulo infinitamente abundante que nos abrigou por um tempo e para o qual parecemos estar sempre querendo retornar. O canto do bem-te-vi, ouvido como uma representação de um dos sons da natureza, recupera esse canto ideal: inatingível. Mas é sempre um som vazio, preenchido de sentidos pela lógica de quem escuta. Ou melhor, a voz não comunica nada, a não ser a própria comunicação.
O segredo da canção está no fato de que cada voz é única. É na voz que se encontra a unicidade. "Eu minto, mas minha voz não mente", diria o sujeito de "Drama", de Caetano Veloso. É assim que uma "mesma" canção (mediatizada, massiva) afeta cada ouvinte por lugares diferentes. É assim também que uma "mesma" canção, ao ser cantada por outra voz, ganha novos sons.
"A voz não é apenas som, mas é sempre a voz de alguém que vibra em sintonia com os sons naturais e artificiais do mundo em que vive", registra Adriana Cavarero no livroVozes plurais. O canto é o nada, que é tudo, poderia dizer o narrador de Rato, a respeito dos bem-te-vis que lhe perturbam o pensamento.
O canto de um pássaro e o canto humano não são, obviamente, a mesma coisa. A voz os distingue. A voz humana carrega a palavra que, por sua vez - phoné semantiké - carrega o humano. Jogando com tais categorias, o sujeito de "Musa Cabocla", de Gilberto Gil e Waly Salomão, por exemplo, cria o efeito de presença de si a partir daquilo que fala.
Para tanto, o sujeito (poeta, cancionista) evoca a musa cabocla, híbrida. Ouvintes comuns que somos, só temos acesso àquilo que ela fala através da mediação do sujeito (cancionista, poeta, cantor). Ele ouve e canta: é sereia que canta sentada na pedra a medrar o marinheiro. Classicamente um híbrido (mulher e animal), a sereia/musa aqui é cabocla.
Gal Costa é a musa cabocla do título da canção: aquela que inspira Gilberto Gil e Waly Salomão a compor um discurso a ser engendrado na voz da própria musa. Por trás da voz (ficcional) do sujeito da canção há a voz de uma pessoa de carne e osso: uma garganta.
Feitas refrão, as afirmativas que serpenteiam a letra - "Sou pau de resposta, jibóia sou eu, canela / Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela" - reforçam o desenho (visão) da "Mãe matriz da fogosa palavra cantada / Geratriz da canção popular desvairada / Nota mágica no tom mais alto, afinada" que Gal Costa (voz) encarna.
A finalidade lúdica (poética) de "Musa cabocla" (Minha voz minha vida, 1982) é restaurar o sentido da significação. Dito de outro modo, o sujeito (sereia), através da proliferação de significantes e comparações, deixa a sereia cantar: engendra um canto sirênico em que "quem" fala é tão importante quanto aquilo que é "falado". Um empenho feliz do primado da voz sobre a palavra.
"Mãe matriz da fogosa palavra cantada / Geratriz da canção popular desvairada / Nota mágica no tom mais alto, afinada". Tais palavras guardam o medo que certa filosofia tem com relação à canção, à voz. Interpreta-se que a sereia é causa da perda da razão do indivíduo. Daí o emudecimento progressivo do logos. Esquecendo-se, deste modo, da unicidade inimitável de cada voz e de que é possível pensar com os pulmões.
Sereia, diferente do bem-te-vi, do sabiá, da cigarra, o sujeito de "Musa cabocla" canta palavras: palavras que ele mesmo (musa que também é) engendra no poeta. Travestindo-se na canção, o sujeito (monstro canoro) se presentifica. "Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela", diz.
***
Musa cabocla
(Gilberto Gil / Waly Salomão)
Uirapuru canta no seio da mata
Papagaio nenhum solta um pio
Sereia canta sentada na pedra
Marinheiro tonto medra pelo mar
Sou pau de resposta, gibóia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela
Coração pipoca na chapa do braseiro
Sou baunilha, sou lenha que queima
Que queima na porta do formigueiro
E ouriça o pelo do tamanduá
Mãe matriz da fogosa palavra cantada
Geratriz da canção popular desvairada
Nota mágica no tom mais alto, afinada
Sou pau de resposta, jibóia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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