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terça-feira, 7 de abril de 2015

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*





A pecha de que somos "um povo feliz" nos sufoca. Por aqui, no país tropical, onde não existe pecado, é proibido sofrer. "A felicidade é uma obrigação". Percorrendo a história da canção popular, por exemplo, percebemos significativas mudanças de perspectivas. Se outrora os temas para "cortar os pulsos" serviam de trilha sonora de nossas vidas, hoje canções com sujeitos afirmativos registram comportamentos. Para o bem, para o mal e para o talvez.

Claro que nada é tão simples. Além disso, o gesto sobre humano de espantar a dor e a morte não é privilégio nosso. É uma tendência mundial. Sofrer e morrer, definitivamente, não está com nada. O quente é ser alegre. "A ordem é ser feliz". E qualquer indivíduo lúcido dirá que isto é o certo.

Se por um lado concordamos com Clément Rosset, quando afirma que "a alegria é a força maior", por outro lado, isso não deve rechaçar os implicamentos dos sorrisos sem razão: seguimos "entre sorrisos falsos e amenidades". E a vida precisa ser sentida pelos vários lados: em toda a sua complexidade. Os paliativos criados à mancheia contra a dor e os fortes investimentos que promovem o adiamento da morte dizem muito do caminho que estamos seguindo: do desnivelamento entre a vida moderna e a vida da alma, do espírito, como queiram.

Ninguém sofre mais. Há remédio para tudo. E esta ilusão movimenta comércios poderosos que, eis a cruel avaliação geral, não conseguem dar conta de ultrapassar a superfície da pele. Daí a urgência cíclica e permanente de criar o desejo de novas necessidades "vitais". Não dá tempo nem para pensar e já estamos diante do novo, de novo.

Não há dúvidas sobre as vantagens do mundo moderno, com suas tecnologias sempre à disposição. Mas, e quando a cortina fecha? E quando o indivíduo está sozinho, no seu quarto, no fim do dia, e o mundo desaba? Há remédios - alucinógenos e mascaramentos não valem - que dão conta da solidão?

Penso nisso tudo enquanto ouço Leoni (A noite perfeita ao vivo, 2010) cantar "É proibido sofrer", de Luciana Fregolente e Leoni. Aliás, usar o verbo pensar, aqui, já marca certa fraqueza diante do mundo contemporâneo. Pensar dói. Pensar é montar e desmontar mundos internos. E isso não tem mais sentido quando tudo já vem pronto, basta usar. "Pensar demais e perder o sono" está fora de moda.

De viés, o sujeito dessa canção atravessa a genealogia de nossa canção popular: ele evoca um tempo em que seus companheiros de ofício (cancionistas) tematizavam apenas o sofrer; depois avalia o universo apenas alegre de hoje; e dispara contra si a certeza de que estamos sempre esperando algo (ou alguém) que caiba em nossos sonhos. E que, para tanto, forjamos inúmeras formulas de proteção.

Afinal, ser afetado pela vida também é proibido. As interioridades, diante das promessas de felicidades em tablete, não se adaptam com a mesma velocidade das tecnologias. "Entre sorrisos falsos e amenidades, momentos rasos de normalidade": E "Não me apareça aqui com sua bagagem de infelicidade", diz o sujeito da canção "É proibido sofrer", com sua melodia rock, cantando os sintomas da solidão existencial irremediável.

Ao final, não se trata de uma apologia enviesada à dor, ao sofrimento, à lágrima. Pelo contrário, trata-se de um convite ao mergulho na vida, de fato, e suas "horinhas de descuido". Salve o prazer e a certeza de que ser feliz não é negar a dor. Como Mário de Andrade anotou: "A própria dor é uma felicidade".


***

É proibido sofrer
(Luciana Fregolente / Leoni)

É proibido sofrer
Nas noites longas de inverno
Quando o mundo todo te esquecer

É proibido sofrer
Esperando por alguém
Que nunca vai aparecer

É proibido sofrer
Nos dias longos de sol
Na lua cheia e no carnaval

É proibido sofrer
A dor é só um descuido
Já tem remédio pra tudo

Tem alegria em tablete
Pra te manter no ar
Só sofre quem não quiser
Ou não puder pagar

A ordem é ser feliz
Por toda a eternidade
Feito prisão perpétua
Entre sorrisos falsos e amenidades

É proibido sofrer
Eu li, tá fora de moda
É falta de educação

É proibido sofrer
Os dias são de euforia
A felicidade é uma obrigação

É proibido sofrer
Chorar nas tardes de outono
Pensar demais e perder o sono

É proibido sofrer
Não vale a pena a viagem
É muito cara a passagem

É muito escuro no fundo
Ninguém mais vai pra lá
Ninguém te chama pra nada
Nem quer te visitar

A ordem é ser feliz
Por toda a eternidade
Feito prisão perpétua
Entre sorrisos falsos e amenidades
Momentos rasos de normalidade
Não me apareça aqui
Com sua bagagem de infelicidade

Porque a ordem é ser feliz
É proibido sofrer (é proibido)
A ordem é ser feliz
É proibido sofrer (é proibido)





* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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