Domingo passado, assisti comovido ao velório e sepultamento da mãe de um grande amigo. Naqueles momentos eu vi tantas lágrimas derramadas e tanto sentimento brotando à flor da pele que, por dentro, eu também senti. Chora-se pela perda quando se deveria chorar pela saudade, mas humanamente se torna impossível fazermos a demarcação de quando termina uma e começa outra. Choramos quando sentimos que perdemos, esta é a verdade!
Pensando bem, acho que chorar por uma pessoa cuja vida foi uma eterna alegria, fica meio contraditório. A palavra eterna foi usada no mesmo sentido que o poeta Vinícius de Moraes a empregou: eterna enquanto durou. Vejo também a questão do esforço que deve ser feito, sobretudo por parentes, visando não derramar tantas lágrimas, a fim de que a pessoa que desencarnou não fique presa a laços terrenos e siga livre a sua caminhada em direção de outra casa do Pai. Eu não sou favorável ao choro, mas acho-o inevitável. Por mais que nos preparemos espiritualmente para o desenlace, este nos surpreende e supera naquilo que ainda temos de pontos fracos.
Candeia, o grande sambista da Portela que faleceu em 1978, aos 43 anos, era um compositor genial. Por volta do final do ano de 1975, o jornalista e escritor Juarez Barroso, andava meio perdido na vida, chegou perto dele (que já vivia paralítico e usando cadeira de rodas) e lhe disse que tinha um tema para ele compor um samba: “preciso me encontrar”. A inspiração do Criador para esta canção foi uma coisa tão sublime que, ouvindo-se sua letra, você tem a impressão de que ela foi feita muito mais para compreender a vida pós-morte do que para atender alguém que quer encontrar seu rumo e seu prumo neste vasto mundo. A música se tornou um presente de Candeia para que Cartola a incluísse no seu segundo LP, gravado em 1976, quando o compositor da Mangueira tinha 68 anos.
Em 1977, quando ouvi este samba pela primeira vez, fiquei completamente pasmo com tanta sabedoria dentro de uma música popular, feita por um homem simples, do povo, chamado Candeia, que até hoje admiro. Pus até um apelido nela, de uns anos para cá, “canção do desapego”, uma vez que serve de autoajuda para entendermos melhor o significado da morte.
Ninguém previa que esta música realmente se tornasse emblemática nessa questão da passagem de uma vida para outra: o jornalista, escritor e excelente crítico musical do Jornal do Brasil Juarez Barroso, que fez o pedido do samba a Candeia, foi o produtor do segundo disco de Cartola, mas não teve tempo de curtir seu grande trabalho porque faleceu em 18/08/1976, aos 41 anos, em decorrência de um aneurisma na aorta, um mês e poucos dias antes do lançamento da joia que produziu. Assim, a canção de 1976 se transformou num enigma espiritual. Teria tido ele alguma premonição? Além disso, o autor da música também se foi dois anos depois. Ela embalou a despedida dos dois.
Obrigado, Cartola, por você nos ter dado esse eterno presente: um disco que eu considero um dos melhores da MPB de todos os tempos.
Obrigado, Candeia, por você nos ter ensinado algo tão importante sobre a vida, já que a morte também faz parte dela.
Obrigado, Dona Berta Caldas, por sua alegria de viver, que contagiava até quem teve raras oportunidades de lhe ser próximo. Que Deus dê o consolo espiritual a todos seus familiares e suas amigas andorinhas.
Ouçamos Cartola, este monstro sagrado da música brasileira. Tenho certeza de que Deus adora um bom samba!
E não poderia encerrar esta crônica sem dizer que, ao contrário do que muitos pensam, a morte também tem poesia, pois não me desmente o saudoso poeta Augusto dos Anjos:
“Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!”
Em seguida, ouviremos o mesmo samba de Candeia, gravado em DVD, nesta interpretação fantástica de Zeca Pagodinho, Marisa Monte, Yamandú Costa e Hamilton de Holanda.
Preciso Me Encontrar (Antônio Candeia)
Deixe-me ir, preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir pra não chorar
Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Quando eu me encontrar
Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer, quero viver
Deixe-me ir, preciso andar…
Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer, quero viver
Deixe-me ir, preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir pra não chorar
Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer, quero viver
Deixe-me ir, preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir pra não chorar
Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Quando eu me encontrar
Se alguém por mim perguntar…
Fazia tempo que um texto não me comovia tanto, parabéns ao autor que desconheço: desdo começo você me prendeu.
ResponderExcluirnossa...digo o mesmo.
ResponderExcluirobrigado.
Um texto que realmente nos dá a compreensão dessa poesia e nos faz refletir sobre essa passagem rápida que é a vida. Parabéns!
ResponderExcluirUma canção dada à meditação, à reflexão. Ela atinge a alma em cheio. Musicalmente a gravação do Cartola é uma autêntica obra de arte: Sua beleza lírica, as harmonias e a interpretação deste outro gênio dão peso a uma letra por que por si só já se constituiu um dos mais belos poemas da Língua Portuguesa. Salve Candeia e Cartola! A vida segue. Ricardo/RS
ResponderExcluirEssa música mexe muito comigo! Emociono-me, toda vez que a ouço. Depois que fiquei viúvo, vivo tentando me encontrar. Fortíssima a letra dessa música, que tem, também, belíssima melodia!
ResponderExcluirEssa música mexe muito comigo! Emociono-me, toda vez que a ouço. Depois que fiquei viúvo, vivo tentando me encontrar. Fortíssima a letra dessa música, que tem, também, belíssima melodia!
ResponderExcluirObrigada por compartilhar essa estória tao comovente quanto a essa linda canção.
ResponderExcluirPara quem gosta de boa música, essa é uma obra prima, porque retrata as angústias do ser ,como a passagem espiritual para um outro plano
ResponderExcluirMaravilhosa canção, pérola da MPB.
ResponderExcluirTexto excepcional! Obrigado!
ResponderExcluirParabéns pelo otimo texto! Estou escrevendo uma música inspirada nesta composição de Candeia e suas palavras me deram uma outra perspectiva sobre essa música, obrigada!!!
ResponderExcluirMaravilha da música MPB, desconhecia essa pérola, a história me emocionou.
ResponderExcluirExcelente texto. Sensível e amável com a poesia de nossos poetas. Parabéns 👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾
ResponderExcluirParabéns, texto excepcional, a altura intelectual de Cadeia e Cartola! Salve…Salve!
ResponderExcluirObs: “Divino Cartola” é a minha modesta homenagem, a esse gigante da MPB.
Ouvindo Cartola deparei-me com essa .crônica maravilhosa!!!!Obrigada!!!
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