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domingo, 15 de fevereiro de 2015

CARNAVAL DO RECIFE: A ALEGRIA GUERREIRA - PARTE 01

Por Rita de Cássia Barbosa de Araújo*



No belo conto intitulado Restos do Carnaval, Clarice Lispector relata transportar-se para a infância, reencontrando imagens e sentimentos há muito experimentados e que pensava esquecidos. Lembranças do Carnaval, da cidade e das ruas do Recife em festa. Sua intimidade confundia-se, então, com a da própria cidade. Ambas ansiosas, aguardando o Carnaval. Ambas querendo expandir-se e revelar-se; ambas desejando que "enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate". Com a chegada das festas de Momo, a cidade desabrochava, a paisagem recifense e sua gente encontravam pleno sentido. Nesses dias, era como "se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas". Quanto à pequena foliona, poderia finalmente viver "a capacidade de prazer que era secreta" e permanecia contida em si (1).

Não por acaso, a memória da escritora que morou num velho sobrado da praça Maciel Pinheiro, em pleno coração do Recife nos anos 30 deste século, fixou a imagem das ruas e praças da capital pernambucana sendo festivamente ocupadas pelo povo.

Desde meados do século XIX, intensificando-se a partir de 1870, as manifestações carnavalescas passaram a ter curso preferencial mas não exclusivamente nos espaços públicos e ao ar livre da cidade. Ruas, praças, pontes e pátios das igrejas, outrora tão desprezados pelos segmentos da elite e da classe média urbana emergente, viram alterados seu uso e significado social, sobretudo de 1840 em diante. Valorizaram-se com os melhoramentos verificados nos equipamentos e serviços urbanos – nos transportes e nas comunicações, com os calçamentos, iluminação, ajardinamento e arborização das principais vias públicas, saneamento e água encanada. Surgiram novos e suntuosos edifícios que muito contribuíram para mudar a feição urbana do Recife, pontuando-lhe de referenciais arquitetônicos tidos como modernos.

Outros sinais de cultura e civilização vieram somar-se aos primeiros: comércio mais rico e diversificado; imprensa jornalística extremamente dinâmica e produtiva; casas de espetáculos, algumas luxuosas como o Teatro Santa Isabel; instituições de ensino e pesquisa, a exemplo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, do Gabinete Português de Leitura, do Liceu de Artes e Ofícios e das Faculdades de Direito, de Medicina e de Engenharia.

Os espaços públicos tornaram-se alvo de cobiça por parte das camadas dominantes que se mostraram, desde então, interessadas em ocupá-los não apenas durante seus afazeres diários e pequenos passatempos mundanos, mas também por ocasião da grande festa coletiva em que se estava transformando o Carnaval. Espelhados no modo de vida burguês europeu, passaram pouco a pouco a se identificar com a nova paisagem que se projetava edificar na cidade. Aprenderam a apreciar e a conviver com o espaço público e a desejá-lo mais e mais, procurando conformá-lo à imagem dos grandes centros urbanos d'além mar.

Era também por ocasião das celebrações públicas – festas religiosas, cívicas ou reais e pelo Carnaval – que a sociedade representava a si mesma. Seus vários grupos e classes sociais eram postos lado a lado, o que permitia vislumbrar as relações de força que estabeleciam entre si. A festa expunha a cidade, as camadas dominantes bem o sabiam. Daí o empenho em implantar um outro modelo de festa carnavalesca em tudo diferente dos jogos de Entrudo, desde a origem que lhes era atribuída – herança dos antigos colonizadores portugueses – até a forma de exibição e de participação dos vários sujeitos sociais.

O Carnaval idealizado pelas elites urbanas, com o qual desejaram substituir e eliminar definitivamente o Entrudo do rol das diversões momescas – de resto, tido como selvagem, indecente, bruto, bárbaro e grosseiro –, inspirava-se nos monumentais festejos realizados em Veneza, Roma, Paris e Nice. O Carnaval deveria converter-se num belo espetáculo, produzido pelas camadas ricas e letradas, para ser contemplado e aplaudido por todos. As máscaras eram seus mais elaborados e cortejados objeto e artifício, pois o disfarce permitia ao mascarado fazer a crítica de seu tempo e lugar.




