Por José Teles
“Nós somos uma antena, e vamos tocar aqui mesmo se não conseguirmos gravar um disco, mesmo não conseguirmos fazer nada, nós vamos estar o tempo todo nos divertindo, isto é o que interessa”, a afirmação é de Chico Science no show de Natal de 1993, no Bairro do Recife. A Chico Science & Nação Zumbi já havia conquistado a cidade, um santo de casa que estava fazendo milagres. Um ano depois o grupo estreava na Sony Music, com Da lama ao caos. Um repertório que foi testado, aprovado e já era cantado pelo público. A princípio uma formação com a percussão rotativa. Tocava quem aparecesse primeiro, em 1993, depois da primeira edição do Abril pro Rock, o grupo já estava definido, com Jorge du Peixe, entrando para a turma das alfaias, e Otto deixando o grupo e indo para a Mundo Livre S/A.
Otto lembra que tocou no show Mangue Feliz, no Natal, e que saiu da banda sem problemas, uma sugestão de Chico: “ Ele me disse. Fica com o mundo livre que você pode ajudar mais. E eu sabia, e queria ser os um na percussão”. Ele teve assim o privilégio de participar das duas principais bandas do período. Não gravou o Da lama ao caos, mas diz que se sente no disco: “Este disco pra mim foi o disco que eu os não gravei. Mas toquei e introduzi as congas. A percussão de mão. E é o disco que estive até a gravação. Eu lembro muito da MTV estávamos freqüentando e aquele cenário de rock. A comoção de todos”, comenta Otto, que compara o Recife com Seattle, “As conquistas das bandas foram parecidas”, diz.
Assim como aconteceu com o Nirvana, o contrato com uma grande gravadora veio mais rápido do que Chico Science imaginava: “Depois que saiu n MTV, um ano atrás, a gente começou a receber convites. Quando saiu na Bizz, na Conexão Brasil as gravadoras se interessaram. Diziam: mas vocês já estão prontos. Não precisa fazer mais nada. Então a gente bancou uns shows da Mundo Livre e da Nação Zumbi pela Brasil”, comentou Chico Science a revista Bizz, na época em que gravava o da Lama ao caos. Também presente à entrevista, Fred Zeroquatro revela que foram aconselhados a aguardar, não assinar logo: “Para não subir à cabeça, e não fazermos besteira. E foi ótimo, porque a Nação conseguiu um contrato superlegal, de três anos, com a Sony, e a Mundo Livre está em negociação com o selo dos Titãs, o Banguela”.
O que os executivos da Sony não esperavam era a complexidade da música do CSNZ, paradoxalmente alicerçada na cultura popular pernambucana, com a qual Chico Science, e os integrantes do Nação Zumbi conviveram desde criança, nos subúrbios do Recife, e de Olinda, mas que era pouco conhecida até mesmo pelos pernambucanos: “A cultura popular era ainda bem obscura antes do mangue, principalmente pra classe média”, comenta o empresário da banda, Paulo André Moraes. A união de alfaias com guitarra e baixo, sem bateria, letras que citavam uma paisagem específica do Recife intrigava o público do Sudeste, confundia os executivos da Sony. Quem poderia produzir uma banda assim? “Chico queria Bill Laswell, ou Arto Lindsay, mas não tinha cacife ainda pra ter tamanho investimento da Sony, em um produtor gringo. Arto morava em Nova Iorque nessa época. Aí a Sony sugeriu Liminha, não havia alternativa”, conta Paulo André.
Arto Lindsay recebeu uma demo que a Nação Zumbi gravou com a Mundo Livre S/A e ficou interessado em produzir o CSNZ. No começo dos anos 90, ele era um dos mais elogiados produtores que trabalhavam no Brasil (embora americano, viveu vários anos em Garanhuns e no Recife, nos anos 60 e 70). Assinou a produção de nomes top de linha da MPB, Caetano Veloso e Marisa Monte, os mais conhecidos. Liminha era a opção mais óbvia. O mais solicitado produtor dos anos 80, ele comandava o pop nacional do estúdio Nas Nuvens, no Jardim Botânico (seu sócio era Gilberto Gil). O paulista Arnolpho Lima Filho, o Liminha, ex-baixista dos Mutantes era um veterano quando conheceu o CSNZ. Mas confessa que encarou como um desafio: “Como gravar uma banda com a bateria espalhada por vários integrantes? E ainda tinha que resolver como melhor sonorizar os tambores. Embora ao vivo eles parecessem pesados, no estúdio não funcionava do mesmo jeito. Um bumbo de bateria fazia muito mais efeito”, explicou Liminha.
Da lama ao caos levou um mês para ser gravado. O grupo ficou hospedado no Atlântico Copacabana, na Zona Sul. O adiantamento da gravadora foi em parte gasto na compra de instrumentos e equipamento de qualidade, mas não estouraram o orçamento estipulado pela Sony. O contrário aconteceu com o Afrocibederlia, que gastou 50% a mais do orçamento previsto. A capa, esta os mangueboys queriam que fosse feita no Recife, por designers e fotógrafos que além de profissionais talentos faziam parte da turma que lucubrava a movimentação nos apartamentos da Rua da Aurora, ou no bar Cantinho das Graças, ente outros. A dupla Dolores y Morales, ou Hélder Aragão e Hilton Lacerda, e Fred Jordão, alguns dos nomes que assinam a arte do Da lama ao caos. Também responsáveis pela matança dos caranguejos que serviram de modelo para a capa. Depois de imortalizados em fotos, foram mortos e devorados com cerveja, no estúdio, na Rui Barbosa.
