RESUMO
Através da análise das letras e do contexto histórico de produção e consumo da arte musical de Bezerra da Silva, o presente trabalho procura analisar as relações e representações da umbanda e da maconha na obra deste singular artista. Objetiva também imiscuir os processos de legitimação do samba e da umbanda no Brasil, e inferir de que modo a tríade samba/umbanda/maconha se interpenetra na história brasileira. Para tanto, será utilizado, além das letras das canções, reportagens e matérias feitas com o artista antes de seu falecimento, ocorrido em 2005. Busca-se analisar a história de vida de Bezerra, a fim de tecer considerações sobre seu projeto e os meios utilizados pelo indivíduo para realizá-lo. Através da inserção de Bezerra da Silva na categoria analítica de mediador, definiremos o âmbito e a representatividade de sua mediação.
Palavras-chave: Música popular urbana; Samba; Umbanda; Maconha.
INTRODUÇÃO
A música popular urbana raramente se constituiu objeto da antropologia brasileira, mais preocupada com o estudo da música enquanto folclore ou possuidora de papéis bem definidos em contextos rituais. Somente a partir da década de noventa começam a surgir estudos - através do florescimento nas universidades brasileiras de uma nova postura de pesquisa e disciplina - cujo tema central é a produção musical urbana, suas origens, e seus modos de apreciação e recepção.
Assim, a falta de pesquisas consolidadas na área torna mais árduo o caminho do pesquisador que a ela se atém. No entanto, também abre farta seara de questionamentos necessários à consolidação deste objeto enquanto temática antropológica. Cumpre destacar a importância de um diálogo multidisciplinar no trato da questão, pois é impossível analisar a produção musical sem levar em consideração as variáveis históricas, tecnológicas e psicológicas de sua produção e consumo/recepção.
A música, entendida através de sua escrita técnica (partituras, escalas, etc..), se configura enquanto uma organização sonora no decorrer de um espaço de tempo finito. Porém, devemos considerá-la sob um espectro mais amplo, visto que sua execução e recepção estão quase sempre conectadas a outras manifestações culturais expressivas, inseridas em várias atividades sociais e portadoras de múltiplos significados dentro desta interação. Tiago de Oliveira Pinto é pontual ao observar que a música
não é entendida apenas a partir de seus elementos estéticos mas, em primeiro lugar, como uma forma de comunicação que possui, semelhante a qualquer tipo de linguagem, seus próprios códigos. Música é manifestação de crenças, de identidades, é universal quanto à sua existência e importância em qualquer que seja a sociedade. Ao mesmo tempo é singular e de difícil tradução, quando apresentada fora de seu contexto ou de seu meio cultural. (Pinto 2001: p.3)
A canção popular (verso e música) se torna um campo rico e complexo de possíveis questionamentos e saberes antropológicos. Ela desempenha, ao mesmo tempo, papéis tradicionais na vida das pessoas, como, por exemplo, consolidar significativamente os calendários festivos e religiosos e fazer parte da natureza íntima destas manifestações culturais, como se coloca enquanto mercadoria de grande valor, quando veiculada e comercializada pela indústria globalizada da mídia. Além disso, segundo José Geraldo Vinci de Moraes “a canção é uma expressão artística que contém um forte poder de comunicação, principalmente quando se difunde pelo universo urbano, alcançando ampla dimensão da realidade social.”(DE MORAES, 2001)
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer, ainda que ligeiramente, as particularidades objetivas e materiais dos sons produzidos e sua propagação, e como eles foram e são (re)elaborados pela sociedade humana, de diferentes modos, em forma de música. Os sons são objetos materiais especiais, produtos da ressonância e vibração de corpos concretos na atmosfera e que assumem diversas características. Tratam-se de objetos reais, porém invisíveis e impalpáveis, carregados de características subjetivas, e é assim que proporcionam as mais variadas relações simbólicas entre eles e as sociedades. (De Moraes, 2001)
Portanto, no intuito de escrutinar tais relações simbólicas entre a canção popular (no caso específico, o samba de Bezerra da Silva) e a sociedade de forma ampla, considero válido, para este estudo, utilizar as noções de semiótica da cultura, como a pretende Clifford Geertz. Para este autor, a cultura é um documento de atuação pública, e somente é pública porque o significado também o é. E uma abordagem semiótica deste documento nos permite ganhar acesso ao mundo conceitual de nossos sujeitos, facilitando e amplificando assim o diálogo com estes. Pra Geertz, o conceito de cultura pode ser entendido como
Sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (...) não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições e os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível - isto é, descritos com densidade. (Geertz, 1989: 10)
O que o antropólogo enfrenta, então, é “uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar” (Geertz,1989). Justamente devido ao seu caráter contextual, é imprescindível, para a análise da cultura, um empreendimento interdisciplinar que, envolvendo a antropologia, assim como a sociologia, a psicologia - especificamente a psicologia social - a história e outras ciências sociais, possa dar cabo deste complexo mundo de relações.
1 - O TEMA, PROCEDIMENTOS E OBJETIVOS
A partir destas considerações, gostaria de tecer breves comentários sobre a escolha do tema e o que pretendo com esta empreitada para dentro deste universo alegre e polêmico, a obra do não menos polêmico Bezerra da Silva. Elegi a trajetória de vida de Bezerra, através de sua biografia, como um ponto de encontro chave, locus no qual as abordagens possíveis das diversas áreas das ciências sociais podem se encontrar. Portanto, cumpre esclarecer que ao priorizar a análise de sua história de vida, adotarei tal conceito como o concebe Bourdieu, tendo esta – a história de vida - como ilusão retórica, e o historiador de si, isto é, o que a edifica, como o ideólogo de sua própria existência.
História de vida é reflexão sobre o ser fundada num exercício de memória, e a memória intencionalmente transmitida é manipulação da realidade, uma atualização do passado que dá sentido ao presente e se projeta no futuro como intenção do ser. (...) é uma maneira de construir uma história para si e para quem esteja disposto a ouvir – já que a identidade é fenômeno reflexivo que se produz em referência aos outros. (Vianna, 1998)
Para Gilberto Velho (2001) a trajetória individual e a biografia tornaram-se centrais em uma visão do mundo ocidental e moderno, onde a subjetividade e a dimensão interna são de grande importância para a construção de personagens singulares. Os indivíduos, ao constituírem suas identidades, atuam, retrospectivamente, através da memória, e prospectivamente, através dos projetos, e, circunscritos que estão a um quadro sociocultural e a um campo de possibilidades de limites difusos, exercem suas escolhas a partir deste quadro de referências (ou estoque de conhecimentos) nunca homogêneo ou fechado.
Portanto, na construção de uma narrativa de vida, são os projetos, isto é, a visão do futuro que faz com que se edifique um percurso condizente, lógico – embora repleto de incoerências e zonas de maior e menor clareza e precisão – que dê sustentação a este planejamento. O esforço totalizante, a busca de padrões idênticos, homólogos, subjacentes a uma grande variedade de realizações e acontecimentos heterogêneos, surge do empreendimento individual de seleção e organização de fatos de sua vida pregressa à luz de uma perspectiva de porvir. Esta busca de tendências e recorrências pressupõe uma coerência que as experiências vividas não possuem. É o papel do narrador enquanto seletor e construtor de sua trajetória que nos dará um relato crível (ou não) de suas experiências e do personagem que pretende apresentar. Como bem ressaltado por Souza (1998), é “esse caráter fluido e relativamente pouco estruturado do estoque de conhecimento que lhe permite (ao narrador) dar conta de experiências e acontecimentos que, em princípio, podem parecer contraditórios.”
Bezerra da Silva será pensado, desta forma, enquanto um personagem continuamente em construção, a semelhança de sua trajetória de vida plena de lugares escuros, por esquecimento fortuito ou calculado. O tecido da vida foi revelando a José da Silva o Bezerra, e sua trajetória permitirá traçar paralelos com os outros tantos contextos nos quais o artista atuou, de formas diferenciadas.