No decênio de 1880 e primeiros anos do século atual, as vias públicas do Recife foram abrilhantadas por cortejos de carros alegóricos e de críticas, confeccionados e levados a efeito pelas sociedades carnavalescas: Cavalheiros da Época, Cavalheiros de Satanás, Os Filomomos, Nove e Meia do Arraial, Conspiradores Infernais e Fantoches do Recife destacavam-se dentre elas.

Fundada em 1892, a Sociedade Carnavalesca Os Filomomos, homônima da importante congênere carioca, constituiu, sem dúvida, um dos exemplares mais representativos deste modelo de festa burguesa que se anunciava culta e civilizada. Uma correspondência de seu primeiro presidente – Antônio Sette Júnior – enviada aos consórcios, revelava claramente a intenção dos organizadores desses espetáculos, bem como a visão que tinham sobre si próprios e sobre os outros, e da missão histórica da qual se julgavam estar encarregados de cumprir: "Constituídos em uma sociedade carnavalesca como nos achamos, sociedade que aliás foi fundada com maior harmonia e boa vontade de todos, no intuito de soerguer essa tradicional instituição de bons ensinamentos morais, mas infelizmente sem prestígio por se achar entre pessoas de baixos costumes, sem educação nem espírito; não devemos poupar esforços para chegarmos ao fim a que nos propomos com todo o gosto e entusiasmo (...)" (2).

Civilizado e civilizador, eis o que pretendiam com seus ricos e bem elaborados préstitos, suas máscaras finas e elegantes, as críticas mordazes dirigidas aos costumes sociais e políticos de seu tempo e lugar, os ditos chistosos e irreverentes. Divertir-se, mas de uma forma edificante e moralizadora, conforme expressava a estrofe do Hino d'Os Filomomos, para o ano de 1903: "Como heróis da gargalhada / Adotamos em geral; / Rir! Folgar! Cantar! Mais nada! / P'ra triunfo da Moral!" (3).

O Carnaval das críticas e das máscaras era exigente, tanto em termos econômicos quanto culturais. Para manejar com maestria o florete da verve, era necessário ter pleno domínio sobre a gramática e estar bem informado sobre os acontecimentos da realidade. Pré-requisitos que excluíam de suas fileiras a imensa maioria da população, composta por pobres e analfabetos, a quem a elite destinava o lugar de humilde espectador do espetáculo por ela produzido. Excludente e elitista, os mais empedernidos defensores da mascarada não hesitavam em tratar como caso de polícia qualquer tentativa de aproximação das camadas populares desta forma de diversão: "Aproxima-se o carnaval, a época da insulsice e da exibição dos bobos; ameaça-nos a inundação das pilhérias insulsas, o transbordamento do espírito de ... vinho. / A polícia deve tomar providências enérgicas, sobretudo contra essa mascarada imbecil de casaca de estopa, máscara de meia, chocalho à cintura e chicote na destra! / Qualquer desses vivos e ambulantes atentados a nossa civilização, seja trancafiado no fundo escuro do xilindró por três dias, por uma semana até! / E não somente esses que se vestem à matuta, outros muitos parvos que infestam as nossas ruas durante os três dias carnavalescos, a berrar-nos ao pé do ouvido em voz de falsete, a atordoar-nos com as suas sandices! / É preciso fazermos algo em prol do alevantamento dos créditos do Carnaval n'esta cidade; é preciso dar o tom álacre e festivo às folias de Momo, mas de um modo compatível com os nossos fôros de povo civilizado!" (4).

