Por Márcio Ferreira de Souza
Araci Cortes (1904-1985)
Antecedentes do mercado fonográfico no Brasil
A música popular brasileira se consolidou no mercado fonográfico a partir da década de 1930, período denominado como a “década de ouro”. Novos gêneros musicais se afirmaram após o período imediato ao fim da Primeira Guerra Mundial. O ano de 1917 demarca o aparecimento do samba, gênero musical brasileiro por excelência, com o sucesso de Pelo Telefone, composição de Donga e Mauro de Almeida gravada pelo cantor Baiano. Ao longo dos anos 1920 destacaram-se marchas carnavalescas que se tornaram grandes sucessos populares. Doravante a música popular brasileira, gradativamente, iria passar por um processo de desenvolvimento, seja em termos de qualidades técnicas e artísticas, seja na quantidade de gêneros musicais e na própria afirmação de um mercado promissor que não demoraria muito a se modernizar.
Giron (2001), em sua bibliografia sobre o cantor Mário Reis, analisa os primórdios das gravações no Brasil ressaltando que Frederico Figner (1860-1946), natural da Boêmia, “foi o primeiro a fazer gravações de música popular brasileira em cilindros de fonógrafo, logo que desembarcou no Brasil em 1891, trazendo consigo uma das primeiras máquinas falantes”. No ano de 1900 Figner fundou, no Rio de Janeiro, a Casa Edison. Empenhou-se num acordo com a fábrica de Berlim, Zon-O-Phone, que pertencia ao conglomerado Carl Lindström e, no ano seguinte, conseguiu a patente para fabricação de discos duplos no Brasil, além de que foram enviados para o Brasil equipamentos e técnicos de som para aqui gravar as nossas músicas. O primeiro estúdio de gravações mecânicas foi instalado no Brasil em 1902. Dessa maneira, formava-se, conforme Giron, “o primeiro catálogo brasileiro de chapas”. Figner, que se tornara diretor-artístico da Casa Edison buscou gravar “tudo o que lhe caísse na mão, o mais rápido possivelmente”. Giron observa que este critério de escolha, ou mais precisamente um “anticritério”, em seu dizer, proporcionou uma grande produção e um “consumo indiscriminado de música local”. Além do mais, de acordo com a tecnologia da época, os músicos e cantores tinham que fazer um esforço muito grande, chegando ao ponto de gritar as canções pelo autofone, para garantir uma gravação de “qualidade” (Giron, 2001: 56) - temos aqui que relativizar a noção de qualidade.
Paraguassu, cantor nascido na cidade de São Paulo, que gravou seu primeiro disco em 1912, concedeu a Fernando Faro o seguinte depoimento:
“As gravações daquele tempo eram uma coisa engraçada. Na gravação mecânica havia um cone, um fone, que nem um funil, ligado à máquina de gravação. De maneira que o técnico acertava a máquina, a gente fazia uma experiência, uma prova, e era o bastante. Depois podia gravar 20, 30, 40 números naquele ritmo mesmo, não tinha mais nada. E a voz era sempre aquela; você tocava um disco, a voz era de um jeito, tocava outro disco, era a mesma voz, não mudava de timbre, era sempre a mesma coisa na gravação mecânica” ¹.
O depoimento de Paraguassu demonstra as dificuldades de se realizar gravações impostas pelos limites tecnológicos do período, que exigiam dos cantores um esforço quase sobre humano. Assim sendo, evidentemente que se destacariam aqueles cantores que possuíam uma grande potência vocal. Este é um dado significativo para entendermos a forte presença masculina no cenário musical. O destaque para os cantores de grande potência vocal e de voz grave foi evidenciado por questões tecnológicas. Neste sentido, além da questão social que ditava um padrão representativo da mulher dita “honesta” como aquela que estivesse circunscrita ao espaço doméstico, havia ainda uma questão tecnológica, que limitaria o acesso da mulher à possibilidade de realizar gravações mecânicas.
