CAPÍTULO 53
Nunca fui de dar festas de aniversário. Recordo-me somente de uma, celebrando meus cinquenta anos, há muito tempo. E é só. No entanto, cinquenta anos de Brasil sempre me sugeriam uma celebração, seja pela ternura de haver vivido e haver participado tão intensamente da vida musical do país, ou mesmo por achar que, se até hoje se festejava a descoberta do Brasil há quinhentos anos, por Pedro Álvares Cabral, por que não fazer o mesmo com a descoberta do Brasil, cinquenta anos atrás, pelo André Midani?
Essa ideia vinha brotando na cabeça da Gilda havia já algum tempo. Ela tinha consultado Flora Gil e Leonardo Neto, e um belo dia, à hora do jantar, declarou:
— Vai ter festa sim! Ela é merecida! Eu organizo. Será um jantar com umas cem pessoas. E não te preocupes com o custo, que eu resolvo... A gente não gasta dinheiro com jóias e nem na roleta em Las Vegas. A gente pode gastar para festejar um acontecimento tão importante da tua vida.Vai sair bem barato!
Sendo produtora experiente, Gilda montou um grupo de trabalho constituído por Márcia Braga, Virginia Casé, Leonardo Neto, Erasmo Carlos, Alice Pellegatti, Carolina Jabor, Dora Jobim, Luiz Eduardo Guinle, Frejat, Edgard Otavio e Antoine Midani. E todos foram à luta para a festa sair linda e quase barata.
Eu ainda andava ocupado com “O Ano”, de tal maneira que a ação desse grupo de trabalho andou quase que clandestinamente para mim... Eu sabia que seria um jantar para cem pessoas e,“lá com os meus botões”, realmente temia que as tais cem pessoas tivessem outra coisa melhor para fazer do que ir ao tal jantar. No entanto, comecei a desconfiar do tamanho da encrenca ao ver, poucos dias antes da data marcada, o convite — uma produção do João Vincente de Castro, meu enteado, com a equipe de criação da W/Brasil e texto do Nelson Motta —, que era uma cópia sofisticada do meu passaporte sírio, com o qual eu tinha entrado no Brasil, cópia que as recepcionistas iriam carimbar como se fossem da Polícia Federal, na entrada dos convidados no Golden Room do Copacabana Palace!!! Pensei: “Não se imprimem apenas cem desses convites... E o Golden Room é grande demais para cem pessoas...Alguém está me enganando, com certeza!”
O convite marcava 20h e, fato inédito nos costumes cariocas, às 20h15 já havia mais de cinquenta pessoas na ante-sala do Golden Room — decorada com velas, tecidos transparentes e poltronas onfortáveis, tudo branco. Os garçons serviam proseccos da melhor qualidade e, a cada instante, chegavam artistas, amigos e antigos colaboradores. Eu — e meus atávicos receios — olhava espantado e, sobretudo, aliviado, ao ver entrar Nelson Motta, Roberto Oliveira, Pena Schmidt, Liminha, Patrícia Travassos, Armando Strozemberg, Mequita Andrade, Claudia Lisboa, Gilda Mattoso, Tia Léa, Sergio Chermont de Britto, João Carlos Müller, Emílio Kalil, Kika Seixas, Guto Graça Mello, Ricardo Garcia, Jodele Larcher, Rubem César, Ana Fonseca, Ana Tranjan, Ronaldo Bastos, Tárik de Souza, Antonio Carlos Miguel, Moema Salgado, Monica Silva, Carlos Sion, Suely Aguiar, Jean Gautier, Rubens Richter, Zé Hugo Celidônio, Mazzola, Claude Amaral Peixoto, Sergio Affonso, Carmela Forsin, Tom Leão, Harumi, Beto Boaventura, Juca Kfouri, Armando Pittigliani, Cristina Doria, Zuenir Ventura e Mary, Carol Jabor, Márcia Braga, Virginia Casé, Marcos Azambuja, Vera Perestrello, Mônica Neves, Chico Neves, Inácio Neves, Luiz Zerbini, Paulinho Tapajós, José Kalil Filho, Gloria Kalil, Washington Olivetto, Thomaz Souto Corrêa, João Donato, Menescal, Carlos Lyra, Marcos Valle, Bebel Gilberto, Erasmo Carlos, Zezé Motta, Wanderléa, Marina Lima, Umberto Contardi, Hermeto Pascoal, Ezequiel Neves, Dadi e A Cor do Som, Barão Vermelho, Frenéticas, Kid Abelha, Titãs, Suzana de Moraes, Jorge Ben Jor, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Philippe e Antoine Midani, Ana de Souza Dantas, João Vincente de Castro e tantas outras pessoas que a emoção daquele momento não me deixa recordar agora...
