Músicos não renegam ligação com o passado de interpretação de clássicos
Por Mariana Peixoto
Vocalista de banda de rock há mais de 20 anos, Kiko Campos toca pelo menos uma vez por semana na noite de Belo Horizonte com sua Laranja Mecânica. No repertório, sucessos de todas as fases do rock, de Beatles, Led Zeppelin, Marillion, Museu e até Imagine Dragons. Muito antes deste grupo, ele também liderou o Kiko Campos e seus Comparsas, que tinha um trabalho autoral. Lembra que durante certa época, fazendo um trabalho com uma rádio jovem de BH, fez uma série de apresentações em escolas. “Ver garotos cantando minhas músicas é muito mais gratificante do que um show para 10 mil pessoas com um repertório que não é seu. Lógico que dá frustração depender do cover, mas hoje consigo colocar uma ou duas canções minhas no repertório. É assim que funciona”, admite.
A trajetória de Kiko Campos não é diferente de outros tantos integrantes de bandas que tentam um lugar ao sol. Uns dizem que o público não está aberto a ouvir o novo, outros, que as próprias casas noturnas só querem apostar no sucesso. Mas este é apenas um lado. Há o que tenta fazer diferente. O depoimento de Léo Marques, vocalista, guitarrista e tecladista do Transmissor, banda que se tornou referência na cena da música mineira dos anos 2000, é bem esclarecedor.
Criado há sete anos, o grupo que chegou ao terceiro álbum, De lá não ando só, apostando na via autoral desde o início. “Nunca tivemos problema em arrumar lugar para tocar, há alguns como Studio Bar e A Obra que apoiam a música autoral. À medida que conquistamos mais espaço, conseguimos outros lugares específicos para quem quer escutar o Transmissor, como teatros. Você tem que tentar, se não, vai tocar cover para o resto da vida”, diz ele, que, por sinal, integrou uma banda cover de Pearl Jam no início da carreira.
E agora que o Transmissor tem público mais estabelecido, a história está mudando de lado. A banda está conversando com o Circuito do Rock – que reúne as casas de show Jack Rock Bar, Lord Pub e Circus, especializada em bandas cover – para fazer um show. Produtor das três casas, Bruno Vilaça diz que ainda que o cover domine a programação, ele não é excludente. “Há espaço para todo mundo, não tem rivalidade. A gente quer apoiar as bandas autorais, mas é um caso de demanda e oferta. As bandas têm que ter bom-senso e saber agradar ao público que frequenta a noite.”
A banda Dead Lovers no Rock durante apresentação no Circuito do Rock, na Praca da Liberdade Recentemente, o Circuito do Rock criou dois eventos que apostaram no autoral. Um deles foi o Rock no Circuito, em maio, que levou bandas para vários espaços da Praça da Liberdade. No elenco, só uma cover, Hocus Pocus, referência nacional de bandas de Beatles. Já em junho, promoveu no Circus a noite Supernova, quando reuniu Devise, Radiotape, Vaga Luz e Radiolaria, grupos que tocam músicas próprias.
Bandas autorais que também tocaram em eventos do Circuito são Dead Lover’s Twisted Heart e Hell’s Kitchen. “Vimos que é interessante não só inserirmos as bandas no circuito, como também investir no mercado cultural da cidade”, acrescenta Vilaça, que prevê novas iniciativas que reúnam grupos autorais. Cada casa noturna tem um perfil. O CCCP, que apresenta música ao vivo de terça a sábado, mistura os estilos. Pelo menos duas vezes por semana, aposta em trabalhos autorais. Não recebe bandas cover de um só artista, mas aquelas que têm um repertório diverso e longe do lugar-comum. “Prefiro bandas que saiam um pouco do rock clássico”, comenta Fred Garzon, sócio do CCCP.
Tanto por isso, a casa na Savassi tem uma atração fixa sempre às terças, o CCCP Jazz Club, que conta com Pablo Souza no baixo e André “Limão” Queiroz na bateria, além de convidados. Outra atração que já fez algumas datas por lá foi Gustavo Andrade e Hot Spot Blues Band, que mistura autoral e versões de blues e soul music. “Tem que haver uma equação entre boa música versus público”, continua Garzon.
