Somos a seleção e a edição daquilo que captamos no mundo. Se à primeira vista esta sentença deixa minar certa passividade, noutro olhar ela evoca a competência que cada um de nós tem ao arranjar (montar, produzir) a própria vida.
Nesta perspectiva, a nossa originalidade viria da capacidade (maior ou menor - dentro de um raio infinito de possibilidades) de produzir sentidos: de ser e estar no lugar da indistinção entre produção e consumo; original e cópia.
Não somos aquilo que já foi dito (cantado), mas desejamos o desejo que o cantor teve ao cantar. Ou melhor, constituímo-nos na interpretação que damos ao desejo que o cantor tem ao cantar. E tudo isso se dá em um processo circular de sensações, prazeres e erotismos.
Quando o sujeito da canção "Arranjo", de Zélia Duncan e Isabella Taviani (Meu coração não quer viver batendo devagar, 2009) pede que o outro lhe escale, note, harmonize, cante, escreva, improsive, está desejando a criação-de-si: a distinção perante a massa sonora universal.
Como Francisco Bosco anotou em seu texto de O globo (25/05/2011): "Sim, os artistas são nossos irmãos desconhecidos. E são nossos irmãos porque nos apresenta ao que, em nós mesmos, desconhecemos, e assim, nos elevam à altura da vida, livrando-nos do vazio e do nada". Ao ser cantado pelo outro, apresentado àquilo que desconhecemos em nós, tomamos lugar no mundo.
Mas a canção é e sempre será canção. Por nossa vez, nós nem sempre somos "a frase cantada", nem "a pausa longa", nem "o acorde afinado", mas o arranjo que damos a tudo isso. Somos a resposta à nossa necessidade de palavra cantada, de melodia que embala sensações e de voz que, "solamente una vez", com seu efeito de presença, torna-nos presentes no mundo.
O artifício metacancional utilizado na letra da canção "Arranjo" tematiza as técnicas de imitação, a necessidade de reconhecimento e a contribuição do novo à tradição (ao cantado). O sujeito aqui é a resposta possível ao canto do outro: a invenção que se realiza aprendendo o "ritmo moderado com ímpeto" do outro. O sujeito é transcanção.
Por um recalque tipicamente latino-americano, temos pânico de assumir nossa não-história, nossa genealogia. Forjamos uma tradição (essência, pureza) que não nos pertence. Indivíduos latino-americanos, temos à nossa disposição aquilo que os outros (outrora colonizadores) já cantaram. Estamos à frente, quando entendemos como isso se processa em nós.
Eis a contribuição (bela e/ou fera) que oferecemos ao pensamento do humano. Somos a materialidade da independência identitária (sempre anacrônica, porque atravessada por diversas vozes do passado) gestada nos signos e símbolos da dependência do canto alheio.
Dito de outro modo, tornamo-nos Ser-no-mundo, autores de nossas vidas, quando aceitamos (conscientes ou não) ser o arranjo (e aqui a letra da canção é sublime por trabalhar apenas com instrumentais do universo sonoro) que, em eterno retorno, engendramos.
Somos a "carnação da canção"; o ponto em que a imaterialidade de uma canção de presentifica; a tensão permanente entre ser um simples eu-cancional (cantado) e uma transcanção (cantante: transvaloração do cantado). Somos o arranjo.
***
Arranjo
(Zélia Duncan / Isabella Taviani)
Me escala, me nota, me harmoniza
Me canta, me escreve, me improvisa
Sou frase sua, me continua
Faz o contra-ponto
Cifra o caminho onde eu te encontro
Aprendo seu ritmo moderado com ímpeto
Me afino em acordes alterados
Pela manhã peço uma pausa longa
De longo efeito
E te beijo em silêncio
Me orquestra, me sola
"Solamente una vez"
Nessa canção que você fez
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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