Interessante estabelecermos, nesta ocasião, uma comparação entre as atitudes das elites e autoridades públicas do Recife e de Salvador com relação às manifestações populares nos Carnavais das respectivas cidades na virada do século. Aquilo que para determinados membros da elite recifense constituiu um desejo nunca plenamente concretizado – transformar a mascarada popular em prática ilegal –, em Salvador tomou a forma de proibição oficial, sendo publicado em edital datado de 1905, assinado pelo secretário de Estado e chefe de Segurança Pública. O citado documentos proibia terminantemente: "a exibição de costumes africanos com batuques" e colocava sob custódia da polícia os "máscaras maltrapilhos e ébrios" (5).

Malgrado o esforço da elite letrada, o Carnaval burguês de estilo moderno não obteve êxito no Recife. A exceção ficou por conta dos bailes de máscaras nos salões, das críticas jocosas impressas nos jornais e do corso, onde as famílias abastadas divertiam-se atirando confetes, serpentinas e lança-perfumes umas às outras – brinquedo significativamente denominado de Entrudo civilizado.

Os desfiles das sociedades carnavalescas exigiam vultosas quantias que a economia açucareira, em processo de decadência, não podia ou não se interessava em sustentar. O público, queixavam-se seus idealizadores, na maioria ignorante, não compreendia o alcance dos seus esforços e o conteúdo das elaboradas críticas e alegorias, não recompensando seus esforços. Por fim, a polícia, por ignorância ou puro partidarismo político, censurava e proibia a saída de vários carros críticos, quase sempre, daqueles que atingiam os representantes do grupo oligárquico no poder.

Por volta de 1904 o fracasso deste estilo de festa era reconhecido como certo, mesmo pelos mais resistentes e convictos adeptos: "O Carnaval declina a olhos vistos. Degrada-se. Desmoraliza-se". Outros vaticinavam: "O carnaval de máscara há de morrer, como morreu o carnaval dos entrudos (...)" (6). Entre os anos de 1910 e 1912 os clubes de alegoria e crítica deram praticamente seu último suspiro, ficando todas as esperanças dos simpatizantes da mascarada depositadas nos Fantoches do Recife. Em 1932 surgiu uma troça em Olinda, posteriormente convertida no clube de alegoria O Homem da Meia Noite, agremiação existente até hoje e um dos maiores símbolos do Carnaval olindense. As críticas, entretanto, não mais faziam parte dos propósitos do clube, apenas as alegorias. Ainda assim, elogiosas ao regime estado novista, sendo memorável o Carnaval de 1945, quando exibiu alegorias alusivas ao trabalho.

Para aqueles que sonharam ver a cidade representada por espetáculos grandiosos, protagonizados pela gente fina e elegante, admitir o fato tornava-se duplamente penoso, pois, além de significar uma derrota no plano político-ideológico, implicava reconhecer a vitória de um outro Carnaval: o Carnaval popular, contra o qual tanto se opuseram.


Mangue, Mocambo e Carnaval

Os segmentos dominados urbanos, os escravos inclusive, fizeram intenso e múltiplo uso dos espaços públicos das vilas e cidades brasileiras desde os mais remotos tempos coloniais, no que muito diferiram das elites patriarcais. Local de trabalho, aonde se ia antes de mais nada pela obrigação do ganho diário, ruas, largos das feiras, chafarizes e beiras de cais constituíam igualmente áreas em que se movia uma viva rede de sociabilidade e de lazer.

Ao menos nos três primeiros séculos de administração colonial, as autoridades públicas que atuavam em Pernambuco mantiveram uma postura de relativa tolerância com relação às manifestações culturais de rua, desde que se passassem de forma ordeira e pacífica. Festas e procissões religiosas, cantos e bailados dos negros nos dias santos ou de folga – contanto que devidamente autorizados pelas autoridades competentes –, e as funções oferecidas nas ruas e praças por ocasião das comemorações cívicas eram acontecimentos corriqueiros na vida da sociedade colonial. Havia ainda grupos de negros que, por ocasião dos folguedos carnavalescos, saíam às ruas com seus bailados, instrumentos e máscaras.