Pretendendo o artista enquanto mediador cultural, e sua arte como representação de um mundo – ou ao menos de um ethos, explicito que o presente trabalho não se trata de uma biografia de Bezerra, e sim de uma tentativa, a partir da trajetória de vida deste artista singular, de localizá-lo enquanto agente de transformação social da realidade, através de sua atuação como elo cultural entre o morro e a elite. Para tanto, me utilizarei dos conceitos de mediador cultural conforme tratados por Velho e Kuschinir (2001).
Segundo Velho, “na sociedade moderno-contemporânea, a construção do indivíduo e de sua subjetividade se dá através do pertencimento e participação em múltiplos mundos sociais e níveis de realidade”. Este freqüente trânsito entre regiões socioculturais faz com que o sujeito, em especial o morador urbano, esteja potencialmente exposto a universos sociológicos, modos de percepção e estilos de vida diversos e contrastantes. Isto os coloca frente ao desafio permanente de dar cabo a seus projetos diante da complexidade e contradição de um mundo muitas vezes hostil.
Esta possibilidade de circulação entre universos sociológicos, mais ou menos aberta a todos os citadinos, favorece a ocorrência de indivíduos que, lidando com vários códigos e vivendo diferentes papéis sociais, se tornam mediadores entre os diversos meios socioculturais.
Encontrar pontos de contato e comunicação entre diferentes mundos, produzindo novos resultados a partir deste processo. Essa é a tarefa básica do mediador. Sua atuação é mais ampla do que a de um intermediário, que apenas transporta informações de um lado para outro. A interferência do mediador é criativa, gerando novos valores e condutas.(Souza, 1998: 158)
Em sociedades onde ocorre o predomínio de ideologias individualistas, devemos entender a ação do mediador enquanto um projeto, mais ou menos consciente, que visa o estabelecimento de elos comunicativos entre os universos pelos quais ele transita. É a partir desse projeto, ou “plano de vida” que o mediador organiza seus interesses e estrutura seu estoque de conhecimento para interagir com os outros (Schutz, 1979, apud Souza, 1998).
Entretanto, não os tomarei (a história de vida e o conceito de mediação) como procedimentos únicos em minhas investigações, pois considero que uma análise temporal da criação, veiculação, circulação e recepção da obra de Bezerra se insere em um contexto histórico e geográfico delimitado e específico - entre os anos 70 até hoje - na cidade do Rio de Janeiro e, de forma abrangente, mas não menos verdadeira, no Brasil. Portanto, o espaço do coeficiente histórico na obra de Bezerra só poderá ser melhor compreendido se nos propusermos uma reflexão cronológica dos objetos principais de nossa análise – a saber, a umbanda e a maconha representadas por Bezerra da Silva - a fim de verificar os intercruzamentos entre a história de vida e o contexto histórico e social implicados nesta análise.
Ao priorizar um ritmo especial de grande penetração nas classes populares, o samba de partido alto, Bezerra estabeleceu uma interlocução privilegiada com as camadas mais pobres de nossa desigual sociedade. Embora esta interlocução seja a mesma experimentada, vivida por Bezerra em seu dia a dia - visto que ele também fazia parte daquela “massa”, como cantou Zé Ramalho - o alcance de sua mensagem extrapola o cotidiano e o vizinho, alcançando também a grande mídia e as demais esferas da sociedade brasileira, em especial a imprensa e setores conservadores. Estes últimos, por sua vez, dirigiam críticas a Bezerra acusando-o de abordar, em sua obra, temas ilegais ou, no mínimo, imorais, como a maconha, o crescente crime organizado em torno do narcotráfico e as religiões afro-brasileiras, que embora já reconhecidas oficialmente, ainda sofriam (e sofrem) o fardo de condenações e estigmatizações passadas.
Esta capacidade fluida de transitar e dialogar com amplos e diversos setores socioculturais fez de Bezerra um mediador entre a visão de mundo das populações marginalizadas e/ou menos favorecidas e o ethos dos que, supostamente e indiretamente, os afligiam. Ao longo de uma vida bastante atribulada, a busca por uma identidade, construída passo a passo, parece reger a tônica de sua obra. Nada é gratuito em sua narrativa. Duplamente pobre, estigmatizado e marginalizado, o artista reforça sempre seu papel de porta-voz dos que se encontram na mesma situação, legitimando assim o caráter mediático de sua atuação.
Vários elementos contribuem e são recorrentes na busca por esta identidade: as mulheres de sua vida, bondosas, mas que nunca se converteram em amor romântico; os homens de sua história, sempre de relacionamentos conturbados e mal resolvidos; o caráter marginal; a proximidade com o tráfico e as drogas; o medo e o asco da delação, não por que fizera algo errado, mas por que, sendo pobre, não possuía a lei a seu favor; o envolvimento com a umbanda. Pistas para montar sua cadeia de esclarecimento.
Bezerra entendia esta última como a seleção cuidadosa das canções que gravaria, no intuito de criar discursos a respeito de temáticas variadas, que vão do alto da colina (morro) ao palácio do Planalto. A cadeia de esclarecimentos significava, para Bezerra, sua contribuição social e política alertando ao povo pobre dos perigos e benesses, seja da maconha ou da polícia, dos políticos ou pais de santo. Embora as grandes vertentes temáticas tenham, frequentemente, duas ou três formas de representação na obra de Bezerra, estas são complementares, nunca excludentes. Neste universo multifacetado, a tarefa de dar coerência a este quebra-cabeça musical coube a Bezerra, que a realizou de forma magistral.
Embora Bezerra nunca tenha explicado, pormenorizadamente, o que seria a sua cadeia de esclarecimento, podemos supô-la enquanto conjunto de idéias e valores, retratados e organizados cuidadosamente no mosaico de sua obra, que têm como objetivo alertar o povo para os perigos – políticos corruptos, ladrões, polícia, delatores, mulheres trambiqueiras, pastores – que se somavam aos já comuns da vida de favelado. Porém, mais do que o aspecto informativo, sua cadeia de esclarecimentos tinha objetivos formativos e alvo bem definido: ele próprio, enquanto sujeito e em construção.
É interessante pensar esta rede de informações como uma tática de inserção num universo específico e, ao mesmo tempo, um mecanismo informacional voltado a seus interlocutores populares. Bezerra construía um mundo para si, arranjava significantes para sua condição, e norteava sua trajetória de tantos erros criando uma obra que, ao mesmo tempo, lhe fornecia referenciais teóricos e de experiência para a construção de sua biografia e elaboração de projetos.
Assim, mesmo levando em conta que as letras que serão analisadas não são, em sua grande maioria, composições de Bezerra, entendo que o trabalho desenvolvido na escolha cuidadosa do repertório, aliado à identificação indelével do interprete com a música, fazem destas letras importantes instrumentos na análise das representações simbólicas em torno dos universos escolhidos para objeto do presente esforço: a umbanda e a maconha apropriadas e divulgadas para espaços mais amplos da chamada “Cultura Nacional” através das canções de Bezerra. Embora não seja possível nem recomendável excluir a percepção e a importância do artista na escolha de seu repertório, também não se pode afirmar que todas as letras correspondam, sem restrições, à visão deste. Farei uso, portanto, de suas declarações, afim de melhor contextualizar seu comprometimento e reflexão crítica sobre a sua obra, seu papel
enquanto artista popular e suas relações com o universo religioso.
Conquanto esteja ciente da importância dos aspectos musicológicos do repertório do artista (melodia, ritmo, instrumentos musicais entre outros) enquanto portadores e representantes do referencial simbólico das religiões afro-brasileiras, optei por priorizar tão somente o conteúdo das letras das canções, a fim de estabelecermos relações discursivas entre as práticas individuais, históricas, psicológicas e culturais necessárias ao entendimento das questões propostas.