O Golden Room estava mais bonito do que na mais linda noite do Nat King Cole, quase cinquenta anos atrás. E, como naquela noite, estava repleto, com trezentas pessoas espalhadas em elegantes mesas, onde LPs de vinil dourados serviam de descansos de prato. O ambiente se fazia a cada momento mais familiar, à medida que todos nos reencontrávamos prazerosamente, e em certos casos, pela primeira vez após muitos anos. Eram três gerações de música brasileira presentes: “Chega de saudade”; “Aquele abraço” e “Apesar de você”; e “Inútil”.
Gilda tinha me convencido a fazer um pequeno discurso:
Gilda , meu amor... E se eu chorar ?!
Então, chora! Você precisa agradecer aos seus convidados... Não vai dar para falar com cada um! Aí, fui até o microfone e falei... E não chorei:
O convite desta festa me apresenta como sírio... Eu nasci sírio... Depois virei francês... E agora sou brasileiro. Apaixonadamente brasileiro. Mestiço — igual a vocês e graças a vocês... Numa palavra: a vida me transformou num bom vira-lata brasileiro... Vamos brindar agora a alguns amigos com os quais eu trabalhei e que estão ausentes nesta noite: Tom Jobim — e, como dizia Vinicius —... Saravá! Vinicius de Moraes... Saravá! Elis Regina ... Saravá! Baden Powell ... Saravá! Raul Seixas... Saravá! Cazuza ... Saravá! Tim Maia ... Saravá! E finalmente agradeço a todos vocês por tudo o que fizeram por mim no transcurso destes cinquenta anos, e à minha mulher Gilda — e sua “gangue” — por haver organizado esta incrível festa!
Vocês não podem imaginar o quanto foi emocionante entoar esse “Saravá”. Eu me dava o direito de ser brasileiro e, como todos os convidados me acompanharam nessa prece, esse direito me foi conferido também.
E assim foi dada a partida para o jantar. Durante o jantar, bem vi que havia no palco um piano, um teclado, uma bateria, uma guitarra e um baixo. Porém, burramente, achei que talvez fosse para se tocar “música para dançar” ou “música de fundo”. Perguntei à Gilda :
—Vai ter “música para dançar”?
Ela fingiu não entender e não respondeu. No entanto, o Jamil e o Dinho subiram ao palco, e comecei a desconfiar de que não estavam ali para tocar “música para dançar”, e menos ainda para alegrar o ambiente. Até que Erasmo foi até o microfone, tirou do bolso uma folha de papel e, acompanhado pelo Frejat e o resto da banda, cantou a sua mais nova composição:
O André é amigão, nosso brother, bom sujeito É pra se guardar No lado esquerdo do peito Veio pra brilhar E jamais morrer de fome André é o “home” André é o “home” Não é pai-de-santo Mas também serve de guia É o verdadeiro Punk da sabedoria Quando vê baixo o astral Ele pega, mata e come André é o “home”... André é o “home”...
Ele estava inaugurando a parte mais inesperada da festa e, sobretudo, a mais emocionante. Depois de Erasmo, cantou Frejat, que chamou Caetano, que chamou Jorge, que chamou Gil, que subiu ao palco lembrando, carinhosamente, o episódio “Aquele abraço”, João Donato sentou ao piano e convidou o Gil para cantar “A paz”, a minha mulher se convidou para dançar com João Donato na pista, Jorge Ben Jor me agradeceu incompreensivelmente por eu tê-lo deixado gravar A tábua de esmeralda (imaginem se eu não iria deixá-lo gravar esta obra-prima) e Caetano disse ter balançado para escolher o que cantar para mim, entre “Baby” e “Nosso estranho amor”. A noite terminou com Bebel e João Donato, ao piano, até a madrugada.
Passei 48 horas sem dormir, revivendo as emoções da noite e apreciando o privilégio que era para um imigrante se ver cercado por tantas pessoas conhecidas, quase familiares. Talvez o destino tivesse sido diferente para todos nós — melhor ou pior, porém diferente — se eu não tivesse desembarcado na praça Mauá naquele ensolarado 5 de dezembro de 1955...
No mesmo momento, eu percebia que, com essa emocionante cerimônia, se encerrava um extenso ciclo da minha vida. Era o caso de orar: “Saravá! Acabou o ‘Midani no País das Maravilhas’...”
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