Mudanças radicais na postura dos governantes vieram a ocorrer, especialmente a partir de 1831, por razões de ordem política, cultural e religiosa. As aglomerações públicas e ajuntamentos de escravos passaram a ser extremamente vigiados e temidos pelas classes dominantes e pelos indivíduos de cor branca. Foi proibida a realização de determinadas práticas culturais, desde, por exemplo, os jogos de Entrudo e o porte de máscara por parte dos escravos nos dias de Carnaval, às máscaras burlescas, representações teatrais e danças nas procissões religiosas.

Quando, já após aquela data, as elites passaram a querer desfrutar as áreas públicas da cidade, o que ocorreu a partir de meados do século findo, se depararam com um espaço pleno de vida e de história, carregado de memória, símbolos e significados para aqueles que o freqüentavam.

Ao tentarem excluir ou mesmo impor limites às ações e à mobilidade espacial das camadas populares nas áreas livres da cidade, depararam-se com forte resistência por parte de seus usuários tradicionais. Assim, apesar das posturas municipais proibirem o Entrudo sistematicamente, pelo menos desde 1822, o jogo continuou a existir por décadas afora. É bem verdade que o entusiasmo em torno do brinquedo d'água e pó se foi arrefecendo com o tempo, devendo-se tal fato muito mais ao aparecimento de outras diversões carnavalescas mais atraentes ao gosto do povo, que propriamente à força da lei. Indiferentes – ou desafiadores? – aos reclamos e condenações de alguns, os diabinhos, morcegos, figuras de alma e da morte, papangus e velhos, quando não os matutos, casacas de estopa, máscaras de papelão ou de meia continuaram cruzando e azucrinando os passeios dos máscaras finos e elegantes.

Da década de 1880 em diante a participação dos indivíduos das camadas populares nos folguedos carnavalescos de rua do Recife tomou novo impulso, tornando-se mais marcante e promissora. Surgiram os clubes pedestres, agremiações carnavalescas populares, cuja denominação aludia à forma de se apresentarem em público: em cortejos processionais, precedidos dos respectivos estandartes, os sócios uniformizados e portando as insígnias da agremiação vinham atrás, formando o cordão. Todo o trajeto – no percurso do qual visitavam ruas e bairros da cidade, homenageando sócios e figuras ou instituições de destaque social – era realizado a pé, acompanhado de música e de cantos, entremeado de paradas nas quais realizavam as bem ensaiadas manobras. O termo pedestre expressava, ainda, uma distinção social, diferenciando estas associações dos aristocráticos clubes de alegoria e crítica, que se exibiam sobre carros, onde se apresentava inclusive a música.

Inspirados no decano Caiadores (1886), os primeiros e mais simpatizados clubes pedestres do Recife adotaram por nomenclatura termos evocativos do trabalho, particularmente na sua fração manual, com a qual estavam acostumados a lidar: Vassourinhas (1889), Pás (1890), Lenhadores (1897), Vasculhadores, Espanadores, Abanadores, Empalhadores, Ciscadores, Carpinteiros, Marceneiros, Sapateiros, Funileiros, Sachadores, Pescadores, Charuteiros, Talhadores, Suineiros da Matinha, Engomadeiras, Quitandeiras de São José, Chaleiras de São José, Parteiras de São José, Costureiras de Saco, Caixeiras, Cigarreiras do Recife, Cigarreiras Revoltosas, Talhadores em Greve, Malhadores em Greve, Mocidade Operária e muitos outros. É importante salientar que, dentre eles, não havia denominações evocativas das coisas da África, no que muito se distinguiam dos blocos das gentes de cor surgidos em Salvador no mesmo período, os quais revelavam grande nostalgia das raízes negras: Embaixada Africana, Pândegos da África, Guerreiros da África entre outros.