Ao atentar que este trabalho se dedica, a priori, à reflexão sobre a forma em que se dão as representações da Umbanda e da Maconha na obra de Bezerra da Silva, e de que maneira a tríade samba/umbanda/maconha se interpenetra e coexiste em meio a processos de legitimação – uns já completos e outros ainda incipientes - pretendo traçar breve cronologia em terras brasileiras destes dois objetos centrais e inserir Bezerra nesta a partir de duas datas chave: a conversão deste para a Umbanda, em 1961, e a gravação das primeiras músicas com referência à maconha, em 1982.
Também analisarei, brevemente, a conversão de Bezerra da Silva à Igreja Universal do Reino de Deus, expoente da terceira onda neopentecostal no país, ocorrida em 2001. O cantor da Umbanda vira crente, e, em meio à ressignificações e mudanças cotidianas impostas pela nova orientação, reflete um trânsito religioso comum entre as afrobrasileiras e as pentecostais, embora em maior grau da primeira para a segunda. E expõe também o grave conflito da intolerância religiosa e dos diários ataques que as denominações neopentecostais, embasadas ideologicamente na teologia da Guerra Santa, impingem às religiões e cultos afros.
A título comparativo, aproximarei a trajetória de vida de Bezerra com a de outro grande músico brasileiro, famoso por seu contato com as religiões afro-brasileiras e também convertido, já no fim da vida, à Universal: o violonista Baden Powell.
Porém, para permitir a análise pormenorizada das duas questões chave para este trabalho- a saber, as múltiplas representações da umbanda e da maconha em Bezerra da Silva e o modo como estas duas práticas, associadas ao samba, se entrecruzaram na história brasileira e, mutuamente, auxiliaram-se ou ainda auxiliam em seus processos de legitimação - deve-se remontar à origem do samba para, a partir de seu mito original, acompanhar seu processo de legitimação e seus entrecruzamentos com a Umbanda (da qual é originário) e a maconha, bem como sua contribuição à posterior legitimação das religiões afro. Também pretendo discutir de que forma a obra de Bezerra, mais especificamente, o samba de Bezerra, contribuiu para o acaloramento dos debates acerca da legalização da Cannabis Sativa no Brasil e as formas de apropriação da obra deste pelo movimento pró-legalização.
No tocante à umbanda, partirei da análise das letras do universo em questão a fim de compreender estratégias narrativas e representações simbólicas desta religião, ora tida como possuidora de grande importância espiritual, ora encarada como subterfúgio para estelionatários explorarem a credulidade alheia. Também recorreremos à análise histórica do processo de formação e legitimação deste credo, processo desencadeado, em grande parte, pela atuação de intelectuais e artistas (especialmente ligados ao samba) convertidos à umbanda e ao candomblé.
A partir da década de 60, com o questionamento e crítica das influências externas em nossa cultura e nos meios de comunicação de massa, surgem movimentos de conscientização política como os dos negros, e artísticos, como o tropicalismo, que revalorizam os temas nacionais. A cultura afro-Brasileira entrou na moda nos grandes centros urbanos do sudeste, e artistas, nacionalmente reconhecidos, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Vinícius de Moraes, Edu Lobo, Carlos Lira, Martinho da Vila, Clara Nunes e outros, em geral ligados ao candomblé e à umbanda, divulgaram nacionalmente os nomes e as lendas dos orixás. (Silva & Amaral 1996:206)
Ciente de que, como bem o ressalta Geertz
“... para um antropólogo, a importância da religião está na capacidade de servir, tanto para um indivíduo como para um grupo, de um lado como fonte de concepções gerais, embora diferentes, do mundo, de si próprios e das relações entre elas – seu modelo da atitude – e de outro, das disposições “mentais” enraizadas, mas nem por isso menos distintas – seu modelo para a atitude...” (Geertz, 1989: 90)
buscarei averiguar de que modo a experiência de quarenta anos na umbanda, sua primeira conversão, e pouco mais de quatro anos como evangélico neopentecostal, a fé derradeira, atuaram ou deixaram-se representar nas canções de Bezerra. Na análise mais especifica da abordagem musical da maconha, procurarei descortinar as representações desta com relação a outras drogas, ao narcotráfico e a sociedade em geral, mas, em especial, no concernente ao suposto conteúdo pró-legalização da obra de Bezerra e seu papel no ainda em curso processo de legitimação da maconha. Por fim, analisarei as imbricadas relações entre maconha e umbanda, tanto historicamente quanto na obra específica. Obviamente, ao tratarmos destes temas, não poderão ser deixadas de lado pequenas considerações sobre o cenário típico das canções de Bezerra: a favela, suas leis, contradições e problemas. Parto, a seguir, para a análise da trajetória de vida do artista, que tornará mais inteligível as possíveis relações estabelecidas, ao longo da vida de Bezerra, com os temas em questão.
2 - BEZERRA DA SILVA
2.1 OS PRIMEIROS TEMPOS
Bezerra da Silva, morto aos 77 anos, em 17 de janeiro de 2005 - de parada cardíaca, após mais de dois meses internado para tratamento de pneumonia e enfisema pulmonar - deixou uma obra rara e consistente na música popular. Migrante nordestino, sua vinda do Recife ao Rio de janeiro, a exemplo de boa parte da sua biografia, não encontra uma única versão. Em entrevistas à mídia algumas vezes diz que veio clandestino em um navio de cimento, outras que veio a pé. Às vezes com dezoito anos, outras com quinze. Em relato gravado por Letícia Vianna, teria vindo
em um navio de açúcar. Mas o motivo da vinda é sempre o mesmo: ingressar na marinha mercante e reencontrar o pai. Devido aos desencontros constantes nas biografias – publicadas pela imprensa e no relato do próprio Bezerra à pesquisadora supracitada – é necessário construir, para este trabalho, uma trajetória de vida, senão pormenorizada, ao menos suficientemente esclarecedora dos processos que culminaram na criação do sujeito e personagem Bezerra da Silva. Tais desencontros começam já em seu nascimento, em cuja data há polêmica por causa de incompatibilidade entre o afirmado pela mãe e o consagrado no registro cartorário pelo pai. Neste, a data oficial de nascimento de José Bezerra da Silva (seu nome de batismo) é 23 de fevereiro de 1927.
A esta data, sua mãe, Hercília Pereira da Silva, já havia sido abandonada por seu pai, Alexandrino Bezerra da Silva, que, pertencendo a Marinha Mercante, havia se mudado para o Rio de Janeiro. Hercilía ficara, então, sozinha com seus dois filhos: Vanda, a mais velha, e o caçula José. Devido a este abandono, sua mãe passou a ser estigmatizada por sua família, em especial pela avó materna de Bezerra, que não queria que ela se unisse a mais nenhum homem. Cumpre destacar o papel central desta avó como referência primária na memória de Bezerra. É a partir das coisas por ela contadas que o artista reconstrói sua primeira infância, até começar a se “entender por gente”, já com seus sete anos.
José passou toda a sua infância morando com a mãe e a irmã em uma casa próxima ao estádio do Clube Náutico de Capibaribe, no bairro popular do Aflitos, em casa cedida por um cunhado de Hercília. Bordadeira, Hercília contava com os pequenos serviços que José realizava quando não estava na escola, para complementar o orçamento doméstico. Em tempos de privação, comiam as frutas que encontravam na vizinhança e os mariscos e caranguejos que José conseguia pegar. Por vezes, recebiam doações de mantimentos da sua tia, esposa do dono do armazém que lhes cedia a casa.