É possível imaginar o preconceito que girava em torno das mulheres do teatro musical daquele período, a considerar os depoimentos de diversos artistas que, mesmo de gerações posteriores, sofreram muito com a discriminação de uma sociedade machista que frequentemente associava seu trabalho à prostituição, no caso das cantoras ou à malandragem, no caso dos cantores. A quase ausência das mulheres cantoras no nascente mercado fonográfico brasileiro tem raízes em fatores sócio-culturais dos quais podemos citar a cultura prevalecente de exclusão das mulheres do espaço público em uma época onde estas estavam associadas ao espaço privado, ao âmbito familiar e a própria música popular estava relacionada à marginalidade, considerada como atividade de malandros, boêmios, vagabundos etc. No caso específico das mulheres havia uma forte associação com a prostituição, afinal a música popular estava relacionada com a noite. Atividade que se fazia presente nos saraus, nos bailes e nos clubes noturnos. Hora de “mulher direita” estar dormindo. Daí a associação da atividade musical com as mulheres da noite, às coquetes. Severiano e Mello observam que, a despeito da escassez dos cantores no Brasil neste período, não há sequer uma cantora popular que tenha alcançado sucesso antes da década de 1920. Conforme argumentação dos autores, tal fenômeno se deve pelo fato desse tipo de atividade profissional não existir em nossa sociedade machista de então. Havia mulheres que eram atrizes de teatro musicado que, eventualmente, gravavam. Porém, os autores supracitados, destacam que “as exceções seriam talvez as duas moças que, no suplemento inicial de discos da Casa Edison, aparecem cerimoniosamente tratadas como Srta. Odete e Srta. Consuelo” ²(Severiano e Mello, 1999: 18).
Em suma, o destaque para os cantores de grande potência vocal e de voz grave foi evidenciado por questões tecnológicas. Neste sentido, além da questão social que ditava um padrão representativo da mulher dita “honesta” como aquela que estivesse circunscrita ao espaço doméstico, havia ainda uma questão tecnológica que limitaria o acesso da mulher à possibilidade de realizar gravações mecânicas. É possível imaginar o preconceito que girava em torno das mulheres do teatro musical daquele período, a considerar os depoimentos de diversos artistas que, mesmo de gerações posteriores, sofreram muito com a discriminação de uma sociedade machista que, frequentemente, associava seu trabalho à prostituição, no caso das cantoras ou à malandragem, no caso dos cantores.
Araci Cortes em cena
A década de 1920 marcou a entrada das mulheres no cenário musical, sobretudo, no Teatro de Revista ³. Projetam-se, neste período, cantoras que faziam sucesso num universo onde predominavam os cantores. Dentre tais cantoras que se destacam estão Araci Cortes, Zaíra de Oliveira e Otília Amorim. Tomo o surgimento da cantora carioca Araci Cortes (1904-1985) como de considerável importância sociológica para a presença das primeiras cantoras de sucesso dos anos 1930.
Figura emblemática na história da música popular brasileira, Araci Cortes foi, possivelmente, a primeira mulher cantora a obter grande sucesso popular. Considerada “a maior estrela do teatro musicado dos anos 1920 e 1930” (Albin, 2003: 75/76) e a “primeira grande intérprete genuinamente brasileira de nossa canção popular” (Severiano in Araci Cortes, 1984). Interpretou canções de Sinhô, Assis Valente e Ary Barroso e se apresentou junto aos Oito Batutas de Pixinguinha. Araci Cortes foi vedete do teatro de revista e uma espécie de “precursora das modernas cantoras populares brasileiras” (Tinhorão in Araci Cortes, 1984). Ousada para sua época, era dotada de grande sensualidade e utilizou desta característica da melhor maneira que pode. Severiano destaca dois fatores que contribuíram para o sucesso de Araci Cortes, além do seu próprio talento: em primeiro lugar “a onda de liberalização que se espalharia pelo mundo no pós-guerra, proporcionando à mulher o ensejo de destacar-se em atividades (como gravações de discos) até então praticamente monopolizadas pelo homem” e, em segundo lugar, “o processo de abrasileiramento do teatro nacional, valorizando artistas originários das camadas populares e minimizando o uso da prosódia portuguesa nos palcos” (Severiano in Araci Cortes, 1984).