A alusão ao trabalho, contudo, embora fundamental, era apenas um entre os múltiplos significados que os nomes de batismo dos clubes populares comportavam. Pincel, vassoura, espanador, vasculhador, ciscador, abanador pertenciam a uma classe de utensílios cuja principal função era limpar, espanar, caiar, clarear, lustrar, assear. Neste ponto, os clubes pedestres filiavam-se a uma antiga noção de Carnaval, segundo a qual a festa representava um momento especial na vida da coletividade, um tempo destinado a passar a limpo os fatos ocorridos na sociedade no ciclo de um ano. Enfim, tratava-se de fazer, a seu modo e com as armas de que dispunham, a crítica aos costumes e à moral. Demonstravam, assim, partilhar de práticas e valores que as elites julgavam e pretendiam exclusivas a seus pares.

Além dos significados simbólicos, esses artefatos – as insígnias dos clubes – eram levados pelos componentes do cordão durante os passeios nas ruas estreitas e parcamente iluminadas do Recife. Confeccionados geralmente com a madeira do resistente quiri de castão de quina – madeira de que eram feitos os cacetes dos capoeiras –, não raro traziam na extremidade, escondidas sob a piaçava das vassourinhas ou sob os penachos dos espanadores, afiadíssimas facas de pontas. Cacetes, facas de pontas – as temíveis pernambucanas –, os pontiagudos canos de ferros dos guarda-sóis e destreza corporal eram elementos importantes num Carnaval em que brigas e desavenças pessoais ou de grupo eram freqüentes e rivalidades entre agremiações congêneres provocavam terríveis confusões, resultando até mesmo em mortes.

Identificados por relações de parentescos, de vizinhança, credo religioso ou por categorias profissionais – laços criados no decorrer da vida cotidiana, muitas vezes interligados entre si –, os componentes dos clubes pedestres eram quase sempre oriundos da classe trabalhadora pobre e remediada do Recife e imediações, então, em pleno processo de formação.

O surgimento dos engenhos centrais por volta de 1870 e, posteriormente, a criação das usinas geraram o que se convencionou chamar de processo de modernização da economia açucareira. Processo que, entre outras coisas, acelerou a proletarização do homem do campo e provocou intensa migração do campo em direção à capital. Tal movimento migratório foi em grande parte responsável pelo crescimento demográfico verificado no Recife entre 1872 e 1920, quando a população mais que duplicou, passando de um total de 126.671 para 238.843 habitantes.

Esse fluxo migratório interno, associado à ausência quase completa da entrada de estrangeiros em massa para a região Norte, teve importância fundamental na composição étnico-social da população recifense, no que muito a distinguiu dos estados do Sul do país. Os indivíduos chegados do interior eram, no mais das vezes, negros e mulatos, ex-escravos ou seus descendentes, muitos dos quais haviam permanecido no campo mesmo após a abolição, na condição de morador, agregado, parceiro, diarista ou assalariado; até que as usinas os expulsassem de suas terras. Em 1872, os indivíduos de cor correspondiam a 55% da população total do Recife, cifra que se elevou para 56% no ano de 1890. A participação de estrangeiros radicados em Pernambuco era irrisória, correspondendo a 1,6% em 1872, caindo para 0,3% em 1890, chegando a 0,9% em 1900 (7).

Em decorrência das transformações havidas no campo, surgiram as primeiras fábricas no Recife, voltadas principalmente para o setor de consumo: têxtil e alimentício sobretudo. Outras atendiam às demandas da própria usina, como fábricas de sacarias, cal e veículos. Na capital, sede do grande comércio de importação e exportação, ampliou-se o número de agências bancárias, expandiram-se as atividades comerciais, os serviços e os equipamentos urbanos.

Compreendida de forma bastante ampla, a classe trabalhadora urbana compunha-se dos contingentes assalariados: operários das fábricas, diaristas, caixeiros, empregados domésticos, funcionários públicos de pequeno escalão. Incluía ainda artistas e oficiais mecânicos, trabalhadores com alguma qualificação profissional, de mais longa existência na história social do Recife, e que gozavam de certa autonomia em relação aos primeiros.

