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segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

URARIANO MOTA AOS PROFESSORES DO RECIFE: A ELITE BRASILEIRA É BURRA

Por Urariano Mota




Conto o que vi no último domingo, sem tirar nem pôr na medida do possível.

No chamado Marco Zero do Recife, fazia-se mais um encontro de amantes do frevo. Ali, tocava uma orquestra afinada, passistas faziam um passo de acrobata, gente de muitas idades e lugares. Havia gente até do exterior, poderia completar um recifense mais exaltado. Tudo muito bom, tanto a ideia do encontro quanto a execução. Mas eis que de repente, no azul do céu do cais, foi anunciado o frevo de blocoEvocação nº 1, de Nelson Ferreira. Para mim, coisa melhor não há, e me deixei ficar em desarmada prelibação do que viria. Um calor de felicidade correu no peito em atenção à lembrança que guardamos da letra, da canção, do coral de Batutas de São José, do tempo imorredouro da melodia. Então a voz da cantora soltou:

“Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon

Cadê teus blocos famosos?

Bloco das flores, Andaluzas, Pirilampos, Apois-fum

Dos carnavais saudosos

Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon

Cadê teus blocos famosos?

Bloco das flores, Andaluzas, Pirilampos, Apois-fum

Dos carnavais saudosos

Na alta madrugada

O coro entoava

Do bloco a marcha-regresso

E era o sucesso dos tempos ideais

Do velho Raul Moraes

Adeus, adeus, minha gente

Que já cantamos bastante

Recife adormecia

Ficava a sonhar

Ao som da triste melodia”

No entanto, essa reprodução da letra do Evocação nº 1 acima não diz bem o que ouvi, porque outra canção se fez presente, já no começo. A cantora cometeu um “Fê-linto”. De imediato, esclareço que tal variação na prosódia local não é um coisa boba, sem importância. Nós estamos falando de um hino da cidade. Trata-se de uma das maiores obras do maestro Nelson Ferreira. Mas não antecipemos o melhor que aconteceu a partir daí.

Terminado o número, fui ao apresentador do encontro e lhe fiz ver que aquela “pronúncia” não era conforme a original. Então ele me respondeu com o ar mais puro e inocente da tarde no Marco Zero:

- Todos cantam assim.

Ah, bom. Se todos sacrificam igual, tudo certo. Mas isso não é verdade. Eu lhe respondi:

- Olhe, a gravação original da Evocação nº 1 não é assim.

O rapaz ficou atônito. Que enrascada, que coisa mais chata é esse cara vir dizer que estão cantando mal Nelson Ferreira. Mas ele – creiam, é verdade – foi salvo por uma senhora, que a tudo ouvia e, mesmo sem ser chamada, achou por bem intervir. Ela me mostrou o celular onde estava a letra da Evocação no trecho “Felinto, Pedro Salgado….”. E me disse:

- Está vendo? É assim que se escreve: Fê-lin-tô.

Toma, além de me ver como um homem sem memória, ela me fazia um indivíduo que não sabia nem ler. Eu lhe respondi:

- É assim que a senhora lê? Fê-lin-tô?

- Sim - E me fitou de cima a baixo, indignada, como a me responder “se o senhor não sabe ler, problema seu”, mas veio mais suave, digamos, porque me disse, autoritária: – Eu sou professora de português.

Eu lhe respondi:

- Então a senhora sabe que as palavras não se leem como se escrevem.

- É? Saiba que português não é inglês. É diferente: aqui a gente lê como se escreve.

Vocês veem que era um diálogo quase impossível. Uma verdadeira peleja do bem, que é o novo costume, contra o mal, que pesquisa a história de uma cidade. E o mal sempre perde no fim, diante do blockbuster. Mas para o leitor, retomo a palavra que não pôde ser ouvida.

Primeiro, ouça, escute a gravação original aqui . Filinto, não é?




Depois, ouça os Fê-lintos.




E até com o Bloco da Saudade, que vai na mesma onda:




Antes de continuar, lembro que a mudança no som das vogais não é exclusiva da Evocação no.1. Há um caso mais atropelador. Cantam agora, no Bloco da Vitória, do mesmo Nelson Ferreira: “quando o povo dê-cide”. Ora, o verso de Nelson vinha do refrão eleitoral “quando o povo diz Cid”. Ouçam, na imortal gravação aqui:




O original de O Bloco da Vitória, sucesso do carnaval de 1959, fazia um trocadilho entre “o povo diz Cid”, da campanha de Cid Sampaio, que venceu as eleições para o governo de Pernambuco em 1958, e o verbo decidir. Daí que “diz Cid” virou “decide” na letra e som. Mas jamais esta contrafação abaixo . Virou norma: o original cantado dicide, cuja origem é “diz Cid”, se transformou em “dê-cide”.




Mas por que isso se dá? Seria uma evolução natural da língua, que alcançou uma nova prosódia pernambucana? Penso que não, porque agora mesmo, enquanto escrevo, o povo do Recife, nos subúrbios de toda a cidade, não fala no modelo do “a palavra se lê como se escreve”. O que acontece, entre os cantores dos frevos de bloco, de classe média, é a reprodução de um modelo de fala que julgam culta, educada. É constrangedor ouvir, ver blocos de carnaval do Recife submissos à prosódia dos apresentadores da televisão. Cantam Nelson Ferreira traduzido para um modelo de locução que vem do Rio de Janeiro. Mas nada mais antipernambucano, nada mais violentador da história da cidade.

E nesta altura entram os professores, que educam as novas gerações, como a senhora que me ensinou a ler em seu celular. Muitos professores, pelo visto, ainda não foram informados de que não se deve falar como se escreve. Para ser mais claro: a leitura das palavras não é a cópia do que está escrito. Nessa última frase, se a lemos em voz alta, diremos: “alei tura dais palavras naum é a cópia du qui istá iscrito”, conforme dizemos, na fala do Recife .

