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terça-feira, 27 de janeiro de 2015

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




O disco Estudando a bossa (2008) é Tom Zé revelando-nos mais uma vez suas inquietantes ideias sonoras sobre a canção. O tropicalista despojado de qualquer atitude de discípulo destrona a bossa nova pai-e-mãe, refaz caminhos melódicos solares e percorre graças e otimismos temáticos para ensaiar e cantar a musa bossa nova.

O disco Estudando a bossa tenta (ensaia) cortar os laços de paternidade. Ele vai contra a corrente dos que apenas repetem gastos discursos de louvor a bossa nova a fim de exercitar o pensamento de todos os músculos que sentem a genealogia da canção popular brasileira não como evolução, mas como um eterno retorno em perspectiva.

Sem dúvidas, "O filho do pato", de Tom Zé e Arnaldo Antunes, estabelece direta intertextualidade com o clássico bossanovista "O pato". Mas é no derradeiro verso da canção que encontramos uma possível chave de interpretação: "ti-tico no fubaco, ensaiando o vocal". Chave que seja para entrar nas duas canções.

A canção "O filho do pato" é um ensaio sobre os modos de vocalização da bossa nova e sua vontade de desfazer o império passional de até então. Ao invés das inflexões melódicas e dos excessos semânticos, o sujeito investe nos acordes dissonantes.

A performance vocal titubeante (idas, vindas e torneios sonoros: fragmentos de sons) dos intérpretes Tom Zé e Márcia Castro de "O filho do pato" rompem com qualquer intenção estática que por ventura possa surgir no ouvinte. O sujeito quer incomodar: forçar o movimento e o pensamento. Sem desprezar os conteúdos emotivos, o sujeito quer o corpo e o cérebro do ouvinte em movimento.

Para tanto, ele figurativiza situações metaforizadas do cotidiano e chama atenção para a fala ordinária. Na voz que canta há uma cadeia proliferante de avanços, recuos, cortes e justaposições de sons comuns na fala cotidiana; na voz do indefectível pato.

A paródia irônica porque amorosa feita à canção "O pato", de Vinicius de Moraes, Toquinho e Paulo Soledade, é pontual e clara: reconstrói o conteúdo infantil ao tratar do afeto e usa uma dicção também infantil, desautomatizada e livre. Tudo para mostrar a radicalização estética promovida pela bossa nova: ao invés do excesso, precisão.


***

O filho do pato
(Tom Zé / Arnaldo Antunes)

Tico-tico no fubaco
no fubico fubá
tico-tico no fubaco
ensaiando o vocal

0 filho do pa...pati-quitu, pati-quitu
também cantava alegremen... menti-quitu, menti-quitu
e a marrequinha de repen... penti-quitu, pati-quitu
pati-caiu também no samba
pra no samba sambar

E o filho do gan... eh eh eh
afo-fo-fo ba-ba damen... men men men te
qui-qui ri-ri ti-ti-mo quen... quiqui quen!!!
ga-gaguejou a pata n'água da lagoa
pra batucar

Mas a rosa que era famosa
em verso e prosa
não pôde dançar
porque estava bem presa no galho plantada na terra
suspensa no ar
sem sair do lugar
se abriu para o céu e rezou pro vento andar
ti-tico tico no fubaco

0 pato-pai
vinha voltando do batente
quando aquele contraparente
bateu na boca um reco-reco
para a turma dedar

E o neto do cisne
também achando que era gente
pensou a coisa diferente;
abriu o bico para o tico-tico
pôr no fubá

Mas a rosa formosa, cheirosa,
urbana da roça queria dançar
e piscando os olhinhos, charmosa,
sacou do chicote pro vento enquadrar
e se despetalou, despernou, desbraçou e ordenou pro vento
andar

ti-tico no fubaco, ensaiando o vocal





* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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