A voz é o berço das sereias. É na voz onde mora todo o mistério da sereia: suas inflexões, nuances, alturas, pausas. Se o que é dito afeta, o modo como se diz afeta muito mais. Ao produzir presença - calor humano - a voz da sereia, dizendo aquilo que mobiliza o indivíduo, arrebata, seduz, mata e dá vida.
É a voz do pastor Ernani o que toca a cindida Lavínia, no livro Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino. "Algo havia mudado dentro dela. E Lavínia queria mais. Queria outra dose da droga poderosa que a voz e as palavras daquele homem continham", anota o narrador.
Imersos no mar sonoro dos apelos cotidianos e íntimos, estamos expostos, porque carentes, às variadas sereias do mundo. Lavínia, pela voz de Ernani, "sem a ajuda de aditivos, estivera a salvo do peso do mundo durante horas, imune à música da outra que, sereia, tocava em seus ouvidos fazia dias", reforça o narrador.
Aquelas palavras, já tantas vezes ouvidas, em momentos distintos da vida, ditas por Ernani, produziu em Lavínia uma mirada no espelho: a descoberta inconsciente de filigranas escondidas dentro da mulher agora cantada e tocada por outras aberturas.
Um blend de concretude (de corporidade) e etéreo (de ilusão) assalta os sentidos do ouvinte das sereias. E é no lugar exato dessa mistura que o indivíduo se desdobre vivo: apto à costumeira inadequação da existência. É neste ponto que o indivíduo se reposiciona, se encaixa. Para, em instantes, quando a canção acaba, quando a voz silencia, tornar-se novamente perdido e carente de outra canção, de outra voz sirênica.
É nessa perspectiva que o sujeito da canção "Minha voz", de Déa Trancoso (Serendipity, 2011) trabalha. "Minha voz quando sai quer cantar / Minha voz sempre está / pronta pra festejar, florescer / dentro da melodia", diz o sujeito.
É a voz o que dá sentido - "ajusta harmonia" - àquilo que é dito, cantado. Mística ("é cordeira de Deus") e física ("no reinado do chão"), a voz, em sua performance, tem o ofício de personalizar a mensagem: estabelecer a ponte entre quem emite e quem ouve a canção.
Aqui, temos um sujeito pondo-se vulnerável ao revelar aquilo que lhe mantem suspenso no ar e, ao mesmo tempo, com os pés no "chão fecundo". Mas esse lirismo não é mera sensação individual. "Baiana luz do dia", a voz de Déa Trancoso, ao dizer tais palavras, emoldurada por um acompanhamento melódico suave e terno, participa das inquietações universais: coloca o ouvinte diante do espelho; exibe um saber do humano por dentro.
A voz do sujeito de "Minha voz" põe em cena algo do universal humano: a certeza incontida de que somos, na vida, uma produção ficcional - aparência tornada verdade integral - que se realiza no ato (auto)cancional. "Solidão sem luar", a voz do sujeito gera uma universalidade de conteúdo lírico urgente à identificação emissor/ouvinte.
Tornamo-nos, deste modo, amigos da sereia cuja voz sai do suporte eletrônico sonoro. Afinal, ela padece de incertezas semelhantes às nossas: indivíduos soltos sempre prontos para festejar e florescer na canção desassossegada que a vida entoa.
***
Minha voz
(Déa Trancoso)
Minha voz quando sai quer cantar
Minha voz sempre está
pronta pra festejar, florescer
dentro da melodia
Minha quando vem me aquecer
minha voz sobe ao sol
brilho agudo ilumina meu ser
há justa harmonia
É cordeira de Deus no reinado do som
vem abrindo encantaria
minha voz é um rio lá no meio do mar
silencia
Tem ofício de céu, minha voz
solidão secular
passarinho no ar, minha voz
arisca, fugidia
Tem ofício de luz no meu brêu
corda solta no mundo
meu tambor de raiz, chão fecundo
baiana luz do dia
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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