Mais de um estudioso da língua já observou que “muitos profissionais que atuam na área de ensino da língua materna conseguem chegar à universidade (e por vezes sair dela) sem ter consciência das especificidades da fala em contraposição à escrita. Há quem acredite que se fala tal como se escreve e vice-versa”. Muitos professores ainda não sabem, pelo visto, que a norma padrão da língua portuguesa é a sistematização da variedade usada pelas elites socioeconômicas. O problema é que a elite brasileira é burra. Como assim, como é que é?! Sinto a cotovelada de um mestre irritado. A elite é burra?

É que a elite não sabe, e quando é informada, despreza, que a fala popular é a própria língua da história. Ela, a população, é que fala a língua culta, porque fala a língua histórica, que guarda um fio de continuidade entre a identidade de um lugar e a civilização.

Se os professores foram domesticados a falar como se escreve, ou melhor, como pensam que falam como escrevem, que renasçam urgente para a fala da nossa gente. Que saiam das salas de aula e gravem a fala popular nas feiras, nos mercados públicos. Tentem provocar a gente do povo para que fale as palavras, inclusive as menos educadas.. Aí aprenderão, os mestres, que Beberibe sempre foi Bibiribe, jamais Bê-bê-ribe.

No Dicionário Amoroso do Recife observei que a elite, representada nos doutores tradicionais, nos poderosos da comunicação nas tevês e rádios, ao pretender mandar no português, acha sempre que a fala de uma cidade ou não se deve falar ou se corrige. Pela massificação das telenovelas e dos telejornais, pelos locutores, não se trata nem de corrigir, o objetivo se transforma em divulgar uma nova fala, pela repetição como um hit parade da pronúncia. E em lugar de sotaque, a nova língua passa a ser uma ortoépia. Uma nova ortofonia, que vem a ser o “ramo da linguística que se concentra estritamente na correção dos traços fonológicos (acento, articulação dos fonemas, ligação entre eles, etc.)”.

Mais de uma vez pude notar que os apresentadores de telejornais possuem uma língua diferente da falada no Brasil. Mas a coisa se tornou mais séria quando percebi que, mesmo fora do trator absoluto do Jornal Nacional, os apresentadores locais, de cada região, também falam outra língua. O que me despertou foi uma reportagem sobre o trânsito na Avenida Beberibe, no bairro de Água Fria, que tão bem conheço. E não sei se foi um despertar ou um escândalo.

Na ocasião, o repórter, o apresentador, as chamadas da reportagem, somente chamavam Beberibe de Bê-Bê-ribe. O que era aquilo? É histórico, desde a mais tenra infância, que essa avenida sempre tenha sido chamada de Bibiribe, ainda que se escrevesse e se escreva Beberibe.

Essa é uma imposição que vem da matriz da Globo, lá no Rio. Ou seja, assim me informou uma pesquisa:

“Em 1974, a Rede Globo iniciou um treinamento dos repórteres de vídeo… Nesse período a fonoaudióloga Glorinha Beuttenmüller começou a trabalhar na Globo. Como conta Alice Maria, uma das idealizadoras do Jornal Nacional: “sentimos a necessidade de alguém que orientasse sua formação para que falassem com naturalidade”.

Foi nesta época, que Beuttenmüller começou a uniformizar a fala dos repórteres e locutores espalhados pelo país, amenizando os sotaques regionais. No seu trabalho de “definição de um padrão nacional, a fonoaudióloga se pautou nas decisões de um congresso de filologia realizado em Salvador, em 1956, no qual ficou acertado que a pronúncia-padrão do português falado no Brasil seria a do Rio de Janeiro”.

O tão natural Pernambuco, que dizemos Pér-nambúcu, se pronuncia agora como Pêr-nambúcô. E Petrolina, Pé-tró-lina, uma cidade de referência do desenvolvimento local, virou outra coisa: Pê-trô-lina. E mais este “Nóbel” da ortoépia televisiva: de tal maneira mudaram e mudam até os nomes das cidades nordestinas, que, acreditem, amigos, eu vi: sabedores que são da tendência regional de transformar o “o” em “u”, um repórter rebatizou a cidade de Juazeiro na Bahia. Virou JÔ-azeiro! O que tem lá a sua lógica: se o povo fala jUazeiro, só podia mesmo ser Jô-azeiro.

Então se compreende como os versos de Nelson Ferreira se falam pela nova maneira. Filinto virou Fê-linto, Dicide virou Dê-cide Até Felinho, o gênio universal das variações do frevo Vassourinhas, já existe quem o chame de Fê-linho, em lugar do nosso mais conhecido músico Fé-linho, o grande do frevo Formigão.

O meu apelo é que os professores gravem a própria fala no cotidiano, para comparar, se pensam que falam como se escreve. E descobrirão, se transcreverem o que tão cultamente pronunciam, que o “l” final é transformado em “u”, assim como o “o” final em múndu e imúndu, por exemplo. Quero dizer, mundo, imundo. Nôiti por Noite. Que se guiem pela volta ao poeta Manuel Bandeira, na Evocação do Recife

“A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil

Ao passo que nós

O que fazemos

É macaquear

A sintaxe lusíada”.

Que tempos, Manuel Bandeira. A sua Evocação do Recife não é mais “é-vocação”, nem é do “ré-cífi”. Virou ê-vô-cação dô rê-cífê”. Em vez da sintaxe lusíada, hoje macaqueamos a fala da televisão. E passamos a cantar Fê-linto, Dê-cídê, Fê-linho, dô Rê-cífê .

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