Com cerca de duas décadas de estrada, o Z'África Brasil vem apresentando ao seu público o álbum "Ritual I – A vida segundo os elementos do Hip Hop", disco este que apresenta elementos da cultura dos povos akan.
Por Bruno Negromonte
O Z’África Brasil destaca-se no cenário do hip-hop nacional como um dos mais expressivos nomes do gênero. São duas décadas divulgando letras que estão sempre buscando trazer não apenas os mais distintos temas inerentes ao ritmo, mas letras que destacam-se pelo desejo de despertar a reflexão e a conscientização naqueles que as ouvem. Soma-se a este diferencial uma confluência de ritmos que podem ser conferidos em cinco álbuns ao longo destes vinte anos. Tendo em sua formação atual as presenças de MCs Gaspar, Pitchô, Funk Buia e DJ Tano, o Z’África Brasil (A letra “Z” na assinatura do nome do grupo simboliza Zumbi dos Palmares, líder e ícone da resistência negra no Brasil) atualmente vem divulgando o álbum “Ritual I – A Vida Segundo os Elementos do Hip-hop” como já foi possível conferir aqui mesmo em nosso espaço a partir da matéria "Z'ÁFRICA BRASIL COMPLETA DUAS DÉCADAS". Hoje o quarteto volta ao nosso espaço para uma entrevista exclusiva onde aborda os mais distintos temas, dentre eles a cena Hip-Hop em São Paulo, o projeto acerca da trilogia Ritual e a atuação social do grupo nas periferias como pode ser conferida agora logo abaixo. Excelente leitura a todos!
Este mais recente trabalho trata-se da celebração das duas décadas de existência do Z'África Brasil. Vocês podem nos contar como se deu o início do grupo e, a princípio, quais foram as maiores dificuldades enfrentadas pelo grupo?
Záfrica Brasil - O grupo começou em 1995, na região da Zona Sul da capital paulista, uma área de periferia, marcada por muitas carências, desigualdades e preconceitos. Esse ambiente, nosso meio, transformou-se na nossa principal fonte de inspiração para nossas músicas. A primeira formação do Z’África Brasil era de um quinteto, com Gaspar, ZuluZ'Africa, Fernadinho Beat Box, Pitchô e Bg da Gaita. Não tínhamos muita estrutura: algumas bases instrumentais e a batida do Beat Box. Depois chegou o Dj Kurts e, na sequência, o Dj Meio Kilo. A entrada do MC Funk Buia ocorreu em 1997. E o DJ Tano, em 2001, consolidou o atual desenho do quarteto, formado pelos três MCs: Gaspar, Funk Buia e Pitchô, ao lado do DJ. Os anos 90 foram muito bons, época de descoberta, e não tínhamos a facilidade atual de ter acesso às informações, que hoje chegam simultaneamente, por meio de vários canais e também pelo universo digital, com o boom da internet. O caminho até a gravação do primeiro trabalho foi muito difícil e envolveu um processo complicado. Faltava grana e as gravadoras dominavam a cena. Nossa trajetória foi construída de forma lateral ao mercado, com muito trabalho, criatividade, contando com o apoio e a amizade dos amigos e muito amor ao hip-hop. Continuamos independentes atualmente, mas o avanço tecnológico e a queda do preço dos equipamentos tornaram a produção de um disco mais acessível e suave. Hoje chegamos a ter um pequeno estúdio em casa, onde fazemos a pré-produção dos nossos próximos álbuns. No início da carreira, havia muitos grupos de Hip-hop, de Rap, todos buscando informação para poder, cada vez mais profissionalizar os seus trabalhos. Infelizmente poucos grupos se mantiveram firmes, mas depois de alcançarmos a maturidade musical nesses 20 anos de existência temos orgulho de nossa resistência e persistência no caminho, levando nossa cultura como estilo de vida e hoje dando continuidade aos trabalhos que a cultura Hip-hop nos proporciona.
Ciente da passagem de outros nomes que hoje já não fazem mais parte do grupo gostaria de saber: como vocês chegaram a atual formação?