Sua discografia é pequena, porém notável, tendo estreado em disco no ano de 1925, com três gravações na Casa Edison. O ano de 1928 marca o seu primeiro grande sucesso, a canção Jura, de autoria de Sinhô, que foi lançado por Araci Cortes na revista Microlândia, reprisado em Miss Brasil, e gravado simultaneamente por Araci e Mário Reis, em fins de 1928 (Severiano e Mello, 1999: 92). Outra notória gravação de Araci é aquele considerado o primeiro samba-canção a fazer sucesso: Linda Flor (Ai, Ioiô), de autoria de Henrique Vogeler, Luís Peixoto e Marques Porto. Esta canção recebeu três versões de diferentes letristas. A primeira, de autoria de Cândido Costa, com o título de Linda Flor foi lançada na comédia A Verdade do Meio-Dia por Dulce de Almeida e gravada por Vicente Celestino. A Segunda versão, de autoria de Freire Júnior, recebeu o título de Meiga Flor e foi gravada por Francisco Alves. Porém, foi a terceira versão, de autoria de Luís Peixoto, que se tornou a mais popular e definitiva: Araci Cortes a cantou na revista Miss Brasil e a gravou em disco com o título de Iaiá, mas esta tornou-se conhecida como Ai, Ioiô. A letra de Luís Peixoto foi escrita para a interpretação feminina. Severiano e Mello ainda descrevem que esta terceira versão existiu porque as anteriores foram rejeitadas por Araci Cortes. “Como a canção estava no repertório de Miss Brasil, o libretista da peça, Luís Peixoto, teve de criar às pressas os novos versos, que foram escritos no intervalo de um ensaio, em pleno palco do Teatro Recreio” (1999: 93).
Araci interpretou tanto canções românticas como sambas com letras maliciosas, que ela interpretava com uma performance singular, encarnando o papel da mulata sensual. Como exemplos temos o samba de Ari Barroso, Tu qué Tomá Meu Home, revelando em sua letra a história de uma mulher apaixonada que, ameaçada por outra, se posiciona pela disposição a tudo para “segurar seu homem”. Outro exemplo de interpretação de sucesso foi o samba Tem Francesa na Morro, com letra irônica cantada com sotaque afrancesado.
O surgimento de Araci Cortes no cenário artístico carioca foi de suma importância para o solapamento de uma visão retrógrada de uma sociedade que associava a mulher artista com a imagem da prostituta. Contribuiu também para o desenvolvimento de revistas musicais com características tipicamente nacionais, privilegiando temas brasileiros e cantando em nossa língua com um sotaque tipicamente próprio. Por fim seu aparecimento no cenário musical contribuiu fortemente para a inserção das mulheres no mercado fonográfico no Brasil. Considerando a evolução histórica da nossa música popular, tomando em consideração o desenvolvimento do mercado fonográfico nas primeiras décadas do século XX, teremos que aportar na cidade do Rio de Janeiro, então capital da República. Isso quer dizer que existe um tempo e um espaço específico. Tempo e lugar de Araci Cortes. Dados sociológicos importantes contribuíram, conforme apontei, para a possibilidade de inserção das mulheres no mercado de trabalho, sobretudo no período pós Primeira Guerra Mundial. Se considerarmos que a conquista do espaço público pela mulher se deu contra inúmeras divergências sociais, dentre as quais, como ressaltou Margareth Rago, as próprias autoridades e homens da ciência nas primeiras décadas do século XX, “consideravam a participação das mulheres na vida pública incompatível com a sua constituição biológica” (Rago, 1997: 603), o que podemos constatar sobre o que vivenciaram as mulheres deste período que estavam inseridas em atividades artísticas, em especial as musicais e de cunho popular?