José já contava dez anos quando Hercília se casou novamente. Desta união, José ganhou um irmão e um desafeto, já que recusava se subordinar ao padrasto e começava a ensaiar os primeiros passos como instrumentista, tocando escondido um trompete que conseguira emprestado. Mas a música não figurava entre as carreiras normalmente trilhadas pelos filhos da gente humilde, e, se pedreiro, torneiro, funileiro e mecânico eram alternativas mais próximas e respeitáveis, a música era coisa de vagabundo que não gostava do batente, e a agora Dona Hercília não havia criado filho pra ser vagabundo. Diante das negativas e desavenças com o padrasto, Bezerra da Silva decide trilhar o caminho do pai e servir na Marinha Mercante. Após dois anos recebendo treinamento formal e educação, foi preso e expulso da Marinha devido a desavenças com um oficial que o teria assediado sexualmente. Não havia mais nada a fazer em Recife. Bezerra foi para o Rio de Janeiro em busca da liberdade e também do pai, que não havia conhecido.
2.2 RIO DE JANEIRO – CIMENTO, SOFRIMENTO E SAMBA
Através de conhecidos na Marinha Mercante, Bezerra consegue o endereço do pai e vai procurá-lo. Bem recepcionado por sua madrasta, Bezerra se desentende com o pai, para quem sua chegada viria para “atrapalhar a vida”. Apenas uma semana após ter reencontrado o pai, Bezerra vai embora cortando definitivamente laços com ele, que não voltaria mais a ver. Esta dupla rejeição de Alexandrino – uma na barriga de sua mãe, outra quando adolescente – deixaram marcas profundas no relacionamento de Bezerra com seus pares masculinos durante a vida. Sem casa, familiares e auxílio, o jovem José ingressa no mercado de trabalho na categoria estatística comumente reservada aos migrantes nordestinos: a construção civil. Passa então a dormir nas obras, como meio de economizar o parco salário. Entre os peões da obra, muitos Josés. Para marcar identidade, começa a ser conhecido pelo sobrenome. Entre uma obra e outra, conhece uma empregada doméstica e aluga um barraco
no morro do Cantagalo , que se tornaria central em sua obra. A essa mulher, se seguiu outra, por seis anos, e depois uma seqüência delas, cada qual com suas manias e desagravos.
Mas o endereço permaneceu, e foi no Cantagalo que Bezerra conheceu o samba de partido alto, logo arranjando para si um tamborim e um lugar entre os partideiros. Assim como era frágil a sua rede de relações quando chegou ao Rio, Bezerra foi constituindo, através de sua participação nos pagodes, uma pequena rede de relacionamentos no mundo da música, culminando no convite do compositor Alcides Fernandes, em 1950, para ser instrumentista na Rádio Clube do Brasil. Ao tamborim se somaram outros instrumentos, e, embora sua reputação como instrumentista crescesse e Bezerra alargasse sua rede de relações, isto não se convertia em valores monetários e o problema da sobrevivência continuava. Entre brigas para não pagar o “pedágio” dos bandidos na subida do morro, e 21 prisões para averiguação, –“sem nada dever” realmente - Bezerra completou 27 anos, e “tudo saiu da mente”.
2.3 MAIS SOFRIMENTO E O SANTO
Durante o período entre 1954 e 1961, Bezerra da Silva viveu na rua, desprezado pela família e sem conseguir trabalho, seja na obra ou como músico. O artista relata que, sem saber ao certo o que aconteceu, tudo lhe fugiu da cabeça e ele foi pra sarjeta. Nesta fase, experimenta sete anos de abstinência sexual, o que levou, em parte, ao descrédito do amor romântico. Esse período, “observado como de intenso sofrimento e aprendizado sobre a essência humana,” (Vianna, 1998), é descrito por Bezerra sempre em reforço de sua estigmatização enquanto “duplamente pobre”, por ser nordestino e favelado (ou pobre, ou mendigo!). A condição de miséria o acompanha, em todos os relatos, de forma a criar um enredo beirando o tragicômico. Desde a recusa das mulheres até o dia em que foi humilhado pelos próprios mendigos, se tornando um pária entre os párias, Bezerra sobreviveu comendo o que catava do chão e arrumando jeitos nada ortodoxos de descolar o pão.
A respeito do episódio desta humilhação, é importante citá-lo pormenorizadamente por sua implicação no enredo de acontecimentos que aproximam Bezerra da umbanda e culminam em sua conversão. Certa noite, Bezerra foi dormir próximo a outros mendigos, em uma pedra na praia. Porém, uma onda mais forte os atingiu, e o chefe do bando disse que tinha alguém ali muito carregado, pois dormia ali há anos e nunca algo semelhante se passara. Único estranho no grupo, o músico foi logo identificado como portador destas forças negativas e expulso dali. Ao sair, desconsolado, pela orla, olha cabisbaixo para uma mulher, que se afasta e grita: “Sai fora, exu!!!”. Humilhado, vilipendiado, desalojadas as esperanças, logo Bezerra decide se entregar e acabar com a própria vida.
Neste momento, começa a sua história com a Umbanda. No meio do mato, com um copo de formicida na mão e uma resolução: aquilo não era vida, portanto não havia motivos para mantê-la. Porém, na hora de beber o veneno, sentiu um tapa e o copo voou de sua mão. Bezerra era incapaz até de se matar, e, conforme foi saber depois, sua morte não estava nos planos do Caboclo Rompe Mato. Dias após, ao visitar Paula, uma amiga que às vezes lhe dava pouso, café e lhe lavava as roupas – como algumas pessoas o faziam, no morro do Cantagalo – Bezerra recebe um cartão e um conselho.
Devia procurar, urgentemente, o terreiro do Caboclo Junco verde, de Dona Iracema, em Rocha Miranda. Lá encontraria a cura para sua “doença mental”. Utilizarei este termo entre aspas pois não existe relato de um diagnóstico médico de doença mental em Bezerra da Silva. Entretanto, este reconheceu em entrevistas tal categoria para designar o período de sofrimento na rua e aprendizado da Umbanda. Não faço a escolha deste termo, pois que Bezerra o fez. Cumpre respeitá-lo não apenas enquanto objeto de estudo, mas, e primordialmente, como interlocutor.
Devo aqui traçar alguns comentários sobre o processo de cura na umbanda, de modo a tornar inteligível o ritual abaixo descrito. As religiões de matriz afro-brasileira, aqui representadas pelo candomblé e pela umbanda, são possuidoras de um grande repertório mágico e ritual, o que as inseriu, no mercado religioso enquanto entreposto de curas e auxílios mágicos para os mais diversos males do corpo e da alma. Essa posição de destaque enquanto portadoras de conhecimentos ocultos e poderosos lhes conferiram, além de um percentual do mercado divino, também um grande estigma por parte dos intelectuais e dos católicos ortodoxos. Enquanto Nina Rodrigues alçava as religiões afro-brasileiras à categoria de principais responsáveis pelo atraso nacional, o que se notava era uma hibridação com o catolicismo popular, através da qual uma grande parcela de católicos travou contato com os referenciais teórico/mágicos da umbanda, em especial, e do candomblé, em menor grau.
Estes semi-neófitos católicos - que iam à missa todo domingo, mas às vezes procuravam os terreiros em busca de soluções rápidas para problemas práticos - tornaram-se agentes legitimadores de alguns aspectos dos cultos afro-brasileiros, o que passou a incomodar os prelados católicos responsáveis pela ortodoxia religiosa. Mas não era enquanto conjunto simbólico organizador que esta parcela da população branca e esclarecida procurava o auxílio da umbanda, e sim enquanto arcabouço de mecanismos de cura física e espiritual. Gilberto Freyre demonstrava o espanto terrífico dos homens da ciência em saber que, cada vez mais, não somente as camadas populares, mas também a classe média continuava a procurar “em momentos de aflição, não aos doutores médicos, nos seus consultórios, nem aos doutores da Igreja, nas suas matrizes, nos seus confessionários, nos seus colégios, mas a babalorixás, a orixás, aos equivalentes negro-africanos desses médicos e desses padres brancos” (Freyre, s/d: 194, 195).
