Canção é a única de amor do disco Da lama ao caos. O mistério de Risoflora ficará para sempre guardado no mangue
Por Valentine Herold
Na manhã da última segunda-feira, assim como na letra de A cidade, gravada há 20 anos por Chico Science & Nação Zumbi, o Recife acordou com a mesma fedentina do dia anterior. Carros, ônibus, motos, bicicletas e metrôs já circulavam energicamente na capital que, no fim da década de 1980, andava com a autoestima baixa com suas patas de caranguejo. O título de “quarta pior cidade do mundo” fez fervilhar ainda mais o sangue de alguns moços moradores de Peixinhos e Barra de Jangada. A indignação os levou a escrever o manifestoCaranguejos com cérebro em 1992. Agora, 22 anos depois, a situação social da capital pernambucana não é mais a mesma, mas as marcas da desigualdade social ainda se fazem bastante presentes.
Na paisagem, os prédios não param de crescer. Para cima, para os lados. O processo de verticalização na capital pernambucana está em números: nos últimos dez anos, foram 4.404 alvarás de construção autorizados pela Prefeitura do Recife, mostrando que os versos gravados por Chico Science & Nação Zumbi em 1994 continuam atuais. “A cidade não para, a cidade só cresce.”
Na mesma manhã da última segunda-feira, José Carlos da Silva, morador da comunidade Ilha de Deus, localizada no bairro da Imbiribeira (Zona Sul recifense), continuava vivendo e sobrevivendo do mangue, aquele tão cantada por Chico. Zé Carlos habita ainda uma das primeiras palafitas suspensas sobre o rio, localizada logo após a ponte de concreto construída, há cinco anos, na entrada da Ilha. Mora com a esposa, Néa, e seus dois filhos. O mocambo destoa das casas estreitas e siamesas construídas pelo Governo do Estado desde 2007 a alguns metros. A família espera pela sua desde 2010, dois anos a mais que o prometido. Também destoa dos altos prédios que se encontram por trás dos manguezais, no Pina. Pescador de 39 anos, José Carlos tira sua renda da venda de sururu, tainha, curimã e, principalmente, camarão.
A pesca do crustáceo virou a principal atividade dos que viviam antes de pegar somente caranguejos. “Graças a Deus, minha vida melhorou, pude comprar meu barco. Agora quase não pego mais caranguejo, só se for de braço, quando ele tá de andada (época em que o animal sai de sua toca para se reproduzir)”, conta. Há uns meses, Zé Carlos passou por uma cirurgia de hérnia de disco, mas não pode continuar de repouso o tempo que deveria. Apenas Néa não consegue sair só para pescar e sustentar o quarteto.
“Aqui, a gente não tem apoio de nada, de como aprender a cuidar dos camarões. Enquanto isso, não revendemos aos compradores. Sou revoltado. Dizem que é um lugar conhecido, mas cadê que não tem nem ninguém do Ibama?”, desabafa o pesador. O lixo acumulado nas margens dos rios também indigna Zé e esse cuidado com o meio ambiente faz com que, quando sai para pescar no Pina, sempre acabe voltando com garrafas plásticas, sacolas e outros dejetos físicos no barco, além dos peixes. É ele o verdadeiro mangueboy: da lama ao caos.
Deixando a casa da família Da Silva, dobrando à esquerda e, depois de mais alguns metros, à direita, chega-se à sede do núcleo comunitário Caranguejo Uçá. É lá que Edson Barros – mais conhecido como Fly, “First Love Yourself, cara!” – ministra ações culturais. Ele conheceu Chico Science no início dos anos 1990, no bairro da Mustardinha. “Ele chegava e falava: ‘Escuta aí’. Achei muito massa o que ouvi”, relembra. “O movimento foi importante, mas acho que a galera que ainda produz o fraudou, não se importa mais com o mangue. A Nação Zumbi agora está se importando mais com o sucesso”, resigna-se. Durante a entrevista, um menino de cerca de 14 anos passa pedindo emprestado um pandeiro. Uma herança positiva, segundo Fly, do manguebeat.
ZONA NORTE
Cantado nos versos de Chico Science & Nação Zumbi, o Centro Cultural Daruê Malungo, localizado em Chão de Estrelas, na Zona Norte,foi palco dos primeiros interesses do compositor para com os ritmos africanos. Lá, ele se juntou ao grupo Lamento Negro, semente que viria a se chamar Nação Zumbi. “O Lamento Negro continuou depois. Foi um grande movimento que trabalhava a questão das raízes culturais afro”, diz o mestre Meia Noite, sociofundador do Daruê Malungo e ex-integrante do Lamento. “O manguebeat foi uma grande alavanca para educar uma nova geração sobre maracatu, coco, ciranda, afoxé.”
Assim como no Caranguejo Uçá, lá as crianças e adolescentes das comunidades vizinhas têm acesso gratuito a aulas de dança, percussão, desenhos, costura e expressão corporal. “É uma grande satisfação enquanto negro, revolucionário e percussor da construção do centro. ver a evolução do Daruê.”
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