ZB - Pode crer! Essa formação atual de quarteto persiste há uns 10 anos e, agora, temos a Banda Z’africanoZ como apoio para grandes shows. Gaspar e Pitchô permanecem desde a fundação do Z’África Brasil. O MC Funk Buia veio do samba.Já o DJ Tano vem das atividades das casas de Hip-hop em Diadema. Acredito que chegamos nessa formação naturalmente. Todos que passaram pelo o Z'África são Z'africanoZ. Não perdemos o contato e estamos sempre em sintonia. Todos com seus trabalhos artísticos encaminhados e quando nos encontramos é festa sempre: ZuluZ'africaZumbiVive!!!
A cena Hip-Hop em São Paulo sempre se destacou em relação a outros estados. Esse destaque vem desde a década de 1980 a partir de nomes como Thaide e Dj Hum. Ao que vocês acreditam ou atribuem tal afinidade entre a cidade e tal movimento?
ZB - Quando a cultura Hip-hop se destacou internacionalmente espalhou-se para várias partes do mundo e invadiu o Brasil também. Chegou com os bailes do original funk, com os Dj's. A partir daí, a informação foi chegando a geração foi mudando e, entendemos, cada vez mais, que esta cultura de rua, no nosso pais, chegou em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Brasilia... Mas foi em São Paulo que a nossa cultura Hip-hop ganhou notoriedade, com Nelson Triunfo e Funk Cia, King Nino Brown, na Rua 24 de maio. Depois, a São Bento, com Thaíde e Dj Hum, Mc Jack, Kl Jay, Back Spin Crew e outros grandes nomes do Hip-hop nacional. E tornou-se uma vitrine. O movimento explodia para todo o Brasil e muitos Hip-hoper's vinham de outros estados fazer conexão até os dias de hoje. O Hip-hop é de todos, independe se você está no Sul ou no Norte, Nordeste do País. Somos todos um só. Uma família. Cada um dando sua melhor contribuição para que a nossa cultura não acabe e continue crescendo cada vez mais.
Apesar da boa aceitação do público e da crítica, o primeiro trabalho fonográfico de vocês ocorreu em parceria com músicos italianos. Como se deu essa fusão de culturas e realidades tão distintas?
ZB - Sempre estivemos envolvidos com projetos sociais e atividades culturais, desenvolvendo e trabalhando os elementos do Hip-hop. Nessa época, a gente fazia oficinas no bairro Ipiranga, na capital paulista, na comunidade do Heliópolis. A entidade, que desenvolvia as atividades, tinha apoio de organizações italianas e surgiu a oportunidade do intercâmbio cultural, por meio do qual o grupo Z'África Brasil foi escolhido para representar a posse Conceitos de Rua e o Brasil. Ficamos um mês lá, fazendo atividades e shows com diversos músicos e também conectados com a cultura Hip-hop da Itália. E dessa parceria surgiu nosso primeiro cd coletânea, com participações de grupos históricos da cultura Hip- hop na Itália.
O gênero musical ao qual vocês abraçaram habitualmente traz em seu bojo letras bastante engajadas o que acaba tornando-as muitas vezes uma espécie de "grito dos excluídos" a partir de temas bastante polêmicos. Vocês acreditam que venha daí essa identificação de tal gênero musical com a periferia?
ZB - A música faz parte da nossa identidade, está no nosso DNA. Vivemos o universo do canto falado e da batida quebrada. Gostamos muito de Rap, Ragga, Break Beat, Eletro Funk, Original Funk, Regggae, Repente, Samba, Embolada, Drum'Bass, Crunk e o universo de Breaks e cants falados do mundo, que vai do Kuduro ao Grime. Nossas letras refletem o momento em que estamos e são fruto da realidade e do mundo de onde viemos, que é o extremo sul da zona sul da capital paulista, a periferia, nossas raízes. Nossas letras protestam, provocam, emocionam e fazem dançar. Não entendemos nossa arte só como entretenimento e, sim, uma música, uma ferramenta de transformação, acompanhando as mudanças dos tempos.
Quem substancia mais quem: A periferia (dando os diversos temas que vocês abordam no trabalho de vocês) ou são vocês ao trazendo com a arte um pouco do alento a um contexto historicamente tão arraigado de estigmas negativos?
ZB - A gente é o Hip-hop. Z’África é essência do Hip-hop, uma cultura que transforma o negativo em positivo. Os estigmas negativos são jogados para o nosso povo. O Hip-hop e a música rap são o equilíbrio, trazendo questionamento e conhecimento para a sociedade e para juventude. É uma música para fazer pensar; ritmo e poesia que retratam a realidade do povo; herança dos griots e da literatura de cordel.