Releituras Já no Granfinos, casa de shows, não entra cover. Quando não é autoral, a atração tem que saber fazer diferente, como o Chama o Síndico, banda-projeto com repertório só de Jorge Ben e Tim Maia, porém executado com arranjos que fogem do registro original. Para marcar terreno, a produtora Dih Leeall criou a Noite Autoral, que teve uma primeira versão em Betim e conseguiu uma data, 1º de agosto, no Matriz. Serão só bandas novas de rock, de BH, Betim e Contagem. “O grande fomento do artista autoral é a lei de incentivo.” Quando não tem, a situação se complica. E mesmo com o autoral dando título ao show, ela diz que algumas das bandas, como não têm repertório extenso, apelam para uma ou outra reinterpretação.
Quanto aos músicos da noite, há casos interessantes como o de Elvis Krause, vocalista da banda Velotrol. Com uma demanda enorme para shows –chega a fazer 23 apresentações por mês –, ele comenta que o grupo só não conseguiu começar a gravar seu próprio disco, com repertório autoral, pela ausência de tempo. E, mesmo com um repertório que vai de The Doors a Roberto Carlos, ele não vê o Velotrol como uma banda cover. “É releitura, pois misturamos rock clássico com música brasileira, jazz, axé, pagode e sertanejo”, diz ele. O quarteto hoje tem uma noite fixa no Lord Pub (às quintas-feiras), mas se apresenta também em casamentos, festas de empresa e toda a sorte de eventos.
Entre Light my fire e Break on through (ambas dos Doors), tocam um trecho de Wave, do Tom Jobim. Há ainda uma versão de Sossego (do repertório de Tim Maia) com Todos estão surdos (de Roberto Carlos). “Começamos a adaptar as músicas para a nossa realidade, já que não tínhamos todos os instrumentos (que a diversidade de músicas pedia)”, continua Elvis. O sonho de viver da própria música foi adiado, porque os quatro integrantes pagam suas contas com as versões de terceiros. Já quem conseguiu se estabelecer com suas próprias composições acaba fazendo do cover uma maneira de diversão.
O guitarrista, cantor e compositor Gustavo Andrade, que lidera a Hot Spot Blues Band, vem conseguindo unir os dois mundos. Mas só depois de muita ralação. Além da Hot Spot, ele mantém duas bandas cover, Clapton Takes e Viva Santana, que, como os próprios nomes indicas celebram os repertórios de Eric Clapton e Carlos Santana. “Hoje, muita gente já está me conhecendo pelo meu trabalho autoral. Isso acaba acontecendo quando se tem 20 anos de estrada.” Tanto que no Hot Spot ele se dá ao luxo de fugir do convencional. Quando não são suas próprias músicas no repertório, costuma executar, ao lado de Clapton e BB King, nomes mais conhecidos aos ouvidos de iniciados do blues, como J.J. Cale e Freddie King.
Aspas
“Criou-se uma lenda de que a gente só toca banda cover, mas nunca houve proibição de bandas autorais” Bruno Vilaça, produtor das casas do Circuito do Rock
“Queria tocar música autoral, mas está difícil por causa da agenda da banda e, ainda mais, porque todos os integrantes vivem dela” Elvis Krause, vocalista do Velotrol
“Tocando cover, você pode entrar num círculo vicioso. Com a sensação de que está se conectando com o público, o autoral acaba ficando de lado” Léo Marques, integrante do Transmissor
Outro lado
A história de Affonsinho (foto) parece ir na direção inversa. Ele tem dado um tempo na carreira de cancionista (são nove álbuns desde 2000) para tocar com os amigos. Recentemente, fez no CCCP show da banda Ultratones, de rock e blues. “Acaba não sendo cover, pois sempre modificamos um pouco o arranjo. É mais uma releitura”, diz Affonsinho, que procura sempre manter uma banda e outra para poder tocar guitarra. “É uma coisa completamente despretensiosa, que faço só de vez em quando.”
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