Por Abílio Neto
Na minha concepção, o grande sambista Ederaldo Gentil, uma espécie de Paulinho da Viola baiano, encarnou como ninguém o sentido da célebre frase do filósofo Nietzsche: “Viver é a coisa mais rara do mundo. A maior parte das pessoas apenas existe.”
Num dos seus lindos sambas, o lírico poeta nascido no Largo 2 de Julho, disse num dos seus versos que esperava ser feliz aos 70 anos. Morreu com 68. Aliás, o que me moveu para escrever este texto foi justamente o 3º aniversário da sua morte, ocorrida em 30/03/2012, após um longo período de ostracismo, tristeza e depressão.
A Bahia tem uma galeria de grandes sambistas desde a geração de Riachão até a de Ederaldo Gentil, mas o povo (ah, o danado do povo!) do meio da década de oitenta para cá, só tem olhos e ouvidos para quem é do “axé”. E o “axé” jamais foi a melhor música que se produziu na Bahia! Se já era difícil o reconhecimento do enorme talento de Ederaldo, a coisa então se tornou impossível.
Mudando-se muito jovem para o bairro de Tororó, Ederaldo começou a frequentar a “Escola de Samba Filhos de Tororó” e logo chamou a atenção pela extrema facilidade com que tocava qualquer instrumento de percussão. Ainda adolescente, começou a compor e fazer parte da ala de compositores da escola. Mas continuava a ser um jovem estudioso que para sobreviver ajudava o pai na difícil arte de consertar relógios.
Buscando viver e não apenas existir, Gentil tentou através do Esporte Clube Guarany ingressar no mundo do futebol. Atuava como meia-esquerda e quem o viu jogar diz que hoje seria um craque em qualquer clube do Brasil ou do exterior, onde até perna de pau é chamado de craque. Chegou a treinar no Vitória, também de Salvador, porém não foi devidamente olhado para que percebessem sua arte com a pelota. Voltou para a sua vida de compositor de samba-enredo e concurso de música carnavalesca. Em 1970, Ederaldo era unanimidade como grande compositor no universo das dez escolas de samba que existiam na capital baiana.
Cantor e compositor Ederaldo Gentil
Jair Rodrigues, em 1970, foi quem tornou Ederaldo conhecido pelo Brasil afora, ao gravar duas de suas criações, Bereketê e Alô Madrugada (parceria com Edil Pacheco). Em 1972, Gentil mudou-se para São Paulo na esperança de gravar seu primeiro disco. Recebeu a ajuda de gente importante como o ator Juca de Oliveira e o produtor musical Fernando Faro, mesmo assim o disco não saiu. Foi no começo de 1973 que, ainda em São Paulo, compôs uma pérola de samba em forma de carta que receberia este nome: “A Saudade Me Mata”. Logo depois retornou para Salvador. Ei-la:
“É que a saudade me mata
A distância maltrata
É que a distância maltrata
A saudade me mata
Doze de Maio chuvoso de setenta e três
Que esta lhe encontre em gozo de felicidade
Se não escrevi há mais tempo
Foi o próprio tempo que não me deu tempo
Hoje lhe escrevo contando minhas novidades
Quando eu cheguei era manhã
Fazia frio e um vazio dentro em mim
Nas mãos a minha esperança
No peito a mesma ilusão
Sem saber pra onde ir
É que a saudade me mata…
Banana d’água é nanica
Tangerina é mexerica
Sinto falta do luar
No mais tudo é igual
Abraços e ponto final
Carnaval eu chego lá.”
Deram-lhe a grande chace da sua vida: em 1975, a gravadora Chantecler o chamou de volta a São Paulo onde gravou um compacto simples, que trazia as composições “O Ouro e a Madeira” e “Triste Samba”, ambas de sua exclusiva e talentosa autoria. A primeira composição, se não fez sucesso na sua voz, pelo menos despertou a atenção do radialista e produtor musical Adelzon Alves, que na época trabalhava com a cantora mineira Clara Nunes e outros artistas do mundo do samba. Foi no famoso programa radiofônico de Adelzon, o “Comando da Madrugada”, da rádio Globo do Rio de Janeiro, que se decidiu a gravação do samba “O Ouro e a Madeira” pelo grupo “Nosso Samba” que acompanhava Clara Nunes. Essa nova gravação fez a música estourar em todo o Brasil.
Esse destaque como compositor fez com que a gravadora Chantecler convidasse Ederaldo para fazer um disco completo (LP). Foi assim que surgiu, ainda em 1975, o disco “Samba, Canto Livre de Um Povo”, que trazia novamente “O Ouro e a Madeira”. Ainda pela gravadora Chantecler, lançou, em 1976, outro LP, que recebeu o título “Pequenino”. Depois desse lançamento fonográfico recebeu vários convites para participar de shows e apresentações em rádio e TV.
Apesar da reconhecida qualidade das suas músicas e dos músicos acompanhantes dos seus dois discos, a existência (e não a vida) de Ederaldo continuou bastante difícil. Os discos não venderam bem e mais uma vez ele teve que voltar para seu porto seguro: Salvador. E foi de lá que ele começou em 1982 a produzir um disco independente, que seria o último da sua carreira, concluindo o projeto em 1984. O LP foi denominado “Identidade”. Esse disco foi todo gravado nos estúdios da WR e contou com o apoio de todos seus amigos: músicos, compositores, divulgadores e outras pessoas identificadas com seu projeto. Por dever de gratidão, na contracapa do disco, ele citou todas as pessoas que o ajudaram a realizar seu último trabalho.
Um ano depois, surgiu disfarçada de “Fricote”, o que hoje se chama “axé music”. Com seu advento, Ederaldo Gentil não teve mais voz nem vez na Bahia. Ele emudeceu e suas músicas não eram mais tocadas no rádio. Em 1991, ele se retirou silenciosamente do meio artístico. Ouviu-se falar muito dele oito anos após, em 1999, com o lançamento do precioso disco “Pérolas Finas”, produzido por seu parceiro e amigo Edil Pacheco para homenageá-lo.
De 2000 a 2012, Ederaldo viveu em completo ostracismo, afastado do mundo do samba e acometido por uma grave depressão. Os muitos admiradores não faltaram ao seu sepultamento no Cemitério do Campo Santo, na tarde de 31/03/2012 e deram uma prova de que a sua grande obra mantém-se acima da morte e do esquecimento, não somente por parte da mídia interesseira como também (de maneira vergonhosa!) pelas autoridades da cultura da Bahia e do Brasil, ausentes no seu velório e enterro.
Mas o povo (ah, o povo!) esse esteve lá. Fazendo alusão ao nome de uma de suas músicas, Clarindo Silva, o famoso guardião do Centro Histórico de Salvador, discursou carregado de emoção: “Você não é de menor, Ederaldo. Você é grande!”. Na descida do caixão ao túmulo ouviu-se o recitar desses versos maravilhosos de um grande artista do samba que não viveu, mas apenas existiu de 07/07/1943 a 30/03/2012: “O ouro afunda no mar/ Madeira fica por cima/ Ostra nasce do lodo/ Gerando pérolas finas”.
Ouviremos, a seguir, três músicas de Ederaldo Gentil (sem parceiros). Vale a pena conferi-las! Uma com João Nogueira, outra com Elza Soares e a do vídeo é com o próprio autor, acompanhado por nomes ilustres do samba da Bahia, tais como Riachão e Batatinha.
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