Claro que nada é tão simples. Além disso, o gesto sobre humano de espantar a dor e a morte não é privilégio nosso. É uma tendência mundial. Sofrer e morrer, definitivamente, não está com nada. O quente é ser alegre. "A ordem é ser feliz". E qualquer indivíduo lúcido dirá que isto é o certo.
Se por um lado concordamos com Clément Rosset, quando afirma que "a alegria é a força maior", por outro lado, isso não deve rechaçar os implicamentos dos sorrisos sem razão: seguimos "entre sorrisos falsos e amenidades". E a vida precisa ser sentida pelos vários lados: em toda a sua complexidade. Os paliativos criados à mancheia contra a dor e os fortes investimentos que promovem o adiamento da morte dizem muito do caminho que estamos seguindo: do desnivelamento entre a vida moderna e a vida da alma, do espírito, como queiram.
Ninguém sofre mais. Há remédio para tudo. E esta ilusão movimenta comércios poderosos que, eis a cruel avaliação geral, não conseguem dar conta de ultrapassar a superfície da pele. Daí a urgência cíclica e permanente de criar o desejo de novas necessidades "vitais". Não dá tempo nem para pensar e já estamos diante do novo, de novo.
Não há dúvidas sobre as vantagens do mundo moderno, com suas tecnologias sempre à disposição. Mas, e quando a cortina fecha? E quando o indivíduo está sozinho, no seu quarto, no fim do dia, e o mundo desaba? Há remédios - alucinógenos e mascaramentos não valem - que dão conta da solidão?
Penso nisso tudo enquanto ouço Leoni (A noite perfeita ao vivo, 2010) cantar "É proibido sofrer", de Luciana Fregolente e Leoni. Aliás, usar o verbo pensar, aqui, já marca certa fraqueza diante do mundo contemporâneo. Pensar dói. Pensar é montar e desmontar mundos internos. E isso não tem mais sentido quando tudo já vem pronto, basta usar. "Pensar demais e perder o sono" está fora de moda.
De viés, o sujeito dessa canção atravessa a genealogia de nossa canção popular: ele evoca um tempo em que seus companheiros de ofício (cancionistas) tematizavam apenas o sofrer; depois avalia o universo apenas alegre de hoje; e dispara contra si a certeza de que estamos sempre esperando algo (ou alguém) que caiba em nossos sonhos. E que, para tanto, forjamos inúmeras formulas de proteção.
Afinal, ser afetado pela vida também é proibido. As interioridades, diante das promessas de felicidades em tablete, não se adaptam com a mesma velocidade das tecnologias. "Entre sorrisos falsos e amenidades, momentos rasos de normalidade": E "Não me apareça aqui com sua bagagem de infelicidade", diz o sujeito da canção "É proibido sofrer", com sua melodia rock, cantando os sintomas da solidão existencial irremediável.
Ao final, não se trata de uma apologia enviesada à dor, ao sofrimento, à lágrima. Pelo contrário, trata-se de um convite ao mergulho na vida, de fato, e suas "horinhas de descuido". Salve o prazer e a certeza de que ser feliz não é negar a dor. Como Mário de Andrade anotou: "A própria dor é uma felicidade".
***
É proibido sofrer
(Luciana Fregolente / Leoni)
É proibido sofrer
Nas noites longas de inverno
Quando o mundo todo te esquecer
É proibido sofrer
Esperando por alguém
Que nunca vai aparecer
É proibido sofrer
Nos dias longos de sol
Na lua cheia e no carnaval
É proibido sofrer
A dor é só um descuido
Já tem remédio pra tudo
Tem alegria em tablete
Pra te manter no ar
Só sofre quem não quiser
Ou não puder pagar
A ordem é ser feliz
Por toda a eternidade
Feito prisão perpétua
Entre sorrisos falsos e amenidades
É proibido sofrer
Eu li, tá fora de moda
É falta de educação
É proibido sofrer
Os dias são de euforia
A felicidade é uma obrigação
É proibido sofrer
Chorar nas tardes de outono
Pensar demais e perder o sono
É proibido sofrer
Não vale a pena a viagem
É muito cara a passagem
É muito escuro no fundo
Ninguém mais vai pra lá
Ninguém te chama pra nada
Nem quer te visitar
A ordem é ser feliz
Por toda a eternidade
Feito prisão perpétua
Entre sorrisos falsos e amenidades
Momentos rasos de normalidade
Não me apareça aqui
Com sua bagagem de infelicidade
Porque a ordem é ser feliz
É proibido sofrer (é proibido)
A ordem é ser feliz
É proibido sofrer (é proibido)
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
Nenhum comentário:
Postar um comentário