Esse segmento mantinha intensa vida associativa, fundando instituições por ele mesmo dirigidas, as quais seguiam o modelo organizacional das antigas associações em uso na colônia e no Império: irmandades religiosas, sociedades beneficientes, recreativas, dramáticas, musicais e, por último, na escala temporal, carnavalescas e sindicais. Eram, no geral, instituições formais e legalmente constituídas, com registro em cartório, regidas por estatutos próprios que eram submetidos à Questura Policial.

Os estatutos costumavam estabelecer normas e regras de conduta que deveriam ser rigorosamente seguidas pelos componentes das agremiações: clubes, troças, blocos, caboclinhos, maracatus e outros. O bom comportamento era exigido não apenas por ocasião das exibições em público – quando, além do prazer de divertir-se, buscavam obter aplauso e reconhecimento social –, mas, em alguns casos, o pretendido controle estendia-se para outras esferas da vida do trabalhador e de sua família. Disciplinar o trabalhador e educá-lo nos princípios e valores burgueses era intenção de certos clubes populares, no que muito colaboravam com o projeto político-ideológico das elites republicanas e do Estado.

Matéria publicada no jornal do clube Espanadores ilustra bem o propósito educativo de algumas agremiações populares: "Todavia, este Club tem procurado (segundo a forma de pensar de muitos) educar-se nas normas da civilização moderna, desde a sua forma de exibir-se perante o público, até a vida íntima, já pelo seu chiste, já pelos seus estatutos severos, que têm sabido chamar ao terreno da obediência e bom comportamento aos seus associados" (8).

Não era essa, porém, a postura única e comum a todos os indivíduos das camadas populares. Outros sujeitos sociais, situados em igual ou inferior posição na estrutura sócio-econômica do Recife, viam com desdém e sarcasmo a excessiva formalidade dos clubes e blocos, desprezando-os. Deles nada mais queriam que a música esfuziante, o aperto contagiante dos corpos, a onda vibrante e quente do frevo. Para a desregrada negra Isaura, "pedaço de mau caminho" que anima a trama do romance O moleque Ricardo, de José Lins do Rego, "– Carnaval de bloco não presta, não presta não. É colégio. Ninguém pode sair de forma" (9). O que era motivo de orgulho, identidade e meio de ascensão social para uns, o era de deboche para outros.

A negra Isaura – diferente da Odete mulata, filha do presidente do clube Paz e Amor, que queria namorar firmemente Ricardo –, fazia parte daqueles foliões descomprometidos institucionalmente, anárquicos e independentes, que acompanhavam qualquer agremiação desde que lhes agradasse. Trabalhadores braçais, jornaleiros, biscateiros, empregados domésticos e também os capoeiras, vadios, desordeiros, prostitutas e moleques de rua engrossavam os passeios dos clubes carnavalescos pedestres, dando-lhes mais vida e vibração, animando-os com seus gingados, saltos e trejeitos sugestivos e inesperados.

Foi da troca espontânea entre os despretensiosos e ágeis foliões e as orquestras de metal, geralmente formadas por bandas marciais, que, pouco a pouco, foi sendo criada a marcha carnavalesca pernambucana. Ali mesmo, na rua, ao calor dos corpos. Dobrados de inspiração militar, polcas, maxixes, quadrilhas e modinhas foram sendo reprocessados, entre os anos 1905 e 1915, ganhando novas formas e combinações até resultar no frevo pernambucano, embora a música ainda não fosse assim chamada.