Neste sentido, considero que a procura de curas alternativas como a umbanda trata mais de substituir um sistema de crenças mecânico, frio e estatístico, como a medicina moderna, por um conjunto de práticas rituais e crenças que, restituindo ao paciente a ordem em meio ao caos - através da atribuição sistemática de signos e significados - acaba por lhe restaurar a saúde, tanto física como mental. Enquanto a cura propiciada pela umbanda despertava o interesse de segmentos cada vez mais diversificados da sociedade brasileira, e estando essa mesma cura ligada a aspectos rituais e mitológicos que só fazem sentido no universo simbólico umbandista, não é difícil imaginar que grande número dos que se submetiam (e se
submetem) a este tratamento alternativo acabassem por estreitar laços até passarem por um processo de conversão. Este foi um dos grandes fatores do crescimento do número de adeptos e frequentadores deste culto.
Para os adeptos da umbanda, o corpo e a mente constituem uma unidade, que pertence ao mundo físico e se contrapõe ao cósmico, espiritual. As doenças são relacionadas a encostos, más influências de terceiros, trabalhos feitos, além de remeterem às faltas não expiadas em vidas passadas, e até enquanto conseqüência de uma mediunidade ainda escondida, passível e necessitada de desenvolvimento. A Terra é entendida como planeta de trevas e de expiação, onde os homens carregam uma série de defeitos que devem ser corrigidos na busca de um desenvolvimento espiritual pleno. E, neste percurso o auxílio dos guias, e sua conseqüente proteção, são de extrema valia para livrar o homem de toda a sorte de más influências.
Neste contexto, a “doença mental” é também resultado destas manifestações espirituais complexas e relacionais. O ocorrido com Bezerra da Silva guarda similitudes com o caso de D. Teresa, analisado por Magnani em seu artigo sobre a doença mental e a cura na umbanda, (Magnani, 2002) e também de Rose, analisado por Souza (1998). Embora sempre tratada em referência ao plano espiritual, a doença mental não é diretamente vinculada a fatores sobrenaturais. Antes, resulta de conflitos práticos e até simplórios. Enquanto os teóricos da umbanda intelectualizada buscam relacionar tudo à interferência cósmica na vida prática dos adeptos, nos terreiros mais populares - e por isso mais colados ao cotidiano de seus participantes – o modus operandi privilegia “menos a coerência doutrinária que a busca de alívio para os problemas concretos e existenciais daqueles que os procuram”. (Magnani, 2002)
Neste momento, por considerar extremamente adequada para os objetivos desta pesquisa a ótima descrição de Letícia Vianna, reproduzirei e me utilizarei desta para ilustrar o princípio da iniciação de Bezerra no ethos umbandista, bem como seus primeiros passos nessa crença.
Quando Bezerra da Silva chegou lá (no terreiro Caboclo Junco Verde), dona Iracema estava incorporada com uma preta velha que foi logo lhe chamando e explicando a razão de seu infortúnio. Mostrou num copo com água o rosto de uma mulher que ele havia magoado e que tinha feito um trabalho pra ele. Não era tudo. Também um Exu que ele havia desacatado numa discussão com uma outra mulher resolveu se vingar. Sua única saída era “botar roupa branca e fazer caridade”, se converter à umbanda e seguir a carreira musical.
“Aí, quando eu cheguei na porta, ela aí olhou pra mim, mandou afastar todo mundo e disse: ´Deixa ele chegar.` Aí eu fui e ia abrindo a boca e ela: ´Você não precisa falar nada, você só vai ouvir. Você veio pra saber da sua situação ou veio me ensinar? Então você cala a sua boca... se eu falar uma mentira pra você e você falar que é verdade vai ficar pior pra você, você não vai me agradar.` Aí eu falei: ´Tá legal.` Ela tava incorporada com a vovó Henriqueta, que é a entidade que nós chamamos de guia, né. Essa entidade começou a contar a minha história desde o dia em que nasci. Negócio engraçado, né: ´Você lembra disso assim assim e tal, você era pequeno, tava lá no norte e aconteceu isso e isso.` Até uma surra que levei da minha mãe por causa de quatrocentos réis que eu tirei pra comprar uma pipa, ela contou tudo, tudo. Ela falou: ´Você ta lembrado de um dia que você discutiu com uma mulher e mandou o Tranca Ruas enfiar o bife naquele lugar?´ Ela falou bem claro assim, aquela coisa de velha malcriada, né. ´Você tá lembrado?´ Eu falei que tava, eu realmente discuti com uma mulher. Aí ela disse: ´Então você mandou o Tranca Ruas enfiar o bife no fiofó dele, ele foi e enfiou no seu... é ele que ta fazendo isso contigo. Você já ta na sarjeta a três anos e ainda vai ficar mais.` Ela aí chegou pra mim e falou o seguinte: ´Não pensa em mulher agora não. Você sabe quem foi que fez isso?` Ela aí chamou o cambono dela e pediu um copo com água, bem clara assim, e fez lá um negócio, e falou assim: ´Olha.` Quando eu olhei, aí eu vi a cara de uma mulher, né, ela tava rindo. Aí a vovó disse: ´Você conhece? Ela tem rancor de você.` Aí ela disse:´Tem outra coisa´- chamou uma pessoa e disse: ´Dá um prato de comida a ele porque vai fazer seguramente dois dias que ele não come nada.` Aí eu comi tudo e, então, ela disse assim: ´Agora só tem uma coisa, você quer sair disso aí? Não adianta fazer despacho, obrigação. Não adianta fazer nada, botar comida pro santo, comida pra Exu, nada disse. Pode comprar boi, elefante...` Aí eu perguntei: ´Então qual é o jeito?`, e ela respondeu: ´O jeito é você mesmo. Você vai ter que botar roupa branca, desenvolver seu espírito e fazer caridade porque já passou da hora; é por isso que eles saíram da frente e te abandonaram. Tem mais, você não nasceu para ser pintor, o seu mundo é a música.` Mas a minha linha, a minha nação não era ali. Aí ela disse: ´Não tem problema não, vovó vai encaminhar você para o lugar certo.` Bezerra da Silva foi encaminhado para um terreiro na Gávea que trabalhava com a linha do seu guia. O terreiro ficava na rua embaixador Graça Aranha e era chefiado por Nilo de Almeida Filho. “Aí é que eu fui conhecer a verdade sobre a minha pessoa.” Chegando lá, seu Ogum – o Caboclo Rompe Mato – veio logo esclarecer o episódio do suicídio evitado e disse que ele deveria ficar ali trabalhando e aprendendo os preceitos da umbanda. Quando fosse absolvido, ele, seu Ogum, lhe daria uma casa. Bezerra da Silva ficou lá por quatro anos e se tornou médium. Um dia, em 1961, seu Ogum disse que a pena estava cumprida, bezerra podia ir embora e ganharia uma casa. Quando saiu do terreiro um sujeito que ia passando lhe entregou uma chave, disse que ia voltar para o Nordeste e que Bezerra da Silva podia ficar com seu barraco. (Vianna, 1998.)
Devemos destacar o caráter interpretativo da definição e explicação de uma doença, ato que envolve reflexão e distanciamento. O sujeito vislumbra suas próprias experiências em retrospectiva, já fora dos acontecimentos. Estas experiências, interpretadas, aparecem então dotadas de um sentido que, à luz de um projeto comandado por uma visão de futuro, irá dotar de coerência a narrativa. O surgimento de uma doença impõe, então, a problematização a respeito do por que da enfermidade ao mesmo tempo em que incita à reflexão sobre a própria trajetória e sua percepção enquanto sujeito.
A reinterpretação do passado à luz das circunstâncias atuais e dos projetos que estão orientando as ações dos indivíduos se faz concomitantemente a um processo de reconstituição da identidade. No ato de reconstruir narrativamente uma trajetória em que não apenas um caso de doença, mas a própria biografia do indivíduo é refeita, procura-se encobrir inconsistências e preencher lacunas presentes na história.(Souza, 1998: 165)
Convém observar, nesta descrição toda em primeira pessoa, o caráter de revelação destas primeiras visitas aos terreiros de umbanda, onde finalmente Bezerra conhece “a verdade” sobre sua pessoa e sobre seu lugar no mundo, seu papel enquanto Sujeito. Bezerra estava ali em busca de auxílio e alívio espiritual, e para isso era necessário saber quem (ou o quê) estava atormentando-o. Para isso, a mãe de santo faz uma investigação mediúnica da vida pregressa do paciente para descobrir os pontos críticos onde surgiu a doença e estabelecer, a partir destes dados e de todo um repertório mitológico próprio, uma alternativa de cura.
