Rimando amor e humor - como propõe um poema de Oswald de Andrade intitulado "Amor" e em cujo corpo do poema temos "apenas" a grafia da palavra "humor" -, Thiago Antunes, Daniel Lopes e Rodrigo Bittencourt têm agitado a, digamos, apolínea fase porque passa a canção popular. Ironizando o cool e suas tintas rancorosas, o Les pops investe em algo cada vez mais escasso: a capacidade de rir de si mesmo, de investir na leveza da existência, de se ouvir e de sonhar.
Isso não é pouco. Em tempos de fundamentalismos que pregam o ódio, a segregação e a discriminação, ouvir o Les pops refrigera os ânimos acesos de opiniões sobre tudo. Quero ser cool (2011) brinca com os paradigmas de uma sociedade em que todos tem algo a dizer: há excessos de lirismos vazios, de explicações mirabolantes e de nichos teóricos definidores de verdades universais. Todos querem ser cool, pois assim acreditamos estar inseridos.
Por sua vez, o disco trabalha sobre o que sobra e escapa: o olhar atento do jovem forjadamente desleixado e moderno. Claro, tudo filtrado (traduzido) pela formação de cada integrante do Les Pops, mas sem as filosofias pré-fabricadas que empesteiam as conversas dos pretensos artistas e intelectuais sempre "falando umas bobagens / sobre Nietzsche e Platão / falando de Bukowski / escalando a seleção".
O fato é que, unindo a outrora maldita (porque estrangeira) guitarra ao ukelele e o banjo, e tematizando o comportamento intelectual nosso de cada dia, as canções do Les Pops engendram uma pane no sistema: cantam o avesso do cinismo e suas máscaras cool.
E é justamente neste lugar que surge um pensamento sobre os modos de feitura de canção hoje. Há várias referências sonoras no disco, mas, talvez, o melhor exemplo disso seja "A canção", de Rodrigo Bittencourt.
"A canção" é metacanção: canta o próprio ato cancional, além de cantar (restituir) outra: "Canção de protesto", de Caetano Veloso. Se nesta o sujeito já alertava para a profusão tupiniquim do canto dos amores fracassados - "Odeio 'As time goes by' / O manifesto / Canções de amor / Muito ciúme, muita queixa, muito 'ai' / Muita saudade, muito coração” -, o sujeito criado por Rodrigo , citando o outro, aponta: "A canção cansou de chorar no refrão / A canção não quer mais tocar / Cansou de não ter o que falar".
Enquanto o sujeito de Caetano conclui: "É o abusar de um santo nome em vão / Ou a santificação de uma banalidade / Eu queria o canto justo na verdade / Da liberdade só do canto / Tenra, limpa, lúcida, e no entanto / Sei que só sei querer viver / De amor e música"; mexendo na ferida, o sujeito do Les Pops sugere: “A canção cansou de dizer coração / A canção cansou de sofrer por paixão / A canção cansou de chorar no refrão / A canção não quer mais tocar / Cansou de não ter o que falar”.
Pensar a canção por dentro não é tarefa fácil. "A canção" é um canto que experimenta sair do lugar onde a dor (de amor) não tem razão. É muito melhor viver de amor e música, eis a sugestão de "A canção", deixando a sugestão de que é preciso deixar a canção livre para cantar e experimentar.
***
A canção
(Rodrigo Bittencourt)
a canção cansou de dizer coração
a canção cansou de sofrer por paixão
a canção cansou de chorar no refrão
a canção não quer mais tocar
cansou de não ter o que falar
a canção cansou de se oprimir
de resmungar
a canção cansou de não se ouvir
de gaguejar
a canção nem quer mais cantar
ela quer se abrir e experimentar
engole verso pra sorrir coração
estufa o peito pra gritar
preciso me ouvir
preciso sonhar
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
Nenhum comentário:
Postar um comentário