Além dessa função social o trabalho de vocês com a música em si há também a atuação do Z'África Brasil em algumas comunidades com distintas oficinas corroborando não apenas para o incremento da arte mais principalmente para colaborar com a diminuição da violência. Vocês poderiam nos falar um pouco mais sobre essa atuação social do Z'África?
ZB - O Hip-hop é um gênero musical universal e um fenômeno de massa mundial. Sua influência tem um raio de ação tão amplo, que atinge todos os segmentos das sociedades. Não há fronteiras. Quanto aos trabalhos sociais, que desenvolvemos, sempre fizeram parte da nossa trajetória, o que implica em levar para nossa gente um pouco do nosso estilo de vida e do jeito que vemos e vivemos no mundo. Diminuir a violência é papel do Estado, do Governo Federal, porque a violência aplicada contra nossas comunidades e, na maioria das periferias do Brasil, vem da ausência, da omissão do poder público. A intenção dos governantes e dos militares não é defender o povo, o menos favorecido financeiramente, mas, sim, os bem-sucedidos e os ricos do nosso País infelizmente. A Polícia, quando vem na comunidade, cria um ambiente de terror. Os jovens assassinados diariamente nas periferias são vítimas da PM, de milícias, do esquadrão da morte, bancados por empresários e comerciantes. As armas, que estão nas comunidades, quem produziu? E as drogas nas quebradas, quem produz? De onde vem? O problema vem de cima e sempre acaba sobrando para quem não tem imunidade e capital. Nossas atividades culturais são para manter nossas tradições e levar os conhecimentos dos povos, com patrimônios imateriais, formas alternativas de educar nossos jovens, além da regra pré-estabelecida. Trabalhamos o universo da dança afro, canto coral, Hip-hop, percussão, saraus no projeto Afrobase, que é um Ponto de Cultura, localizado no bairro do Rio Pequeno, na zona oeste da capital paulista. Temos o Círculo Palmarino, braço de nossa militância no movimento negro organizado, cuja sede nacional fica no bairro Santo Eduardo, em Embu das Artes. Temos o Zumaluma, o Espaço Comunidade, a Rádio Tambor, Hip-hop Quilombola e Casa Z'África.
Vocês pretendem a partir do “Ritual I – A Vida Segundo os Elementos do Hip-hop”, dar o pontapé inicial de uma trilogia que traz como proposta a difusão da cultura ancestral dos povos Afro não é isso? Vocês poderiam nos falar de modo um pouco mais detalhado tal projeto?
ZB - Isso mesmo, uma trilogia. Trata-se de uma trilogia da cultura dos povos, partindo das tradições africanas e brasileira. Mas a proposta é cantar para todos sem distinção, fazer uma música universal. O álbum tem como objetivo refletir o ritual da vida, do modo de vida de ser hip- hop e construir a sua visão de mundo dentro destes vários mundos. O novo disco exibe o momento em que estamos e os próximos rituais já estão em processo de produção.
Apesar desta proposta inicial, o álbum permanece engajado de modo político e ideológico com aquilo que vocês acreditam. Qual o preço que vocês acreditam pagar por essa autenticidade neste contexto atual, onde a alienação da massa através de meios de entretenimentos como a música são usados cada vez de modo mais frequente?
ZB - Cada um tem sua verdade. Nossa música tem conteúdo e faz pensar. Acredito que em algum momento da vida de uma pessoa, independentemente do estilo, a música toque no coração das pessoas. Música é emoção, sentimento. Procuramos passar isso também. Os meios de comunicação e de entretenimento são diversos e música também é isso. Onde nosso trabalho poder chegar. É importante, só falta mais oportunidade para mostrar os trabalhos. Para nóis, tudo isso é nossa vida e, além das ideologias, é o que nos move, o que gostamos de fazer, com ou sem a indústria ao nosso lado.
Há mais algum projeto em vista para a comemoração dessas duas décadas de estrada do Z'África Brasil para este segundo semestre?
ZB - Sim. Virá uma mixtape do Dj Ttano, coletânea dos melhores sucessos de 20 anos e os outros discos da trilogia: Ritual 2
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