Ao acessar, por meio do ritual, o arcabouço de significados próprio das concepções religiosas, e depois regressar para o mundo do senso comum, o homem muda e também modifica este último, visto agora como “uma forma parcial de uma realidade mais ampla que o corrige e o completa” (Geertz, 1989). Bezerra havia reconstruído, em um ritual, sua trajetória de vida, inserindo explicações religiosas para lacunas significativas. Tanto nos mitos como nos rituais, os valores aparecem como condições de vida impostas, implícitas em um mundo de estrutura particular.
Para Geertz, a falta de sentido de uma dor intensa, a opacidade incomum de acontecimentos empíricos, tudo isso nos leva a suspeitar que o mundo e consequentemente, a vida do homem no mundo, sejam carentes de ordem, sem regularidade empírica ou coerência moral. Para ele,
A resposta religiosa a essa suspeita é sempre a mesma: a formulação, por meio de símbolos, de uma imagem de tal ordem genuína do mundo, que dará conta e até celebrará as ambiguidades percebidas, os enigmas e paradoxos da experiência humana. O esforço não é para negar o inegável – que existem acontecimentos inexplicados, que a vida machuca ou que a chuva cai sobre o justo – mas para negar que existam acontecimentos inexplicáveis, que a vida é insuportável e que a justiça é uma miragem. (Geertz, 1989: 79)
Bezerra era agora portador desta resposta religiosa por meio da umbanda. Sofria as conseqüências de um desaforo que fez a exu. Exus e suas representações femininas, as pombas-gira, são, na Umbanda, antes representações coletivas do que espíritos individuais. Geralmente suas representações são como baianos, estivadores, ciganos; malandros que viviam de pequenos delitos, como a cafetinagem; e prostitutas e mulheres espalhafatosas e sensuais. Considerados mitologicamente os mensageiros dos homens com os deuses, os exus podem tanto facilitar quanto atrapalhar a trajetória de uma pessoa. Por conta de seu delito, Bezerra precisaria trabalhar-se espiritualmente até que o exu lhe absolvesse.
Ao se iniciar na umbanda, Bezerra passa de um estado de extrema desagregação social para o convívio presente de toda uma comunidade religiosa fortemente marcada por laços de solidariedade e ajuda mútua. Através da reconstrução ritual de sua biografia, o que era entendido como loucura adquiriu inteligibilidade. Em um contexto e espaço ritual, ao lado de pessoas com experiências semelhantes, o neófito (Bezerra) poderá desenvolver-se através de um espectro largo de possibilidades, “passando a manifestar-se através de um código legitimado por referência aos mitos que lhe dão sustentação”.
O tratamento realizado no terreiro, em vez de isolar o louco do convívio dos sãos, é integrador em vários níveis, pois fornece-lhe uma linguagem para exprimir sua loucura; ensina-lhe a conviver com ela, permitindo um reordenamento de tendências e pulsões desagregadoras; integra-o no grupo dos demais praticantes e o re-situa no meio de um grupo que não o vê como anormal, mas, ao contrário, como portador de uma missão. (Magnani, 2002)
No caso de Bezerra, a umbanda cumpre a função de “alternativa que restitui o sentido da vida, os princípios de identidade e os parâmetros para a conduta.” (Vianna, 1998). Após sete anos de mendicância, Bezerra finalmente ”conhecia quem era e para que estava no mundo.”
A religião, antes de mais nada, oferece um conjunto de certezas que constituem pontos de referência diante da imprevisibilidade da vida cotidiana. Se nem sempre evita o sofrimento, torna-o inteligível, dá-lhe um significado. Princípio integrador de acontecimentos que em sua incoerência se apresentam como insuportáveis, propicia a introdução de uma ordem no caos.(Vianna, 1998)
2.4 NOVAMENTE, (E DEFINITIVAMENTE) O SAMBA
Residente agora do Parque Proletário da Gávea, em um barraco cuja mobília se resume a uma esteira e uma cadeira, Bezerra vê as coisas melhorarem aos poucos. Agora é pintor, de volta à construção civil, e aparecem free lances no rádio. Pouco tempo depois, já figura como instrumentista em álbuns de sambistas do quilate de Clementina de Jesus. Nesta nova fase, inicia-se como intérprete e compositor. Um dos seus sambas, em parceria comercial com um diretor da gravadora, ganha um concurso de Carnaval na Rádio Nacional, em 1965. Bezerra tornava-se, pouco a pouco, conhecido no meio musical carioca.
No mesmo ano, Bezerra se junta com uma moça que conheceu no Cantagalo, e com ela viveu 22 anos e teve seis filhos. Três morreram pequenos e um jovem, sobrando Thalamy e Ulisses. Sua esposa, alcoólatra, faleceu quando já estavam separados. Bezerra casaria novamente em 1983, com Regina de Oliveira, conhecida a partir de então – em sua carreira de compositora e produtora – pelo pseudônimo de Regina do Bezerra. Ela, que já tinha três filhos, foi a companheira de Bezerra até o falecimento deste. Bezerra teve ainda mais duas filhas, fora da união estável.
Após a conversão à umbanda, concomitante à revelação - durante uma cura mágico-ritual - de que seu caminho era a música, tudo caminhara depressa na vida de Bezerra. Estava casado, e pouco mais de três anos após ser absolvido por seu guia, Bezerra realiza um sonho: em 1969, grava seu primeiro disco, pela Copacabana Discos, contendo duas faixas: Essa viola é testemunha e Mana cadê meu boi.
Já no ano seguinte, ocorre a gravação do seu primeiro Long Play (LP), pela Tapecar, que, devido à crise do petróleo, só seria prensado cinco anos depois. Este disco, Bezerra da Silva o rei do Coco, ainda era uma coletânea de músicas deste ritmo nordestino, mas já prenunciava o rumo que a carreira de intérprete tomaria, marcada sempre pela irreverência e pela tentativa de construção de sua cadeia de esclarecimento.
Em 1976, lança a seu segundo e último disco de coco, homônimo ao primeiro. Entre a gravação e o lançamento deste primeiro LP, ocorre um fato que representaria forte mudança não só no cotidiano do artista como em sua forma de representar o mundo através de sua música. “Como Bicho”, Bezerra e a mulher são transferidos para Cascadura, em um dos remanejamentos populacionais ordenados pelo governador Carlos Lacerda, que pretendia acabar com as favelas na zona central do Rio e próximas a balneários e áreas de interesse urbanístico e turístico. Tais medidas tiveram impacto, além dos sócio-culturais facilmente perceptíveis, também na geografia do Rio de Janeiro, através de remoções de morros e de aterros, como o do Flamengo, e na formação da maioria das favelas hoje associadas ao narcotráfico. Justamente neste período, começa a se organizar um comércio em torno das drogas ilícitas, ainda sem Comandos Vermelhos e Pcc´s, mas já os tendo em seu embrião.