A elaboração da noção de relações de gênero ampliou o sentido da visão inicial do conceito de gênero enquanto identificado apenas como distinto do conceito biológico de sexo, como atesta Silvia Walby, para quem “o gênero se constrói e se expressa em muitas áreas da vida social. Inclui a cultura, a ideologia e as práticas discursivas, mas não se restringe a elas. A divisão do trabalho por gênero, no lar e no trabalho assalariado, a organização do estado, a sexualidade, a estruturação da violência e muitos outros aspectos da organização social contribuem para a construção das relações de gênero” (Walby, 1996: 332).
Zilda de Carvalho Espíndola (nome de batismo de Araci Cortes) desempenhou na vida o seu papel de mulher, de profissional (a artista Araci Cortes) e no desempenho de seu papel de cantora, encarnou muitos outros papéis, destacando-se pelo seu tipo brejeiro e marcante de mulata brasileira, sensual, ousada para a sua época, em muitos sucessos das revistas musicais. Sua extraordinária performance teve origem antes que os grandes veículos de comunicação de massa, como o rádio e a televisão se impusessem no Brasil - cabe lembrar que a radiodifusão no Brasil foi inaugurada em 7 de setembro de 1922, mas de modo incipiente e só alcançaria popularidade na década seguinte, assim como a televisão, que aqui chegaria somente em 1950. Aqui levo em consideração o pioneirismo desta artista, mulher, mulata, de origem pobre que se projetou por um esforço contínuo para deixar sua marca consagrada na história da música popular brasileira. O então incipiente mercado fonográfico brasileiro vai se desenvolver e, com o aval do rádio, conhece um gradativo crescimento. A figura da cantora de rádio iria se glamourizar na denominada “época de ouro” e o mercado torna-se cada vez mais promissor. O espaço foi aberto e uma seqüência de outras grandes artistas passa a predominar o cenário musical brasileiro neste “país de cantoras”.
Notas:
¹ - Este depoimento de Paraguassu foi gravado originalmente para o programa MPB Especial, da TV Cultura, dirigido por Fernando Faro e levado ao ar em 1º. de julho de 1974. Encontra-se disponível na coleção A Música Brasileira deste Século por seus Autores e Intérpretes (Vol. 1, CD 12, SESC-SP, 2000).
² - Ainda apontam os autores que “sobre essas moças, as primeiras brasileiras a gravarem, tem-se apenas uma informação biográfica: eram senhoritas” (Severiano e Mello, 1999: 18).
³ - Chiquinha Gonzaga (1847-1935) é um caso à parte. Compositora de grande sucesso no período da passagem do século XIX para o século XX, criou uma obra voltada especialmente para o teatro. Mulher à frente do seu tempo, sustentava-se a si própria, por meio das aulas de violão e dos concertos em festas, ao lado dos chorões de Callado. Chiquinha musicou o libreto de Arthur Azevedo, Viagem ao Parnaso, no intuito de ingressar no teatro, mas teve seu trabalho recusado pelos empresários por ter sido composto por uma mulher. Em 1885, rompe um tabu e torna-se a primeira mulher a compor uma partitura para uma opereta popular denominada A Corte na Roça, além de reger a Banda da Polícia Militar. Seu legado artístico foi extenso e somam-se 77 peças teatrais entre os anos 1885 a 1933. Além disso, compôs um considerável número de obras avulsas, destacando-se Ô Abre Alas, sucesso no ano de 1900, encomendada pelo Cordão Rosas de Ouro e que se tornou a primeira marcha carnavalesca. Foi também a criadora da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), em 1917 (Albin, 2003: 42-47).
Referências
GIRON, Luís Antônio (2001). Mário Reis: o fino do samba. São Paulo: Editora 34.
PARAGUASSU (2000). Depoimento in A Música Brasileira deste Século por seus Autores e Intérpretes(vol. 1, CD 12. Paraguassu). São Paulo: Sesc Serviço Social do Comércio.
RAGO, Margarete. “Trabalho Feminino e Sexualidade” in Del Priore, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
RUIZ, Roberto (1984). Araci Cortes; linda flor. Rio de Janeiro: FUNARTE.
SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de (1997). A Canção no Tempo: 85 anos de músicas brasileiras (vol. 1: 1901-1957). São Paulo: Editora 34.
WALBY, Sylvia (1996). “Gênero” in: Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
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