A Sony Music apostou em A cidade, que teve clipe bancado pela gravadora. Foi distribuído um maxisingle, com duas versões da música. O lançamento no Recife aconteceu em setembro de 1994, no /circo Maluco Beleza.
NEM ROCK, NEM REGIONAL
Algo que nunca havia acontecido antes no Recife, e certamente em nenhuma outra cidade do país, com exceção do Rio ou São Paulo. O presidente da gravadora, então dirigida no Brasil por Roberto Augusto, esteve no extinto bar Som das Águas, na Rua das Pernambucanas nas Graças, para conferir ao vivo, in loco, um show do Chico Science & Nação Zumbi. No dia seguinte, Chico e Roberto Augusto posavam para os fotógrafos, e o presidente da gravadora anunciava a contratação dos mangueboys.
Da lama ao caos foi uma decepção para a Sony Music, que apostou pesado no grupo que imaginava a nova música recifense como uma resposta, ou contraparte à axé music, que disputava então, com pagodeiros e sertanejos a supremacia em vendagens de discos no país. No entanto, da lama ao caos não continha as facilidades comerciais da axé. Mais do que isso: era um objeto não identificado que pousava na música popular brasileira.
“A Sony criou uma expectativa grande em CSNZ as rádios não tocaram, como haviam tocado os outros artistas jovens da gravadora, Gabriel O Pensador, e Skank. No primeiro ano vendeu 10 mil cópias, enquanto Gabriel e Skank receberam Disco de Ouro nos primeiros discos”, conta Paulo André Moraes, então empresário da banda, sem o qual o grupo dificilmente teria realizados voos tão altos independente, ou apesar da Sony Music: “Não tinha internet , nem pirataria ainda, é importante dizer isso mas, a banda pegou a estrada, inclusive fez uma tour internacional, um ano e dois meses depois do lançamento de Da lama ao caos. Aí o CD já estava lançado no Japão, EUA e Europa. Então havia uma demanda, mas as lojas já não tinham o CD”.
Em 1994, world music já era uma das tendências do consumo mundial de música, festivais do gênero espalhavam pelos principais mercados, a Sony Music ao lançar o disco no exterior parecia acreditar mais numa aceitação por parte dos gringos do que no Brasil, onde as emissoras de rádio não sabiam onde encaixar Chico Science & Nação Zumbi. Nem mesmo em sua terra natal, lembra Paulo André: “A Radio Cidade, poderia ter tocado quinze vezes por dia, A Cidade parecia composta pra rádio e para o Recife, mas, tocou timidamente. Em Curitiba tocou muito, lá havia três rádios rock”.
Na maior capital do país, não foi diferente. Os programadores das emissoras paulistanas, com raras exceções, não conseguiam decodificar Da lama ao caos “Em São Paulo tocou muito timidamente. Quando a Sony chegou com o disco, as radios rock disseram que não tocariam porque era regional. Enquanto as rádios populares que tocavam a música nordestina em São Paulo, disseram que não tocariam porque era rock ou seja, Da Lama ao caos foi ignorado no seu tempo, mas Afrociberdelia recolocou o disco nas lojas”, continua Paulo André, que começou a enviar discos para a produção de festivais na Europa e EUA, fazendo uma divulgação paralela à a gravadora. Foi assim que a CSNZ pousou com Da lama ao caos nos palcos americanos, entre estes o do Summerstage, festival de verão nova-iorquino, apresentando-se com Gilberto Gil, e encantando Jon Pareles, editor de música do New York Times. Ressaltando-se que na época era quase inexistente a presença de bandas brasileiras nos EUA ou Europa.
“A Sony não gostou. Achavam que não era a hora de ir pro exterior, porque tínhamos que trabalhar o Brasil, pra vender discos, pois gravadoras trabalhavam com resultados. Respondi que não deixaria de viabilizar essa experiência pessoal pros músicos da banda, nem poderíamos ignorar o Central Park Summerstage, o CBGB, JVC Jazz Festival, todos em Nova Iorque, o Montreux Jazz Festival, na Suiça, o Sfinks Festival, na Bélgica, o Heimatklange, em Berlim”, conta o produtor, fazendo uma revelação: “Justiça seja feita, foi o governo Miguel Arraes que viabilizou, e Pedro Mendes foi o articulador do patrocínio. Senão não teríamos a grana pra bancar onze passagens Recife, Nova Iorque, Bruxelas, Recife, nesse tempo existia o vôo Recife/Bruxelas via VASP”.
Enquanto isso prosseguia a queda de braço entre a banda e a Sony Music, que não licenciou, por exemplo, Da lama ao caos para a Luaka Bop, a gravadora de David Byrne, que assistiu ao show do grupo no templo do rock alternativo de Nova Iorque, o lendário e hoje extinto CBGB: “A própria gravadora lançou o disco por um subselo latino, o Sony Discos Internacional, em Miami, junto com Fabulosos Cadilacs, Desorden Público, Los Tres, e Ratones Paranoicos, num pacote latino, em que éramos peixes fora d'água”, conta Paulo André. O americano Jon Pareles, no New York Times, avalizou o som dos mangueboys no texto que assinou no NYT: “Eles criaram um som híbrido capaz de evoluir até se tornar u mestilo que um dia será hibridizado por outra geração”.
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