Bezerra estava gravando um disco com Osvaldo Sargentelli quando sua esposa foi obrigada a se mudar, sem aviso prévio ou auxílio, para a localidade afastada de Cascadura, novo endereço de uma vida migrante no Rio de Janeiro. Além da forma brusca e precipitada desta remoção, também causou inúmeros problemas para o artista, que como a maior parte dos remanejados, trabalhava muito distante de seu novo local de moradia. O próprio Bezerra relata o medo que os novos moradores sentiam, pois a Companhia de Habitação ameaçava os inadimplentes com outra remoção, para mais distante ainda. Segundo o artista, “se o cara vivia na favela por que não tinha dinheiro pra ter uma casa, como é que ia pagar prestação, condomínio, luz, gás e sei lá mais o quê?” (Vianna, 1998)
Porém, a despeito de todos os problemas desta operação, sua carreira de músico ia cada vez melhor. Com a assinatura de um contrato com a Rede Globo para figurar entre os instrumentistas de sua orquestra – convite este surgido durante um show de Elizeth Cardoso, do qual Bezerra participava – este pôde finalmente abandonar a construção civil para viver exclusivamente da música. Nesta época, por ocasião do concurso para a Ordem dos Músicos do Brasil, Bezerra começou a estudar teoria musical e violão clássico. Pegou gosto e estudou música até a sua morte. Na Globo, permaneceu oito anos, só saindo de lá quando, em sua avaliação pessoal, já tinha asas (e um relativo sucesso como intérprete) para se lançar em uma carreira solo.
Com a gravação de seu terceiro disco, (o primeiro de partido alto, com a participação de Genaro), já em 1978, Bezerra começa mais uma migração, da música nordestina para a categoria de samba acima mencionada, na qual experimentaria um retumbante sucesso. Com o lançamento, nos anos seguintes, do volume 2 e 3 do Partido Alto nota 10, Bezerra firma de vez seu nome enquanto intérprete e compositor, mas esta segunda atribuição ele abandonaria, paulatinamente, nos LP´s seguintes.
Encerrado o contrato com a CID, o artista fechou contrato com a RCA.
Porém, por conta da má administração da gravadora, que preferia garantir a hegemonia de outro sambista de seu casting, Bezerra se desentende com a gravadora, que, segundo ele, falsificava seus balanços de venda para pagar-lhe menos que o devido. Tal estratégia foi largamente utilizada em tempos onde não havia – e mesmo hoje há pouca – regulamentação e fiscalização quanto aos direitos autorais. A este respeito, Vianna destaca que Bezerra “se tornou vítima de uma estratégia de dominação tradicional da elite patronal brasileira, (...) a ´imobilização da força de trabalho pela moradia`” (p.36). De fato, Bezerra havia pedido ao presidente da gravadora a compra de um apartamento na zona sul, pois estava sem casa própria desde a remoção do Parque Proletário da Gávea. Diante da concordância do presidente, Bezerra comprou um apartamento que iria pagar de acordo com a vendagem de seus discos. “Aí foi o vacilo do malandro, que é analfabeto, acredita nas pessoas.” É assim que o artista concebe o início das falsificações das quais foi vítima, e que acarretaram uma dívida praticamente impagável e o rompimento do contrato com a RCA, ocorrido em 1993.
Em 1984, novamente casado, Bezerra finalmente estava confiante na força de seu trabalho e, embora tivesse passado por diversas categorias dentro do mundo musical – instrumentista de rádio, orquestra, estúdio, parceiro, compositor – era na carreira de intérprete que iria focar atenções. Mas, devido aos problemas de distribuição da sua gravadora, já expostos acima, criou estratégias próprias de comunicação e divulgação de seus trabalhos, e começou a também criar polêmicas.
2.5 Bezerra - Cantor de sambandido
Tais estratégias, que incluíam shows nas comunidades pobres e distribuição de discos nas rádios comunitárias das favelas, frutificaram polêmicas sobre a forma de financiamento destes shows, uma vez a entrada era franca e geralmente ocorriam em praças da própria comunidade. Muitos destes shows eram patrocinados por traficantes do já estabelecido comércio ilegal de drogas dos morros cariocas e por bicheiros, muitos deles intimamente ligados (até hoje) com as Escolas de Samba do carnaval carioca. Se esta estratégia tornou Bezerra conhecido em todos os morros do Rio de Janeiro, reciprocamente lhe fez conhecer muitas destas comunidades e com elas estabelecer laços de parceria e afeto. Logo foi empossado embaixador das favelas e porta voz dos morros, criando para si um nicho mercadológico próprio nada desprezível.
O sucesso de suas estratégias populares - e o envolvimento “em demasia” com os donos das favelas - porém, também lhe rendeu o estigma de cantor de bandido e colaborou para a cunhagem, por parte da imprensa, do termo sambandido para seu gênero. Para melhor ilustrarmos esta polêmica, observemos a música abaixo, que reforça o caráter do bandido enquanto protetor da comunidade.
Malandro Consciente
Malandro, você toma conta da favela
É você que espanta a fera que vive assombrando a gente
É que você é o malandro consciente
Você ajuda a nossa comunidade
Não deixa que o nosso salário de miséria mate de fome os filhos da gente
Você dá leite para as crianças, remédio para quem está doente
E comida para os mais carentes, ainda dá uma segurança total
Aquilo que a favela nunca teve, que é assistência social
Parabéns bom malandro
A comunidade pede a Deus, que ilumine seus caminhos
Não deixe o inimigo te alcançar
E você fique esperto, com os olhos bem abertos
Pra quando o traíra chegar
Porque o safado só sabe fazer covardia
Ele come no prato contigo, vê o seu contato e depois denuncia
Cuidado malandro
Nesta música, notamos claramente o papel do bandido – aqui chamado de malandro, embora Bezerra repetidas vezes dissesse que malandro não se impõe através das armas – como substituto de um governo ausente. O bandido é responsável pela segurança, alimentação, apoio à educação, saúde e até pelo assistencialismo tão característico dos governos brasileiro. Em troca, recebe a lealdade da comunidade, é bem quisto e “considerado”. Este samba, de notáveis alusões ao traficante José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, famoso por ser o “defensor da comunidade” do morro do Juramento, deveras espoliada dos cuidados governamentais, inaugura uma série de sambas polêmicos que tecem uma reportagem cronológica da carreira do traficante e mais especificamente, de sua prisão.
Este papel de provedor e mantenedor da comunidade foi muito associado, até o começo da década de 90, aos traficantes que, ocupando o vazio deixado pelo governo municipal e estadual, criavam regras de conduta própria para seu reduto e delas se utilizavam para criar estados de exceção dentro do Estado democrático maior.
Muitos destes “governos locais”, a exemplo do exercido por Escadinha no morro do Juramento, realmente favoreciam a população mais carente, não apenas com a garantia da proteção, mas, também, através de obras assistencialistas, meio de atuação mais praticado por nossos governos. Também mais eficiente em termos de aquisição de votos.
Notamos, no final deste samba, um aviso de que se o bandido não se prevenisse, estaria abrindo caminho para outra figura característica do universo de bezerra: o traíra. Dito e feito! Vejamos a letra de O Juramento Jurou, que tem entre seus compositores a mulher de Bezerra, Regina de Oliveira.
O Juramento Jurou
Se ele é delator ele não é malandro, vê se presta atenção
Se ele é delator ele não é malandro, ele é um corujão
No meio da massa era considerado, no Juramento o safado chegou
Comeu, bebeu, curtiu, sambou, checou a parada e depois se mandou
Má notícia, no outro dia o jornal vem dizendo Escadinha dançou
Morro chocado, cruzeiro apagado, verdade nua e crua
Trabalhadores, mulheres e crianças chorando na rua
Mas existe a esperança na explosão dos foguetes
O Juramento jurou que vai passar o rodo naquele caguete.
A profecia se concretiza, e o delator entrega o bandido. Escadinha está preso, o Juramento em lágrimas, mas a lei do morro é implacável, e o cagüete terá sua paga. Por ocasião do julgamento de Escadinha, Bezerra grava Meu Bom Juiz, na qual faz uma defesa emocionada do traficante.
Meu Bom Juiz
(Gutaum)
Ah, meu bom juiz
Não bata este martelo nem dê a sentença
Antes de ouvir o que o meu samba diz..
Pois este homem nao é tao ruim quanto o senhor pensa
Vou provar que lá no morro.. (2x)
Vou provar que lá no morro
Ele é rei, coroado pela gente..
