Debruçado no parapeito da janela da casa de Pequeri (MG), por mais que o colorido da roupa entregue o baiano Dorival Caymmi (1914-2008) tinha também seu lado mineiro. Já sentado na cadeira de balanço da varanda, como a população da pequena cidade da Zona da Mata se acostumou a vê-lo, ele era o próprio Buda Nagô a que Gilberto Gil se refere em canção, diante da expressão suave e serena.
Nascido em Salvador (BA), o cantor, compositor e instrumentista tem seu centenário comemorado nesta quarta em todo o país, incluindo Minas Gerais, estado natal da mulher, Stella Maris (1922-2008). Depois da ausência sentida na cidade, no fim dos anos 1980 a família Caymmi construiu casa em Pequeri, em frente à qual será inaugurada na noite desta quarta-feira placa comemorativa aos 100 anos do artista baiano.“São Pedro do Pequeri/ Stella nasceu aqui/ Em São Salvador, na Bahia/ De todos os santos nasci”, escreveu o compositor, que liderava campanha para a volta do antigo nome da cidade. Impressos na placa alusiva ao centenário do artista, os versos serão eternizados na Rua Carlos Dutra, que, além do Espaço Caymmi, continua abrigando a família, agora na presença da filha Nana Caymmi, que comprou o imóvel dos irmãos.
“Às vezes ele chegava do Rio, sentava na varanda e, como já não enxergava bem, passava de leve na rua, para não incomodá-lo. Quando estava a 10 metros de distância, de repente ele falava: ‘Seu Geraldo!’”, recorda o vizinho de rua, Geraldo Fulco, lembrando que não havia como deixar de ir à varanda para cumprimentar o artista. Ex-vereador e ex-prefeito da cidade, o comerciante Geraldo Fulco diz que na rua Dorival Caymmi cumprimentava todos, aceitando com carinho o pedido de fotos. “Era um vizinho muito bom, assim como os filhos, que ainda frequentam Pequeri.”
“Além de apresentações artísticas no Centro da pequena cidade ainda hoje, durante o ano vamos promover alguns pequenos eventos pela volta do Festival de Música de Pequeri (Fempeq), que tinha Dorival Caymmi como patrono”, anuncia a secretária de Cultura e Turismo do município, Suyan Cozac. “Estamos muito felizes com a homenagem, simples e singela, tão ou mais importante que qualquer outra”, reage a neta e biógrafa Stella Caymmi, que está lançando edição revista e atualizada, com novo posfácio, da biografia do avô, 'Dorival Caymmi – O mar e o tempo', originalmente publicada por ela em 2001, antes da morte do avô.
Além da relação de afeto da família com a terra natal da avó, Stella Caymmi admite que Minas Gerais foi uma das plateias mais importantes na carreira do avô. Segundo as pesquisas que fez para escrever a biografia de Caymmi, logo que chegou ao Rio de Janeiro, na década de 1930, o artista teve um caso de amor com uma mineira, “que ele dizia ter um quê de Shirley Temple”, recorda a neta. “De volta ao estado, ela recomendou a Dorival outra mineira”, diverte-se Stella, salientando que, a partir de então, o avô passaria a gostar muito de Minas Gerais, conforme relata no livro.
Paixão de uma vida
Filha de Pequeri, aos seis meses Stella Maris foi morar no Rio, onde se tornaria a cantora que Dorival Caymmi viria conhecer (e se apaixonar) no célebre auditório da Rádio Nacional. Da tradicional família Tostes, dona Stella Maris, de acordo com a neta, tem parentesco com Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, que teria se destacado por seu envolvimento com a Inconfidência Mineira, em 1789. “É uma linhagem muito tradicional, que remonta a várias personalidades importantes para Minas Gerais e o país”, orgulha-se Stella Caymmi, para quem a força das mulheres Caymmi é explicada a partir de então.
De acordo com a neta do casal Caymmi, Jorge Amado dizia que se Dorival não tivesse Stella Maris ele não teria feito o que fez. “Com ela ele teve uma retaguarda e uma vanguarda”, avalia a neta, salientando a força do casamento de um taurino com uma capricorniana. Ao mesmo tempo, tratava-se de casal extremamente classe média, consciente da necessidade do trabalho. “Um realismo de trabalho, mas não de enriquecimento”, acrescenta Stella.
“Eles dividiram muito bem a tarefa. Minha avó só largou a música como profissão, ela jamais deixou de cantar”, justifica, salientando a importância da presença de Stella Maris na vida de Dorival Caymmi, inclusive na hora de apoiar a escolha dos filhos Nana, Dori e Danilo de seguirem carreira artística. A famosa composição 'Dora' (“Rainha do frevo e do maracatu...”) foi composta para a avó Stella Maris. “Ela foi aquela mulher que ele viu quando passou um cortejo de bloco de frevo, no Recife”, garante Stella Caymmi.
Stela faz questão de salientar ainda que a mãe, Nana Caymmi, adquiriu a parte da casa dos irmãos Danilo e Dori Caymmi para mantê-la como era. “Não com preocupações museológicas, mas para ter os pais Stella Maris e Dorival Caymmi perto de si. Minha mãe fez da casa um lugar para se refugiar e cuidar de meu irmão, João, que tem problemas de saúde”. Solidária, a população de Pequeri acolhe Nana e João com o mesmo carinhos dispensado a Stella Maris e Dorival.
Palavra de filho: Dori Caymmi, filho de Dorival, cantor e compositor
Legado de simplicidade
“Pequeri tem dois fundadores, um dos quais Tostes, que é da família da minha mãe. Fora o carro de boi e o trem, que já não circulam mais por lá, a cidade não mudou nada. Depois da temporada que passávamos por lá, nos anos 1940, entre a casa de familiares e pensões, meu pai acabou comprando um terreno e construindo uma casa nos anos 1980. Ele tinha paixão pela cidade. Já mamãe – que era flor do asfalto, mesmo tendo nascido em Pequeri – às vezes achava tedioso. O silêncio da cidade era a paz de meu pai. Com a proibição da caça pelo Ibama, a fauna da região voltou e ele tinha paixão pelo beija-flor e o canário-da-terra. Era um observador da natureza. Chegou a pintar a igreja da cidade. Lembro-me da procissão da sexta-feira santa parando quando passava em frente à nossa casa, para saudá-lo. No silêncio ele se aproximava mais
de Minas Gerais. Meu pai tinha aquela coisa meio secreta do mineiro.
As homenagens que vem recebendo pelo centenário têm sido muito bonitas. Há muito interesse pela vida e simplicidade de Dorival Caymmi, que não tinha ambições. O grande legado que ele nos deixou foi a casa de Pequeri, o apartamento do Rio e a música que nos fez artistas.”
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