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terça-feira, 23 de junho de 2015

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




Por que cantar os clássicos? Sempre que me deparo com a regravação de uma canção canonizada - devidamente guardada na memória da história da canção e no afeto dos ouvintes - faço-me essa pergunta.

Será porque "tudo só se acha no passado", como Tom Zé afirma a cerca altura do filme Palavra encantada? Mas "o novo sempre vem", como diz o sujeito de "Como nossos pais", de Belchior. Salvo engano, acredito que o segredo está na união destas duas pontas da vida. O fato é que para o bem e para o mal há um vazio profundo na subjetividade do indivíduo latino-americano e isso se reflete na arte: no canto do povo deste lugar.

Cantar a vida é necessidade básica do indivíduo latino-americano. E ser um cantor aqui é ser antropófago: consciente de ser um devorador de canções. A musa latino-americana é híbrida e o cancionista atento a isso equilibra e canta “de um lado este carnaval / do outro a fome total”.

Ou seja, para que uma regravação obtenha relevância é preciso que ela ilumine lugares ainda não tocados pela própria canção; forje o efeito especial do ineditismo; promova, pelo empenho do cancionista, sensações novas; e imponha uma releitura do conhecimento: crie novidades - o velho-novo, de novo, em diferença.

Dito isso, a versão que Otto (trilha sonora da telenovela Cordel Encantado, 2011) oferece para "Carcará", de João do Vale e José Cândido, é metacanção. Egresso da cena Mangue beat, e já detentor de uma assinatura cancional própria, Otto sabe que o cancionista latino-americano é carcará: pega, mata e come canções para devolver à cultura - repor na linha evolutiva - uma canção que nunca termina de dizer algo novo.

Ao mesmo tempo em que emula versões anteriores, Otto se posiciona como parceiro criador e criativo de "Carcará". Clássico na voz da médium das sereias Maria Bethânia, com Otto "Cárcara" ganha áres de peleja: trilha sonora das emboscadas do cangaço, da movimentação do indivíduo nordestino, brasileiro.

A "Carcará" de Otto plasma uma barraca de cordéis - a métrica da letra e o arranjo ajudam isso - de alguma feira do interior na parede da memória do ouvinte: gesto vocal e melodia estão a serviço da manutenção de uma mitologia nordestina, latino-americana, quiçá, universal: o eterno retorno, em diferença. "O sertão aceita todos os nomes", diz o Riobaldo de Grande sertão: veredas, para mais adiante afirmar que o sertão "está movimentante todo-tempo".

Se o sujeito da canção não está no sertão - o "lá" indica isso -, e usa elementos urbanos - "avoa que nem avião" - para conseguir comunicação com seu interlocutor distante das realidades do lugar, Otto, sem rancor esterilizante, mergulha na tradição, remexe significantes e oferece uma nova canção: sertaneja, rosiana, misturada, nada plafetária, menos síntese épico-dramática e mais fragmento de subjetividade.

Eis a diferença e a relevância das duas versões: se a versão clássica de Bethânia - necessariamente seca, ferina e viril - interferia na doída repressão do contexto histórico, a versão de Otto festeja o hibridismo da cultura local: onde o "dentro" (autêntico) e o "fora" (ameaçador) se misturam; onde o indivíduo se mira e se movimenta.

Otto mantém a prosódia sintomática - as discordâncias verbais e nominais, por exemplo - do sujeito de "Carcará", que não teve acesso às normas cultas da Língua Portuguesa, questionando preconceitos linguísticos - estranhos à uma cultura tão diversa quanto a nossa - e reposicionando, para novos e antigos ouvintes, a beleza que surge da amizade entre a cultura popular (oral, folclórica) e a cultura mediatizada.

Parece óbvio, mas não custa lembrar que o sujeito de "Carcará" não fala errado, ele fala como sabe falar, como seus irmãos - com os recursos que sua condição social lhe permitiu para compor seu repertório conversacional. E afinal, como Haroldo de Campos anotou em Galáxias: "O povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia".

Cancionista-carcará, Otto, vendo a roça queimada, a tradição azeitada, canta "Carcará": relê o clássico, sustenta mitos rodando-os no mundo - promovendo invernada. Eis porque cantar (regravar, reler) uma canção já acomodada no espaço clássico e canônico: para mobilizar a tradição - uma contribuição tipicamente latino-americana para o pensamento do humano: o jeito de corpo carcará.


***

Carcará
(João do Vale / José Cândido)

Carcará lá no sertão
É um bicho que avoa que nem avião
É um pássaro marvado
Tem um bico vorteado que nem avião

Carcará quando vê roça queimada
Sai voando e cantando
Carcará vai fazer sua caçada
Carcará come até cobra queimada

Mas quando chega o tempo da invernada
No sertão não tem mais roça queimada
Carcará mesmo assim não passa fome
Os burrego que nasce na baixada

Carcará pega, mata e come
Não vai morrer de fome
Carcará mas coragem do que homem
Carcará pega, mata e come

Carcará é malvado e valentão
É a águia de lá do meu sertão
Os burrego novinho não pode andar
Ele puxa no imbigo até matar

Carcará pega, mata e come
Não vai morrer de fome
Carcará mas coragem do que homem
Carcará pega, mata e come


* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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