É que eu mergulhei na fantasia e sonhei, doutor
Com o reinado diferente
É mas nao se pode na vida eu sei
Sim, ser um líder eternamente
Homem é gente..
Mas nao se pode na vida eu sei
Sim, ser um líder eternamente
Meu bom doutor,
O morro é pobre e a probreza nao é vista com franqueza
Nos olhos desse pessoal intelectual
Mas quando alguem se inclina com vontade
Em prol da comunidade, jamais será marginal
Buscando um jeito de ajudar o pobre
Quem quiser cobrar que cobre, pra mim isto é muito legal
Eu vi todo juramento, triste e chorando de dor
Se o senhor presenciasse chorava também doutor...
Neste samba, ocorre um reforço da imagem de morro abandonado pelos poderes estabelecidos, fazendo com que o surgimento de um contra-poder – no caso o narcotráfico – seja tolerado e até bem quisto por aqueles que dele dependem. Em súplica ao juiz, o autor pede a não condenação do traficante Escadinha, contestando a “maldade” sempre associada aos bandidos que se dedicam a esta modalidade de crime.
Se o traficante é rei no morro, onde a pobreza não ganha a devida atenção “desse pessoal intelectual”, como a comunidade vai se virar com a sua condenação? O morro chora com veredicto, outra vez desfavorável aos seus anseios, pois está agora – assim como Bezerra em relação a seu pai – duplamente órfão. O bandido que cobra o pedágio pra subir e pra descer o morro, que achaca o trabalhador, também pode ser aquele que constrói a creche comunitária. Esta relação de caráter duplo, relacional, também é temática central na cadeia de esclarecimento criada por Bezerra. Duplo não no sentido de antagônico ou maniqueísta, mas sempre relacional. Ao tratarmos da umbanda, mais adiante, retomaremos este tópico.
No samba Cobra Mandada, Bezerra refuta as acusações de estar coadunado com os bandidos, mas tece também uma crítica ao modus operandi de muitos políticos, que, flagrante descaso após eleitos, acabam por facilitar que os traficantes tomem conta das comunidades. Após sua experiência com a RCA, Bezerra confirmou o poder midiático dos veículos de propagação de idéias de longo alcance, que chega mesmo a boicotar quem se oponha a seus métodos. Bezerra considerou então necessário criar sua própria rede de informação, para que o povão que escutava seus discos pudesse também conhecer “o outro lado da moeda”.
Uma vez que a “seu povo”, oprimido e marginalizado, embora ciente de suas condições – e atuante em busca de mudanças, mesmo que por caminhos paralelos à legalidade – não era dado o poder de esclarecimento da grande mídia, Bezerra buscou se utilizar do espaço alcançado para transmitir, através de sua obra, a “verdadeira história do povo pobre”. Quanto a isso, destaco as palavras de Alba Zaluar.
O que eu quero sublinhar é a diferença entre a língua e os costumes ou a cultura que me leva (...) a criticar a idéia de código ou estrutura inconsciente quando aplicada às práticas sociais. Os pobres urbanos, descobri, como quaisquer seres humanos, pensam a respeito de suas condições de vida e dos inúmeros valores, normas, regras e significados com que costumam ser “educados” ou “formados” pelas inúmeras agências estatais e religiosas, bem como pelos meios de comunicação em massa. (Zaluar, 1985: 28)
Vamos ao samba:
Olha aí o que eles estão dizendo,
Que eu sou violento e não falo de amor
Que o meu repertório é só crime
E até de bandido eu virei defensor.
É cobra mandada querendo picar meu calcanhar (4x)
Vejam bem,
A elite selvagem é que gera miséria em toda nação,
E por isso condena meu samba porque esclarece o povão
Que tá no sufoco mas compra meu disco pra ficar por dentro da situação
Vejam só,
Todo X-9 apagado é motivo pra festa,
Político eleito dá linha na pipa e não cumpre a promessa
E daí colocaram a serpente no meu calcanhar,
Pra dizer que eu cafungo e que dou dois,
Mas na realidade não podem provar
É que meu repertório é como do morro e põe meu ibope em primeiro lugar.
É cobra mandada querendo picar meu calcanhar (4x)
Neste samba, vemos também um recurso linguístico muito utilizado por Bezerra em suas músicas, e que ele mesmo qualificava de Cultura do Povo: a gíria. O ato de cheirar cocaína (cafungar), de fumar maconha (dar dois), e a figura quase onipresente em seus sambas, o X-9, delator, dedo duro, alcagüete, cagueta, enfim, o traidor, são exemplos deste uso que, além do objetivo de comunicar diretamente ao povo um ethos próprio do universo do qual o artista fazia parte, também servia para confundir os não habituados com este meio de expressão, evitando assim um recrudescimento maior da repressão.
Em entrevista a Rodrigo Teixeira, Bezerra fala deste samba e da perseguição pela imprensa: “Eu sou muito criticado. Mas respondo aos inimigos com o sucesso. A imprensa não se cansa de falar que sou cantor de bandido, embaixador da favela, amigo do Escadinha... Pintaram o diabo comigo só porque eu canto uma realidade. Se eu sou embaixador da favela, então eu sou embaixador do que não presta. Não é isto? Tenho de rir, porque na minha folha penal é “nada consta” e eles é que são direitinho.”
Acrescente a essas músicas todo o repertório de Bezerra acerca das drogas, em especial no tocante à maconha, e outra polêmica estava instaurada. Dos frutos desta segunda polêmica trataremos adiante, ao denotarmos o envolvimento – ou apropriação – de sua obra pelo movimento pró-legalização da cannabis.
Mas, além da imprensa, da grande mídia ainda não ter digerido o partido alto de Bezerra, sua posição como intérprete já havia estabelecido, e se agora o dinheiro não chegasse à farta, a questão da sobrevivência já não lhe tirava o sono. Bezerra era enfim, um grande sucesso.
2.6 A CONSAGRAÇÃO E O “CRENTE”
A partir de 1993, bezerra passa a gravar pela CID e pela RGE. Em 1995, por ocasião da vinda dos Três Tenores22 ao Rio de Janeiro, Bezerra reuniu seus amigos Moreira da Silva e Dicró para montarem um show nas escadarias do Teatro Municipal. Mas Tinha que ser de graça. Este encontro pariu o disco Três Malandros in Concert, também em 1995.
Embora estivesse com sua popularidade em alta, por conta das regravações de seus sucesso por bandas nacionais, Bezerra da Silva passou a gravar menos e com maior periodicidade entre os lançamentos. A carreira – a exemplo da vida - ainda não estava de todo estabilizada. Seu casamento com Regina ia bem. Boa companheira e administradora, ainda compunha alguns de seus sucessos. Mas Bezerra estava com bronquite, e a grana, cada vez mais rara, vinha toda do salão de beleza de Regina. Uma madrugada, enquanto assistiam o Programa Ponto de Luz, da IURD, na rede Record – também de propriedade da IURD – eles se depararam com casos muito parecidos com os seus, de saúde e financeiros. Diante dos depoimentos, os dois se converteram ali mesmo, em frente ao televisor. Bezerra começa então a frequentar a Igreja Universal do Reino de Deus, expoente máximo de todo o desenvolvimento da terceira onda pentecostal no Brasil, se convertendo finalmente aos setenta e quatro anos, em 2001.
Esta segunda conversão, embora não tenha influenciado no desenvolvimento de sua obra, toda ela anterior a este período – com exceção do CD Meu Bom Juiz - acabou gerando um fruto musical, o CD Caminho da Luz, lançado de forma independente e com repertório totalmente composto de músicas com temática cristã. Músicas como Meu Jesus, A Chave do Milagre e Nossos Irmãos, compunham este disco de pagode “gospel”. É interessante observar que muitos de seus parceiros e amigos compositores – Regina também compõe para este disco - estão presentes neste trabalho, e que o caminho de conversão trilhado por Bezerra é o mesmo de muitos deles.
Bezerra faleceu na nova fé.
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