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segunda-feira, 2 de junho de 2014

MÚSICA, ÍDOLOS E PODER (DO VINIL AO DOWNLOAD) - PARTE 49



CAPÍTULO 49 

Decidi voltar pouco a pouco para o Brasil. Até que, em 2002, comprei um apartamento em Ipanema, de frente para o mar, realizando, assim, um sonho muito antigo. 

A perspectiva de uma aposentadoria ociosa era preocupante. Eu não queria mais trabalhar com discos, nem me transformar num empresário de artistas, por total desinteresse por tão difícil profissão. 

Decidi me dedicar a promover no Brasil o conceito do direito autoral nas artes plásticas. Esse direito existe na França, na Espanha e no México e é chamado “Droit de suite”. Consiste em assegurar ao artista plástico uma percentagem sobre todas as transações futuras dos seus trabalhos depois da venda inicial, até 65 anos depois da morte do artista. Hoje, um artista debutante vende uma obra por muito pouco dinheiro ao primeiro comprador e, frequentemente, a obra é revendida, anos depois, por muitas vezes o preço inicial, e o artista plástico nada recebe em relação a essa ou a qualquer transação posterior. O compositor e o autor de música, assim como o escritor, recebem uma percentagem sobre todas as vendas de suas obras até 65 anos depois de sua morte. Até o jogador de futebol recebe uma comissão sobre o valor dos contratos de transferência de um clube para outro. Para levar o projeto adiante, eu precisava do apoio integral da classe. Graças à ajuda de meu amigo Gabriel Zellmeister, encontrei vários artistas plásticos no Rio e em São Paulo. Se por um lado todos achavam a ideia magnífica, por outro tinham certeza de que este “Droit de suite” ia matar o negócio das artes plásticas no país. 

— André, você está louco! Todas as transações são pagas por baixo do pano através de “caixa dois”. Não tem recibo, não tem coisa alguma. Se essa lei passar, as galerias de arte serão obrigadas a emitir notas fiscais e nós, os pintores, estaremos fritos, morrendo de fome! Os marchands vão preferir abandonar o negócio. 

E quem abandonou a ideia fui eu. 

Em seguida, visitei o Marcelo Yuka , baterista do grupo O Rappa , tempos depois do acidente que o deixou paraplégico. Conversa vai, conversa vem, ele começou a me contar da existência das rádios comunitárias, de suas dificuldades e de sua importância. 

— André, existem centenas de rádios comunitárias no Brasil e elas precisam da ajuda de uma pessoa como você.Vai lá ver nas favelas. 

Ao mesmo tempo, Zuenir Ventura , meu querido amigo, me incitava a colaborar com alguma ONG no Rio: 

— André, eles precisam de uma pessoa como você e sua ajuda será bem-vinda... 

E me apresentou ao Rubem César, responsável pela ONG Viva Rio, a quem contei a história das rádios comunitárias, relatada pelo Yuka. 

— Você veio ao lugar certo, André. Nós temos, trabalhando no “Viva Rio”, uma pessoa chamada Tião Santos, que foi um dos primeiros inventores e promotores do conceito das rádios comunitárias. 

Fala com ele, vocês vão se dar bem. 

Encontrei, então, o maravilhoso Tião Santos, personagem mítico que havia deixado a batina havia muitos anos, amigo e companheiro de luta do Frei Betto, com um sorriso sempre aberto até para contar tristezas, e que me deu uma aula sobre a situação das rádios comunitárias. 

— São mais de 15 mil estações no ar, das quais somente três mil foram oficializadas nesses últimos dez anos. Nove mil foram fechadas pela polícia, sendo que, quando eu digo “fechadas”, é um modo de falar. A polícia chega, sem mais nem menos, dá porrada em todo mundo, destrói ou rouba o equipamento de radiodifusão, e tudo isso sob o pretexto de que elas operam clandestinamente. A maioria é de rádios que eles classificam como piratas, fora da lei, quando, na realidade, é o governo que está fora da lei por não obedecer aos prazos fixados para autorizá-las ou proibi-las de ir ao ar. Os processos ficam arquivados no Ministério das Comunicações, como perdidos e esquecidos... 

Certo de que eu poderia ajudar, voltei ao Zuenir, amigo do anunciado ministro das Comunicações do governo Lula. Miro Teixeira, inicialmente, se mostrou muito entusiasmado com o projeto. Com o aval do governo, seria mais fácil conseguir o apoio financeiro de fundações brasileiras e estrangeiras, de entidades governamentais e da iniciativa privada para equipar as estações de rádio, treinar e formar profissionais, produzir e distribuir programas assistenciais, educativos, cívicos e musicais, e, por fim, tornar as estações comunitárias interativas através da internet, de modo que um programa produzido no Acre pudesse ser utilizado por uma estação do Rio Grande do Sul... 

Os meses passavam e nada de retorno do entusiasmado ministro. Falei então com o Gil, que me surpreendeu com a seguinte resposta: 

O governo decidiu montar uma rádio AM de âmbito nacional com programação dirigida às comunidades carentes. 

Mas, Gilberto, esse projeto não tem nada a ver com as rádios comunitárias, que é um projeto que vem de baixo para cima, enquanto essa AM do governo irá de cima para baixo... Além do mais, o governo já tem Radiobrás, Rádio MEC, Rádio Nacional, TV Educativa... Para que inventar uma outra AM?! 

O ministro Gil me ouviu, circunspecto, e nada mais disse. 

Então eu me lembrei de ter assistido meses antes a uma palestra do candidato Lula no Rio de Janeiro para a classe artística, durante a qual, com sua conhecida eloquência, ele falou da importância da cultura para a vida do povo, e anunciou um projeto de “Museus da Cultura” em todas as cidades de mais de dez mil habitantes, inclusive nos lugares mais isolados ou desolados, como no Vale do Jequitinhonha. Mas não pronunciou uma só palavra sobre qualquer projeto para os milhões de jovens marginalizados das favelas, nem para lembrar que eles existiam. O combate à pobreza rural fazia parte do seu projeto. Mas o combate à pobreza urbana, não! 

Hoje, passados quatro anos, e com um pouco mais de perspectiva e calma, posso avaliar o receio de um governo, de direita ou de esquerda, de assistir impotente ao desenvolvimento de uma rede de comunicação de favelados para favelados, que poderia se tornar um meio incontrolável de revolução e subversão. A democracia — como a ditadura, anos antes — tinha medo de uma guerrilha e de possíveis insurgentes nas ruelas da favela.

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