Em compensação, os acordes excitantes dos metais repercutiram nos músculos e sentidos daqueles sujeitos sem amarras, inspirando-lhes os movimentos da dança, quase sempre individuais, como se estivessem num permanente estado de alerta, a sugerir agressividade ou defesa. Os capoeiras, desordeiros e valentões que costumavam saltar à frente das bandas de músicas foram fundamentais no processo de criação da manifestação popular. Os golpes da luta, adaptados ao ritmo das marchas e disfarçados da polícia, originaram uma série de passos que vieram a compor o repertório mais ou menos fixo da dança.

A alma do frevo é guerreira e secreta, como a perceberam diversos autores que sobre ele escreveram. O frevo seria, por um lado, o produto cultural mais bem acabado e capaz de expressar o espírito de luta e de rebeldia que tanto motivou o pernambucano ao longo de todo o século XIX: "A essa época a cidade do Recife era um foco de agitação. E Pernambuco um centro de rebeldia. O Estado se transformara em centro revolucionário, pregando nacionalismo, pregando expulsão de portugueses, pregando a República, pregando a libertação dos escravos. As revoluções se sucediam. Os pernambucanos eram presos e fuzilados. O território é mutilado, sendo quase a metade entregue à Bahia, como castigo por esses levantes contra o governo central. Em compensação recebe o nome glorioso de Leão do Norte" (10).

Mas o frevo falava também de seu tempo presente. Ele traduzia o clima de agitação e efervescência vivido pelo Recife no momento de sua formação, entre o final do século passado e início do atual: "O crescimento da cidade, as grandes multidões, a agitação política, a formação da classe trabalhadora, o fortalecimento do movimento operário, as primeiras grandes greves, os melhoramentos do Porto, as reformas urbanas e a perspectiva de modernização, a queda da oligarquia rosista, tudo isso encontrou sua maior expressão no frevo, na força que emergia da grande massa popular que habitava a cidade" (11).



Notas
1 Clarice Lispector, Felicidade clandestina. 5ªed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987.
2 Correspondência expedida pelo presidente da Sociedade Carnavalesca Os Philomomos. Recife, 14 dez. 1892 (Mss). Arquivo Mário Sette. Acervo Fundação Joaquim Nabuco.
3 Hino dos Filomomos. O Philomomo, Recife, 22, 23 e 24 fev. 1903, p.3.
4 Olympio Galvão. O Carnaval próximo. Jornal do Recife, 11 fev. 1900, p. 1.
5 Peter Fry; Sérgio Carrara & Ana Luíza Martins-Costa, Negros e brancos no Carnaval da Velha República. In: João José Reis (org.). Escravidão e invenção da liberdade (estudo sobre o negro no Brasil). São Paulo: Brasiliense/CNPq, 1988, p. 232-263.
6 Respectivamente, O Carnaval. Jornal do Recife, 16. fev. 1904, p. 1; Diario de Pernambuco, 20 fev. 1909, p. 2.
7 Peter Eisemberg, Modernização sem mudanças: a indústria açucareira em Pernambuco: 1840-1910. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 203 e 219. Sobre as mudanças na economia açucareira, ver ainda Gadiel Perruci, A república das usinas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978; Robert Levine, A velha usina: Pernambuco na federação brasileira: 1889-1937. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980.
8 Espanadores. O Espanador. Órgão do Clube Carnavalesco Misto Espanadores, Recife, 5, 6, 7 mar. 1905, p. 1.
9 José Lins do Rego, O moleque Ricardo. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1987, p. 576. (Ficção Completa, v. 1).
10 Ruy Duarte. História social do frevo. Rio de Janeiro, Editora Leitura, 1968, p. 19.
11 Rita de Cássia Barbosa de Araújo. Festas: máscaras do tempo (entrudo, mascarada e frevo no carnaval do Recife). Recife, Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1996, p. 406.
12 Jornal Pequeno. Recife, 16 nov. 1910, p. 3.
13 Anuário do carnaval pernambucano: 1938. Recife, Federação Carnavalesca Pernambucana, 1938.




* Rita de Cássia Barbosa Araújo é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, Recife (PE), e doutoranda no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo.

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