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sábado, 10 de maio de 2014

DA LAMA AO CAOS - 20 ANOS (O LADO SOCIOLÓGICO E ETNOGRÁFICO DO ÁLBUM DE ESTREIA DE CHICO SCIENCE, DA LAMA AO CAOS)

Disco nasceu entre antenas parabólicas e palafitas e ficou na história não só como marco musical mas também como objeto das ciências sociais


Por Bruno Albertim



Disco-símbolo mais expressivo das primeiras e definitivas andadas do manguebeat, Da lama ao caos apareceu, em 1994, como divisor de águas dos fonogramas brasileiros desde o movimento tropicalista. Mas ali não há apenas estética. Projeto identitário, catalizador de um ethos e alargador de fronteiras sociais, o álbum apresenta, entre riffs e batuques, fartas doses de ciências sociais. Uma poética politizada, cravada na lama. 

“No disco, Chico recorre a várias práticas etnográficas”, diz Luciana Mendonça, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sobre o expediente clássico da antropologia de “estranhar” o outro, mesmo que semelhante, para analisá-lo e descrevê-lo. “No disco, Chico Science fala de bairros, práticas sociais, coisas específicas do Recife, modos de sobrevivência”, pontua Luciana, que defendeu sua tese de doutorado pela Unicamp, em 2004, com o título Do mangue para o mundo: o local e o global na recepção da música brasileira.

Da lama ao caos é mais do que música. É etnografia musicada. E o Recife etnografado em suas veias menos visíveis não costumava constar, até então, na música pernambucana de expressão nacional. Uma investigação guiada por um manifesto que buscava politizar a música e a cidade a partir de suas contradições alagadiças. “Chico, Fred (Zeroquatro) e Renato (L) faziam uma crítica à coisa idílica do Recife e de Olinda cantada, por exemplo, por Alceu (Valença) nos anos 1980. Eles achavam que havia muito mais contradições”, observa a doutora em sociologia pela UFPE, Carolina Leão, também autora de tese sobre o manguebeat.“A cidade era muito pobre e houve ainda a pesquisa do Instituto de Washington, em 1991, que apontava o Recife como a quarta pior cidade do mundo para se viver”, diz Carol.

Escrito por Chico, Renato e Fred, o Manifesto mangue (1992) tomava o caranguejo como metáfora do homem que se agarrava na lama para sobreviver. “A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade ‘maurícia’ passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais. Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de progresso, que elevou a cidade ao posto de ‘metrópole’ do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade”, eis um dos trechos do manifesto.

O Recife da banda Chico Science & Nação Zumbi não tinha o alumbramento de Manuel Bandeira nem a sombra rendada das árvores de Gilberto Freyre, tampouco o gosto de fruta sensualizada de Alceu. Fedia nas contradições de sua lama – e do asfalto sobre ela. “A cidade não para, a cidade só cresce,/ O de cima sobe, e o de baixo desce”, versos da canção A cidade não apenas falavam da pouca mobilidade social, mas antecipavam, ali nos anos 1900, problemas que se tornariam crônicos no Recife dos anos 2000 até hoje. Entre eles, a verticalização e a urbanização desordenadas. “Muitos dos problemas graves de hoje, como a falta de mobilidade, estavam tomando forma ali”, lembra Carolina Leão.




A poética radiografou a realidade vista, ocasionalmente, nas páginas dos jornais. “O Recife que se vê ali, no disco, é um Recife plural e cheio de contradições. Sobretudo pela questão da desigualdade social, com versos como ‘com o bucho mais cheio, comecei a pensar, que eu me desorganizado, posso me organizar...’. O disco tinha uma série de chamadas para a questão da opressão social e a falta de possibilidade de organização popular”, analisa Luciana. 

Também sociólogo, Paulo Marcondes, investigador da relações entre arte e política, lembra que a inserção da paisagem social do Recife não era exatamente uma novidade em música, assim como a fusão de elementos da chamada cultura popular com o pop, mas que, ali, isso se deu numa poética vigorosamente nova, que “se configura na tensão entre a poesia e a prosa do mundo”. “Ele (Chico) elege o mangue pensado como característica da cidade, a bandeira da biodiversidade, para trabalhar a ideia de quem habita ali. A música faz, o tempo todo, uma analogia entre o sujeito humano e o caranguejo para mostrar o humano nas formas de exploração.”


PARABÓLICAS

Antes de Chico e seus pares, a cultura popular estava afastadas, há muito, das classes médias e elites. “Isso se deu por várias questões, uma delas foi a expansão da indústria fonográfica ocorrida durante a ditadura militar. Diferente da geração de Alceu, da Ave Sangria etc., Chico e Fred adolesceram em uma indústria cultural consolidada e da implantação do punk, do rock”, diz Carol Leão. Ao dar visibilidade midiática à periferia, Chico interferiu no comportamento da juventude de classe média. “Nos anos 1980, usar bandeira de Pernambuco era uma excrescência. Usar chapéu de palha era ser pobre ou esquizofrênico. Esses elementos foram assimilados. Chico condensa essa nova pernambucanidade, mais politizada”, pontua.

“Sou crítico da expressão, pernambucanidade, essa coisa que quer fundar um ethos muito geral. Costumo brincar: a pernambucanidade é a mesma para o usineiro e o cortador de cana? É preciso reconhecer que, nos anos 1990, já existiam outras manifestações não enquadradas como manguebeat e que foram enquadradas à força pela mídia, em sua necessidade de classificação”, observa o sociólogo Marcondes. “Mesmo no manguebeat, esse termo pode ser conservador, já que supõe uma unidade falsa. Identidade, dos pontos de vista histórico e antropológico, é algo que se dá sempre em conflito”, diz ele, lembrando que a cena mangue ajudou a recuperar o Carnaval 12>do Bairro do Recife – zona relegada, até então, a marinheiros e prostitutas. Pelas ruas do bairro, aliás, ainda se ouvem versos saídos de Da lama ao caos. E assim a música segue alimentando a conversa sobre as identidades da cidade que o manguebeat ajudou a redefinir.

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