As metacanções – as canções que se autodevoram: que cantam a si mesmas – pressupõem um ouvinte com um conhecimento prévio a respeito das questões que elas abordam, sob pena de não entendimento do trabalho estético. O ouvinte pode até curtir, mas não compreenderá as intenções da peça cancional.
Dito de outro modo, ao incorporar citações verbais e ou melódicas de outras canções, as metacanções exigem do ouvinte o acionamento de saberes e, portanto, estimulam um exercício intelectual peculiar: trazem à luz os preconceitos forjados na construção individual do ouvinte para coloca-los em dúvida; forçam a manutenção da subjetividade: da distinção do indivíduo no mundo.
As metacanções lidam com tal artifício das mais diversas formas: seja pela citação direta de um verso, seja modificando (dando novo sentido) a determinado trecho de outra canção, seja recuperando linhas melódicas, seja no gesto vocal do intérprete, etc.
Mas há um processo bem mais sutil: quando uma canção cita algo do mundo real, quando ela amolece os significantes desse mundo, interfere nas imagens pré-organizadas na mente do ouvinte e monta um novo olhar para aquele mundo agora desconhecido. Tudo isso sem perder de vista o primeiro mundo, a fim de que o ouvinte possa estabelecer as relações que assemelham e distinguem os dois.
O exercício não é fácil: dá um nó na orelha - exige o empenho do cancionista, que trabalha com a tradição a fim de recicla-la, e do ouvinte, que precisa suspender a tradição para entender o gesto do cancionista. Kleber Gomes, o Criolo Doido, ou simplesmente Criolo, dá ao sujeito da canção "Sucrilhos" tal tarefa.
"Sucrilhos" (Nó na orelha, 2011), pela própria imagem que o título oferece, lida com aquelas infiltrações do cotidiano que, já devidamente assimiladas, não se deixam questionar. Aqui, leves e com seus corantes artificiais, os sucrilhos querem nos alimentar.
Com alma rap, mas atravessada por diversas sonoridades tropicais, "Sucrilhos" não cai no rancor esterilizante: a canção alcança, pelo trabalho de bordar, colar várias referências do universo comum dos ouvintes - "querer tapar o sol com a peneira é feio demais", "acostumado com sucrilhos no prato, morango só é bom com a preta de lado" -, um nível de compreensão para além da denúncia. Aqui a canção que cantar.
Ao seu modo, o sujeito dá sentido às várias vozes que compõem a cidade e, de viés, constrói uma canção polifônica, um canto paralelo aos cantos (vozes) que ele ouve. Ele percebe que a caoticidade, a polifonia, a mistura sonora são elementos que fazem a cidade ser cidade e investe nisso, sem deixar de apresentar sua ideologia: "Eu tenho orgulho da minha cor / do meu cabelo e do meu nariz / sou assim, sou feliz / índio, caboclo, cafuzu, criolo / sou brasileiro", diz.
Mas quero destacar o punctum metacancional de "Sucrilhos". Ele se revela quando o sujeito da canção diz: "Cartola virá que eu vi, tão lindo forte e belo como Muhammad Ali". Este verso interfere na forma da canção "Índio" de Caetano Veloso - "Um dia (...) Virá / Impávido que nem Muhammad Ali - e cria um novo Cartola, com uma outra intensidade cultural: messias forte e sábio que derá ao rap a levada sambística reveladora e definidora de alegrias possíveis. O Cartola futuro fotografado aqui nos provoca o desejo da materialidade.
Chamando à cena rappers, djs, sambistas, jazzistas, atletas, artistas plásticos, o sujeito de "Sucrilhos" conecta os mundos que sustentam seu mundo. Ao final, inserindo o próprio cantor, numa afirmação da vida típica do rap, o sujeito-indivíduo dispara e coroa: "Criolo Doido não é guarapa / a ideia é rápida mais soma".
Borrando a fronteira entre o sujeito cancional (a voz da canção) e o indivíduo social (a voz por trás da voz da canção), Criolo sublinha que "Di Cavalcanti, Oiticica, Frida Kahlo tem o mesmo valor que a benzedeira do bairro". Tudo soma, tudo lhe atravessa e é por ele atravessado (ele faz o povo cantar com emoção: dá sentido à vida) enquanto faz a própria travessia.
***
Sucrilhos
(Criolo)
Calçada pra favela, avenida pra carro,
céu pra avião e pro morro descaso,
cientista social, casas Bahia e tragédia,
gostar de favelado mais que Nutella
quanto mais ópio você vai querer,
uns prefere morrer ao ver o preto vencer,
é papel alumínio todo amassado
esquenta não mãe se é cabeça de alho,
cartola vira que eu vi, tão lindo forte e belo como Muhammad Ali,
canta rap nunca foi pra homem fraco saber a hora de parar é pra homem sabio,
rico quer levar com nois cê que sabe,
quero ver paga de loco lá em Abu Dhabi.
Eu sou nota 5 e sem provoca alarde,
nota 10 é Dina Di, dj Primo e sabotage.
pode colar mais sem arrastar,
se arrastar favela vai cobrar,
acostumado com sucrilhos no prato,
morango só é bom com a preta de lado.
O planeta jaz e a trombeta do satanás,
Usain Bolt se não correr fica pra traz,
querer tapar o sol com a peneira é feio demais,
e Cocaína desgraça a vida de um bom rapaz,
Trilha Sonora do Gueto Rappin Hood e Facção,
fazem o povo cantar com emoção,
Zona Sul haja coração,
dez mil pessoas numa favela na quermesse do Campão
Di Cavalcanti, Oiticica, Frida Kahlo
tem o mesmo valor que a benzedeira do bairro,
disse que não ali o recém formado entende,
vou espera você fica doente,
canta rap nunca foi pra homem fraco,
saber a hora de parar é pra homem sábio,
vacilo no Jeb é Fio é lona,
Criolo Doido não é guarapa
a ideia é rápida mais soma.
pode colar mais sem arrastar,
se arrastar favela vai cobrar
acostumado com sucrilhos no prato
morango só é bom com a preta de lado
(Eu tenho orgulho da minha cor
do meu cabelo e do meu nariz
sou assim, sou feliz
índio, caboclo, cafuzu, criolo
sou brasileiro)
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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